POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
A gente se apaixona por algumas palavras e expressões como se elas fossem gente ou animal de estimação. Foi o que aconteceu com meu amigo Armindo Barroso, professor da UFF. Ele namora, firme, as palavras “interface”, “sinergia” e “episteme”. Delas não se desgruda nem quando está descontraído num bar. Mantém caso rumoroso com o verbo “perpassar”, de quem usa e abusa. Promíscuo e bígamo, casou-se com a expressão “esgarçamento do tecido social”, sem se divorciar da “capilaridade social”, embora saiba que as duas, oferecidas, se entregam ao primeiro que aparece. Às vezes, exibicionista, junta todas elas e promove surubas lexicais que escandalizam a vizinhança pudibunda.
“Pudibunda” é, aliás, uma palavra que não pode ser apresentada ao estudante amazonense Pedro (Kokay) de Souza, aluno da Escola Concórdia, da ULBRA, em Manaus. Ele acaba de completar 6 anos de idade e descobriu aquilo que os índios guarani sabem há dois mil anos: as palavras têm alma. Nheen, em guarani, quer dizer “alma” e, ao mesmo tempo, “palavra”. Pedro se apaixonou perdidamente por uma palavra-alma, logo que foi alfabetizado. A professora ensinou-o a escrever com letra cursiva. E a palavra foi justamente essa, que o neoleitor, recém-alfabetizado, pronuncia enchendo a boca e lambendo os beiços:
- Pai, deixa eu te dar um beijo cursivo?
Ele está encantado com a palavra. Não se separa mais dela, é um grude só. Nada mais diz, só diz cursivo. Seu quarto é cursivo, o primo Palmito é cursivo, a vida e o mundo são cursivos. Tudo pra ele é cursivo. Viu o gol do Neymar no Peñarol e fez um comentário, muito apropriado, que deixaria o Galvão Bueno de queixo caído:
- Esse foi um gol cursivo.
Outro dia, no banheiro, antes de puxar a descarga chamou:
- Pai, vem ver, meu cocô hoje está cursivo.
Deixou no chinelo a “episteme”, a “sinergia” e a “capilaridade social” do Armindo. Como disse Hamlet a Polônio, num quarto do castelo: “words, words, words”.
Outro dia, Pedro, sob os cuidados da avó, declarou:
- Vovó, o buraco cursivo do meu bumbum tá coçando.
O palavrão
Pedro descobriu que a palavra, que tem alma, pode ser dita, mas se ela crescer e virar palavrão, a alma se transforma em assombração e tem que ser silenciada.
Outro dia, diante da TV, assistia o “Fantástico”, uma matéria sobre a gordura dos peixes e comentou:
- Pirarucu, pacu, tucunaré, aracu curimatã… Pai, por que todo peixe tem cu, mas a gente nunca vê o cu do peixe?
O pai explicou que nem toda palavra podia ser dita em qualquer lugar. Intrigado, mostrando que compreendeu bem, Pedro perguntou se podia nomear o amiguinho dele, na escola, que era um palavrão: Orlando Pinto. O pai explicou que “pinto”, se fosse nome de pessoa, podia falar. Ele aprendeu rapidamente a lição.
Pedro: Porra!
Pai: Que é isso, meu filho. Que palavrão feio!
Pedro (com uma cara safada): Pai, não é palavrão. É o nome do meu robô de Lego. Legal, né? Nome de pessoa pode falar.
Na última semana santa, Pedro, cuja bisavó foi professora de catecismo na paróquia de Aparecida, resolveu não negar o DNA. Deu uma aula de religião:
- Vovó, “amanhã” Jesus morreu e domingo ele “Jesussitou”…
No noticiário, Pedro viu a cavalice do deputado Bolsonaro, o coice que ele deu na senadora Marinor. O pai aproveitou para fazer um discurso sobre o respeito à diversidade, ao outro, à diferença. Foi aí que Pedro decidiu sair do armário, confessando:
- Pai, eu sou bi…
Se fosse o Bolsonaro, sairia logo cobrindo de porrada para “educá-lo”. Mas o pai achou que era precocidade demais:
- O que isso, meu filho?
- Sou bi-atleta, treino judô e futsal.
Eliza, a irmã de Pedro, pegou uma conjuntivite e foi advertida pela mãe, que é médica, que não podia ficar coçando o olho. No dia seguinte, Pedro falou:
- Mãe, tô com conjuntivite…só que é no braço. Pode coçar?
Pérolas do Pedro
Quando seu pai sai pra tocar música na noite manauara, dorme até tarde. Numa dessas, Pedro, que acorda com os galos, cochichou, amoroso, no sonolento ouvido paterno:
- Pai, a Eliza tá querendo te acordar, porque ela quer brincar com você… eu também quero, mas vamos deixar você dormir mais um pouco, tá? Mas se tu acordar logo, eu vou te dar cascudos de beijos.
No outro fim de semana, o mesmo cenário.
Pedro: Pai, quando a gente vai acordar?
Pai (virando na cama): A gente vai acordar daqui a pouco.
Pedro (aproveitando o embalo): A gente tem de acordar logo porque a gente tem de pegar o toddynho, porque a gente tá com fome…
Num programa de TV, ao lado do pai, assistia uma propaganda sobre o teste do pezinho. Pergunta pra que serve, o pai explica que é pra ver se o bebê tem alguma doença.
Pedro: Ahhh, tá. Eu não preciso fazer nada, porque não tenho nada no pé.
Pai: Não é pra ver se tem doença no pé, mas no corpo.
Pedro: Isso me confunde. Devia chamar teste do corpinho e não do pezinho.
No carro, indo pra escola
- Pedro, você me ama?
- Claro, né, você é meu pai.
- E que o que é amar?
- Não sei.
- Se você não sabe, como é que me ama?
- Não precisa saber, basta amar…
Puxando conversa, o pai diz:
- Pedro, você ficou famoso. Todo mundo no Facebook se diverte contigo, te acham engraçado, inteligente.
Pedro dá um suspiro profundo e depois de um longo silêncio comenta:
- É…celebridade é assim mesmo.
Depois, ele convoca o pai, chamando insistentemente:
- Pai pai pai pai pai pai pai pai pai…
- Tou ocupado. Pára de falar “pai, pai, pai”.
Dois segundos de reflexão, e Pedro, obediente, contra-ataca:
- Paulinho Kokay, Paulinho Kokay, Paulinho Kokay, Paulinho Kokay…
Sei dessas histórias porque com o Pedro tenho um laço atávico. Ele é filho da doutora Zuleica com o cantor e professor universitário Paulinho Kokay, que vem a ser filho do Bibi, meu cunhado, e primo do Pão Molhado, meu sobrinho, ou seja, neto da mãe da Nakamura, se bem me explico, além de pai, até o momento, da Érika, Mariah, Eliza, Gabriel e Bebel. Da mesma forma que em toda família há uma tia Nenen, sempre se pode encontrar também um Pedro.
O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).