POR FRANCISCO JULIANO
Depois de 16 anos completados do bárbaro “crime da motosserra”, como ficou conhecido internacionalmente o assassinato de Agilson Santos Firmino pelo ex-deputado Hildebrando Pascoal, Emanuela Oliveira Firmino, única filha de Agilson, diz que sua família ainda se sente desamparada. Desde 2009, 13 anos depois do crime, quando foi feito o julgamento e a condenação de Pascoal, ela espera que o Estado do Acre se responsabilize pelos crimes e indenize a família. O entendimento é o de que os crimes brutais contra o pai (Agilson) e o irmão Wilder Firmino de Oliveira provaram a participação de agentes públicos (parlamentares, policiais civis e militares) e fizeram a família abandonar o estado sem nenhum pertence ou proteção.
A passagem pela região Norte do Brasil tenta ser esquecida, mas resiste na memória da família. “Minha mãe até hoje não se recuperou”, conta Emanuela, em entrevista ao Bahia Notícias. Tanto o pai quanto o irmão dela, Wilder, um garoto de apenas 13 anos, foram mortos pelo conhecido “esquadrão da morte”, um grupo de extermínio formado por policiais com a participação de políticos que tinha a liderança do ex-coronel da Polícia Militar Hildebrando Pascoal. Agilson e Wilder foram mortos porque não sabiam o paradeiro de José Hugo. Hugo era amigo de Agilson, e tornara-se alvo de Hildebrando por ter, depois de um bate-boca, atirado e matado o irmão do ex-parlamentar, o subtenente da PM acreana Itamar Pascoal. Segundo o processo, a tropa de Hildebrando perseguiu Hugo, mas encontrou apenas Agilson, cujo único “crime” foi estar no local errado, e na hora errada.
Emanuela conta que viu o pai pela última vez no sábado do dia 29 de junho de 1996. “Toda vez que ele entrava em casa, tinha que falar comigo, dizer que me amava. Naquele dia, ele brincou com a gente e depois disse para mim: ‘viu como é bom ter um pai’?”, relata a filha do comerciante, e não mecânico, como até hoje, diz ela, insistem em chamá-lo. Segundo Emanuela, Agilson gostava de desafios e foi para o Acre com a intenção de mudar de vida. Nos seis meses que passaram lá, o pai abriu um restaurante, por um tempo, em ponto alugado. Na época do crime, ele se preparava para outro investimento no mesmo ramo de alimentação.
No domingo, dia 30 de junho de 1996, não tiveram mais notícias de Agilson. Policiais foram até a casa da família e pediram que alguém os acompanhasse até uma delegacia. Disseram que ele estava bêbado, havia batido o carro e permanecia preso. Primeiro, levaram a mãe de Emanuela para um quartel da PM, depois buscaram o irmão adolescente, Wilder, e o levaram para o mesmo lugar.
A mãe voltou, mas o jovem não. “Começamos as buscas, logo no domingo. Minha mãe e eu estávamos nervosas, tivemos que gastar todo o dinheiro que tínhamos atrás de alguma pista. Até um relógio caro, que ela possuía, usamos como pagamento de táxi”, relembra Emanuela. Só na terça-feira, 2 de julho daquele ano, receberam a confirmação da morte do pai. Souberam pela TV, na casa de uma amiga.
Agilson foi torturado desde o domingo em que José Hugo matou o irmão de Hildebrando. O comerciante teve as pernas, braços e pênis cortados por uma motosserra e um facão. Seus olhos foram perfurados, um prego foi introduzido em sua testa e sua cabeça foi alvejada com tiros. O corpo foi encontrado em uma das avenidas mais movimentadas de Rio Branco, capital do Acre, em frente a uma emissora de televisão. Hildebrando atribui a autoria da morte a dois ex-legisladores, já mortos: o ex-vereador (também policial) Alípio Ferreira e o ex-deputado Carlos Airton.
Wilder foi morto no mesmo domingo em que foi levado para o quartel da polícia, após ser torturado. Teve o corpo queimado com ácido e levou três tiros na cabeça. Neste caso, foi condenado o tenente da PM, Pedro Pascoal, um dos nove irmãos de Hildebrando. Hoje, Pedro, que já cumpriu mais de um terço da pena, recorre da sentença em liberdade. Hildebrando, com mais de 116 anos de condenação, por vários crimes, entre eles tráfico de drogas, tentativa de homicídio e corrupção eleitoral, pode pedir, em 2014, a remissão para ficar em regime semiaberto, quando completa 15 anos de prisão.
Emanuela, a mãe, e o irmão mais novo, depois da fatídica terça, não voltaram mais para casa. Refugiaram-se no lar de uma amiga. Ao saber que o corpo de Wilder tinha sido abandonado em uma estrada, resolveram procurar a Secretaria de Segurança Pública do Acre para que pudessem ajudá-los. Uma pessoa tinha dito a elas que era melhor não retornar à sua residência. “A gente não teve nenhum auxílio do Estado. Em hora nenhuma”, desabafa.
A partir daquele instante se esconderam na morada de uma pessoa que mal conheciam, mas que se sentiram seguras. “Dormimos no chão de uma casa escura. Passamos aqueles dias apenas com as roupas do corpo. A todo o momento imaginávamos que alguém viria nos matar”, lembra, com emoção, os últimos dias que passaram em Rio Branco. Quando a família foi convocada para participar do julgamento em 2009, só aceitaram sob a condição de que nenhum policial acreano fizesse parte da segurança. A saída do estado só se tornou realidade depois que parentes enviaram dinheiro para a compra das passagens. Para aumentar o suplicio, o voo que precisavam só ocorria uma vez na semana.
Com a condenação de Pascoal, a sensação de justiça aliviou um pouco o sofrimento da família, apesar da dor permanente. “Acontece sempre uma vontade de chorar”, se emociona Emanuela. A filha de Agilson e irmã de Wilder, disse que tenta esquecer, junto com a mãe e o irmão mais novo, os responsáveis pelas duas mortes. Mas está convencida que o Estado deve ser responsabilizado.
Para o procurador Sammy Barbosa Lopes, do Ministério Público do Acre, a família tem o direito de cobrar indenização ou pensão. Ele disse à reportagem do BN que o MP se posiciona favorável à penalização, mas o réu, Hildebrando, também deve pagar por isso. A discordância entre Emanuela e a promotoria dá-se nesta questão. Para ela, Hildebrando é uma “página virada”. “Ele já foi condenado pelo crime, falta agora o Estado cumprir a parte dele para que a justiça seja feita”, reclama.
Outra queixa é que, à época do julgamento, circulou a notícia de que o ex-deputado tinha transferido todo o patrimônio para a então esposa, Rosângela Nogueira, e não possuía dinheiro em caixa para pagar custos judiciais. O procurador afirma que é esta mais uma “artimanha” de Pascoal para assegurar o patrimônio que ainda tem. “Todo mundo sabe que ele tem posses, que é um fazendeiro grande, e o MP apontou a origem dos bens no julgamento, e chegou-se a questionar essa transferência de bens”, declara.
Sammy Lopes disse que, no julgamento, foi invocada a Lei 11.719/08, que dá ao juiz condições de estabelecer na mesma sentença criminal o valor de indenizações, item vinculado à esfera civil. “Fizemos o pedido, mas o juiz negou”, lamentou. O promotor acredita que uma das causas para a negação foi o fato de esta lei ser recente à época. “Me parece que o juiz não estava confortável para deferir a sentença porque a lei era nova”, relata. Ele conta também que o processo pode demorar porque tem que esperar o trânsito em julgado, ou seja, aguardar até que ao caso não caiba mais nenhum recurso. Hildebrando foi condenado pelo “crime da motosserra” a 18 anos de prisão, mas entrou com recurso para abrandar a pena. Segundo o procurador, o MP também recorreu para tentar a indenização. “Como os tribunais estão acima dos juízes, podem mudar esta decisão em favor da família vitimada”, acrescentou.
Entretanto, Emanuela, afirma que a família não pode esperar tanto. “Minha mãe precisa de auxílio, minha avó também. A nossa família foi muito prejudicada”, pontua. A luta pela reparação é tortuosa. Como Agilson e Wilder foram enterrados como indigentes no Acre, só em 28 de setembro de 2010 a família pode sepultar os restos mortais dos dois.
Emanuela disse que já pensou em escrever um livro, mas se desanima. “São muitos os exemplos de impunidade”, lastima. Ela tem um blog “Vida em Fuga” e procura um advogado que se interesse pela causa da família. Já deu entrevistas para vários jornalistas, entre eles o acreano Altino Machado, um dos primeiros a noticiar os crimes do chamado “esquadrão da morte”. Participou também de outras matérias em jornais e emissoras de TV de projeção nacional. Enquanto a justiça plena não vem, Emanuela luta para que a história não seja esquecida nem pelo Acre e nem mesmo pelo país. A família dela jamais irá esquecer os momentos de terror.
Francisco Juliano é jornalista do site Bahia Notícias.