quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Carta pública: emergência de contato no Acre e risco de extermínio

Brasil – agosto 2020

Carta pública para a sociedade brasileira;

Ministro da Justiça, sr. André Mendonça;

Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, sra. Damares Alves;

Presidência da Funai, sr. Marcelo Xavier da Silva

Secretário da Sesai, sr. Robson da Silva

Governador do Acre, sr. Gladson Cameli

Aos representantes do Ministério Público Federal

Notícia do jornal O Globo do último sábado, 15 de agosto, informou de um contato realizado por um povo indígena em isolamento voluntário com o povo indígena Madiha (Kulina) da aldeia Terra Nova, Terra Indígena (TI) Kulina do Rio Envira, no rio Envira. A notícia traz imensa preocupação para o movimento indígena, lideranças indígenas, sertanistas, indigenistas e pesquisadores da área. Diante da vulnerabilidade epidemiológica de tais grupos, além do grave risco dessa aproximação em meio a pandemia do novo coronavírus, do qual todas as sociedades humanas não possuem memória imunológica, o risco é ampliado diante de doenças tais como gripe (influenza), sarampo e outras. O momento do contato é extremamente delicado e necessita a adoção de medidas emergenciais por parte do Estado, e da atenção de toda a sociedade brasileira.

O movimento indígena, através da COIAB e APIB, vem alertando desde o início da pandemia a necessidade de planos efetivos de controle sanitário nas Terras Indígenas com presença de povos indígenas isolados e de recente contato, além da elaboração de planos de contingência específicos para estes povos, sob o risco de vários deles serem exterminados pela Covid-19. No âmbito da Sala de Situação para enfrentamento do avanço da Covid-19 sobre os povos indígenas isolados e de recente contato, criada no contexto da ADPF 709 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) sob decisão do Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal, a APIB se manifestou tecnicamente reiteradas vezes para necessidade de se priorizar medidas emergenciais no estado do Acre, visando evitar justamente o que acabou de acontecer no rio Envira.

Segundo a matéria d'O Globo, a liderança Cazuza, da etnia Madiha (Kulina), informou que os indígenas isolados, após o contato, voltaram para a mata levando alimentos, ferramentas, redes e roupas. Este fato é de extrema preocupação: tais objetos podem ter sido vetores para disseminação de doenças infectocontagiosas, para as quais não possuem memória imunológica, inclusive a Covid-19. Isso é gravíssimo. Neste momento, já é possível que um número expressivo de indígenas em situação de isolamento esteja contaminado tanto pela Covid-19, quanto por outras doenças respiratórias e infectocontagiosas. Tal contaminação, conhecidamente, acarreta em rápidos processos de adoecimento e mortes entre populações em condição de isolamento.

Dos 114 registros de povos isolados no país, 28 são confirmados, sendo que um desses registros representa o povo indígena isolado em questão. Vivem entre as TI Kaxinawá do Rio Humaitá, TI Kulina do Rio Envira, TI Kampa e Isolados do Rio Envira e TI Alto Tarauacá. Ademais, recentemente constatou-se a presença deles no rio Muru, fora da delimitação de terras indígenas. Essas terras indígenas são contíguas entre si e, em conjunto com outras terras indígenas, compõem um mosaico com mais de 1 milhão de hectares de áreas protegidas, que estão localizadas na fronteira com o Peru. Alguns dos povos isolados vivem em ambos os lados da fronteira.

Desde que a Funai registrou oficialmente sua presença, na década de 1990, esse povo continuou vivendo basicamente na mesma região. Subdividem-se possivelmente em grupos locais que se relacionam. Os Kaxinawa do rio Humaitá falam que são “Nixinawa” (“povo da envira”). A Funai observa em suas ações de monitoramento, pelo menos desde 2005, que esse povo tem aumentado o número de roçados e malocas, o que pode indicar crescimento populacional. Os Huni Kui da TI Kaxinawa do Rio Humaitá estão há alguns anos discutindo e aplicando estratégias para lidar com a aproximação dos isolados. Na elaboração e implementação de seus Planos de Gestão Ambiental e Territorial, decidiram reservar uma parcela da TI para ocupação exclusiva dos isolados para garantir sua proteção. Na época da estiagem, há constantes relatos de avistamento deste povo pelos povos indígenas da terra indígena e neste ano os Huni Kuin perceberam a movimentação de mais pessoas, que se aproximaram muito de suas aldeias.

A região é ecologicamente bem preservada, não existindo no seu interior atividades de desmatamento ou grandes explorações madeireiras. No entanto, há pressão de caçadores e pescadores comerciais que abastecem cidades da região, além do narcotráfico oriundo do Peru. No ano de 2000, caçadores/pescadores ilegais mataram e enterraram um índio isolado na TI Alto Tarauacá. De forma preocupante, o município de Feijó (AC), onde se insere a região, consta na lista dos 50 municípios mais desmatados na Amazônia entre 2008 a 2019.

Sobre a situação do contato

A Funai tem expertise na condução de situações de contato, sobretudo, desde 1987, quando criou um departamento especializado (Departamento de Índios isolados, atual Coordenação geral para Índios Isolados e de Recente Contato), e já reunia, nesse momento, sertanistas e médicos sanitaristas com décadas de experiência. No entanto, tal política foi construída sem a efetiva participação indígena. E em que pese a experiência, os contatos até então sempre foram trágicos, provocando inúmeras mortes, além de outras violências políticas e desrespeito aos direitos dos povos indígenas. Em momentos de contato, historicamente, a união de forças, o planejamento, a transparência, e a rapidez nas ações conseguiram, em alguns casos, mitigar os trágicos efeitos epidemiológicos. Por isso, é imprescindível a imediata elaboração e a implementação urgente de um Plano de Contingência para situações de contato, conduzidos por pessoas experientes e em diálogo com o movimento indígena e com os povos que compartilham os território com os povos indígenas isolados.

Especificamente sobre situações emergenciais de contato, foram colocados em prática nos últimos anos planos de contingências em situações de contato no Acre (2014) e no Vale do Javari (em 2014, 2015 e 2019), que tiveram o sucesso de evitar crises epidêmicas, óbitos, doenças e conflitos. A Funai e a Sesai são responsáveis tecnicamente e oficialmente para a adoção de medidas adequadas de contingência. No entanto, na citada matéria de O Globo, os Kulina informaram da ausência da Funai e da Sesai, o que é extremamente preocupante e coloca em risco a vida deste povo isolado. Em 20 de julho, o CIMI divulgou nota alertando sobre o risco iminente de genocídio de povos isolados, com o avanço da Covid-19 e em conjunto das invasões dos territórios, destacando outra situação igualmente grave de contato em Rondônia e uma política de omissão planejada.

Diante disso, viemos a público solicitar informações, e pedir que a Funai, Sesai e o governo federal ajam com plena transparência. Ao mesmo tempo, são necessárias medidas urgentes de apoio às equipes de campo, às quais podem se somar a experiência de agentes que estão na Funai ou que já passaram pela Fundação, e agentes que já tiveram experiências de contato. É urgente a adoção das medidas previstas pela portaria conjunta No. 4094 de dezembro de 2018, especialmente em relação à elaboração e implementação de um Plano de Contingência e ativação da Sala de Situação Local e Equipe de Referência Local. Seria fundamental que tal contato seja debatido na Sala de Situação Central criada após a decisão do STF, como já mencionado, com a participação direta da APIB. É fundamental, também, a reativação do Conselho da Política de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato da Funai, com a ampliação da participação indígena e da sociedade civil.

É urgente que a Funai aja neste momento com transparência e informe à sociedade a situação do contato. Deve ser apresentado e debatido o Plano de Contingência que será aplicado, e que o governo se comprometa a liberar recursos humanos e materiais específicos para a ação, como profissionais experientes, a disponibilidade de todos equipamentos necessários, inclusive aeronaves para sobrevoos na área, barreiras e cordões sanitários, assistência de alimentação, apoio e assistência especial aos povos indígenas que compartilham o território onde ocorreu o contato. Este momento, tão delicado, pode implicar o extermínio de vidas de uma população recentemente contatada.

De forma sintética, diante de risco tão grave, pedimos:

- Ações rápidas, emergenciais e definição e implementação do Plano de Contingência para situação de contato;

- Imediata assistência de saúde e indigenista para as populações do entorno;

- Recursos emergências para apoio a equipes de campo

- Informação pública e transparência;

Brasília, 19 de agosto de 2020

Assinam indivíduos e organizações listados abaixo

- Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB (Brasil)
- Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - COIAB (Brasil)

- Manxinerune Ptohi Phunputuru Poktshi Hajene - MAPPHA (Brasil)

- Associação Apiwtxa do Rio Amônia

- Associação dos Povos Indígenas do Rio Humaitá

- Cooperativa do Povo Shawãdawa do Igarapé Humaitá Pushuã

- Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre -AMAAIAC (Brasil)

- Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre) (Brasil)

- Conselho Indigenista Missionário – CIMI (Brasil)

- Instituto Socioambiental — ISA (Brasil)

- Sociedade para a Antropologia da América do Sul (SALSA)

- GT Ecologías Políticas Desde el Sur, Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO)

- José Carlos dos Reis Meirelles, sertanista aposentado da FUNAI (Brasil)

- Wellington Figueiredo, sertanista aposentado da Funai (Brasil)

- Antenor Vaz, sertanista e consultor para metodologias e políticas de proteção para povos indígenas isolados e de recente contato na América do Sul. (Brasil)

- Marcelo dos Santos, sertanista aposentado da FUNAI e ex-coordenador da Coordenação geral de Índios Isolados e de Recente Contato (Brasil)

- Elias dos Santos Bígio, indigenista aposentado da FUNAI e ex-coordenador da Coordenação geral de Índios Isolados e de Recente Contato (Brasil)

- Felipe Milanez, professor da Universidade Federal da Bahia e autor do livro Memórias Sertanistas (Brasil)

- Manuela Carneiro da Cunha, Antropóloga, professora titular aposentada da USP, e professora emérita da Univ. de Chicago, membro da Comissão Arns de Direitos Humanos e da Academia Brasileira de Ciências (Brasil)

- Douglas Rodrigues - médico sanitarista, professor e pesquisador aposentado do Projeto Xingu/UNIFESP (Brasil)

- Centro de Trabalho Indigenista – CTI (Brasil)

- Land is Life – LIL (Equador)

- Enrique Vela, coautor del Informe Regional, cap. (Equador).

- Iniciativa Amotocodie (Paraguay)

- Organización Payepie Ichidie Totobiegosode - OPIT (Paraguai).

- Federacion Nativa del Río Madre de Dios e Afluentes - FENAMAD (Peru)

- Grupo de Trabajo Socioambiental de la Amazonía – Wataniba (Venezuela)

- Fondo Ecuatoriano Populorum Progressio - FEPP (Equador)

- Amazon Conservation Team – ACT (Brasil, Colômbia, Suriname)

- Organization of Indigenous Peoples in Suriname - OIS (Suriname)

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Domingos Bernardo: morre jurista autor do parecer que liberou ayahuasca no Brasil

POR JAIR ARAÚJO FACUNDES



 

 

 

 

 

 

 

 

O jurista Domingos Bernardo Gialluisi da Silva Sá faleceu nesta segunda-feira (17), aos 79 anos, no Rio de Janeiro. Toda pessoa que toma ayahuasca no Brasil deve-lhe muito. Qualquer pessoa que se interesse pelos direitos fundamentais e, em especial, pela liberdade de religião, precisa conhecer sua obra e pareceres. Quem se interessa pelo tema Constituição enquanto consenso mínimo para uma sociedade caracterizada pela diferença ter alguma estabilidade e merecer adesão de seus cidadãos, deveria lê-lo.

A liberação da ayahuasca no Brasil (ainda) é um processo lento, com avanços e retrocessos, uma obra inacabada.  E essa obra teve de Domingos Bernardo uma contribuição inestimável e insuperável.

Há uma infinitude de pesquisas sobre ayahuasca em várias áreas do conhecimento humano, como antropologia, sociologia, farmacologia, psiquiatria, neuroquímica etc.

Mas o grande embate, a grande arena onde se decidiu e se decide acerca da liberação de seu uso nos vários países, deu-se e ainda se dá no coliseu do direito, justamente uma área com raras pesquisas. Muito raras.

Há um consenso sobre a liberdade de credo. Praticamente todos com ela concordam, em todos os países, até em algumas teocracias. Mas saber quando essa liberdade deve prevalecer mesmo contra a vontade da maioria de uma sociedade, mesmo contra a expressão jurídica dessa vontade (a lei) é tema que divide juristas consagrados e teóricos afamados.

 

Praticamente todos os países do mundo, mesmo as tiranias, tem algo a que chamam de constituição e/ou uma carta direitos fundamentais, além de inúmeros tratados internacionais. Mas essas cartas de direitos, por um lado, garantem o primado da lei aprovada pela maioria de sua população direta ou indiretamente, e simultaneamente, asseguram a liberdade de credo; por outro lado, não explicam como essas duas proposições primordiais devem ser harmonizadas quando colidem frontalmente.

Domingos Bernardo era um pensador. Um erudito. Um liberal no sentido mais excelso que essa palavra um dia teve e ainda tem, quando bem compreendida. Ele acreditava, e assim escreveu, que as liberdades, não importam quais, não podem ser reprimidas injustificadamente. Ele sustentava, com base nos grandes pensadores, que o Estado, que o Governo não deve intervir arbitrariamente na vida e convicções de um homem.

Domingos Bernardo professava a crença, urgente hoje, de que o Governo deve estar a serviço de seu povo, não o contrário. Como bom leitor de Stuart Mill, tinha especial atenção quando deliberava acerca dos limites da atuação do Estado frente ao cidadão, em especial, integrante das minorias.

Conheci Domingos em 1986, quando veio ao Acre colher elementos para decidir acerca da liberação da ayahuasca, questionada, seu uso, pela então Dimed (Ministério da Saúde), na primeira manifestação do Governo Federal sobre o uso da ayahuasca. Até então havia, em Rio Branco (AC) e Porto Velho (RO), pequenas escaramuças entre polícia e praticantes, entre judiciário e igrejas etc.

Tornei a reencontrá-lo em 2006, como colegas integrantes do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT) que elaborou os estudos que subsidiaram a Resolução 1/2006, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD): acresceu, às características da juventude, a sabedoria e a experiência da idade mais avançada.

Era um homem que reunia virtudes ímpares, como coragem, sabedoria e uma incrível humildade. A fala mansa, pausada era inversamente proporcional à força de seus argumentos e pensamentos bem elaborados e lastreados em fina bibliografia.

Há várias formas de compreender a liberdade de credo (concepções). Algumas melhores, outras nem tanto. Uma delas, muito corrente, diz que devemos “tolerar” os diferentes. Algo como permitir que uma idéia ou crença exista, desde que não incomode à maioria. Outra forma, bem diferente, sustenta que devemos respeitar as pessoas e suas idéias, tanto quanto possível, por serem detentoras de autonomia, dignidade e capacidade de pensar. Não é “tolerar”.

Todo ayahuasqueiro, em especial aqueles que se interessam pela história desta bebida, deveria ter uma cópia do parecer de Domingos, aprovado por unanimidade pelo Confen, em 1987 (parecer final). Um primor de cultura. Os vários ramos do conhecimento humano, como farmacologia, antropologia e filosofia desaguando no Amazonas do direito, inundando a todos com argumentos e persuasão.

Domingos vai fazer falta. Muita.


Jair Araújo Facundes é juiz federal no Acre