quarta-feira, 25 de novembro de 2015

João Rodrigues: uma vida repleta de dificuldades, desafios e sentido

POR JAIR ARAÚJO FACUNDES 


Dia dos pais significa almoçar com papai, em mesa grande e farta, um vozerio de netos, filhos, bisnetos, amigos. Depois tomar suco de cupuaçu com ele e ouvir suas histórias. Comer banana frita com canela e açúcar. Ou jogar damas. Abraçá-lo. Foi bom fazer isso. Enquanto podíamos.

Descartes. E um caboclo. Papai estava me ensinando a fazer caiçuma, bebida feita com macaxeira, de origem indígena. Quanto de gengibre? Indaguei. Ele pegou um punhado de gengibre e jogou no pilão para macerar. Insisti na pergunta: como o senhor sabe que essa é quantidade suficiente? Na base, respondeu-me. Mas eu não sei o que é “base”. Sei o que é quilo, grama, litro, metro, afirmei. Ele continuou macerando, e disse: então tá.

O mundo era e é grande pela possibilidade de me distanciar de quem gosto. Porque o mundo tem sentido em razão das pessoas. Com a morte de papai o mundo ficou menor, porque já há não distância que, percorrida, aproxime-me dele. Também ficou menor porque falta um pedaço. Enorme. Na alma.

Charles Taylor é filósofo canadense e professor de várias universidades. Em famoso texto diz que nossa identidade é formada dialogicamente (e não monologicamente), a partir do contato com o outro-importante, pessoas que são referências em nossas vidas, que nos passam a noção do que tem valor e do que vale a pena ser seguido. Podem ser parentes, líderes políticos e comunitários, pessoas de expressão, ícones pop. É fácil ser referência se somos ricos, famosos, gênios da física, médico etc.

Papai era carpinteiro e professor primário. Homem simples. Mas inspirou várias pessoas. Não só a mim. Não porque era honesto, trabalhador, responsável. Mas porque, além disso, mostrava, com sua vida, que a existência tem sentido, propósito e alegria, mesmo na pobreza em que viveu, mesmo com as dores e tristezas que sofreu, apesar das frustrações que teve; que a vida não tem valor apenas quando suntuosa, ou feita apenas de conquistas fantásticas. Talvez ele fosse assim porque via a vida como uma singular oportunidade de mostrar a Deus que fez bom uso dessa dádiva.

Disse a ele certa feita que ele fez uma aposta perigosa ao me criar livremente, no sentido de que ele nunca tentou ser aquele que detém o conhecimento do mundo ou do tempo, o saber e a resposta de todas as questões. Ele riu, e disse, do modo dele, que assim o fez por várias razões. Ele via os filhos como pessoas capazes, e que acreditava que somos capazes quando assumimos nossas decisões, certas e principalmente as erradas; e que se ele respondesse por mim estaria contribuindo para que eu pensasse que o erro não é do homem, nem a aprendizagem que dele provém, que viver com o que somos e fazemos é uma conquista.

Com algum esforço eu faria um livro sobre suas idiossincrasias, rabugices. Mas sem esforço eu escreveria uma biblioteca sobre suas virtudes. Ele dizia que boa parte do sentido da vida consistia em reconhecer esses defeitos, pelejar com eles para, se possível superá-los, mas pelo menos enfraquecê-los. Ele não aspirava à santidade, mas à humanidade de ser homem num esforço contínuo contra si mesmo, para mudar e se apresentar melhor, como ele tanto falava, a Deus. Tinha a convicção de que, apesar das limitações que possuímos, podemos melhorar. E muito. Não se apresentava para mim como um oráculo, um pai “autoridade”, mas como um alguém que já estava na estrada da vida há algum tempo, e que talvez pudesse compartilhar o conhecimento sobre alguns perigos e atalhos dessa estrada.

Fiz aniversário dia 24. No dia seguinte, ele aniversariaria. Marcamos um almoço e, antes, um encontro às 5 horas da manhã; apenas ele com os filhos, justamente para comemorarmos seus 75 anos vendo o sol nascer. Mas ele se foi a uma hora da madrugada. Foi rever, assim acreditamos, um Jardineiro Divino e Velho amigo, agradecer o dom da vida e a oportunidade de tê-lo conhecido. Foi um bom aniversário. Foi em paz e deixou-nos em paz.

Papai tinha vários desejos. Como todo mundo. Mas os desejos dele apequenava os meus. Eu queria fazer um mestrado em Harvard; ele queria ajudar um neto a voltar a estudar; eu queria conhecer a Dinamarca; ele tentava juntar dinheiro da aposentadoria dele para pagar um curso preparatório de concurso para outro neto. Eu queria correr 10 km em menos de uma hora; ele queria bailar o Cruzeiro (hinário do Mestre Raimundo Irineu Serra), que exige 5,5 horas. Ele tinha neuropatia, pernas sem força; andava com dificuldade. No último natal ele tentou bailar. Conseguiu apenas uns poucos minutos. Um neto o filmou bailando aquele que, mais tarde saberíamos, seria o último hino a ser por ele bailado. A primeira estrofe desse hino diz muito do que é a morte, para quem sabe viver, na religião da floresta (ayahuasca), por ele professada:

“Choro muito e lamento
Tudo que já se passou
Deixo tudo saudosamente
E vou viver no meio das flores”

Comungo uma crença. Diz, entre outras, que podemos retornar a esse plano, se necessário. Se eu tivesse que voltar a outra vida e o Criador, por infinita misericórdia, atendesse a um único pedido, rogaria tê-lo como pai. De novo. Teria duas certezas. Uma vida repleta de dificuldades e desafios. Mas veria, na vida, sentido. Apesar de tudo. De novo.

Jair Araújo Facundes é juiz federal

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Ministério da Saúde recomenda exame em índio de recente contato doente no Acre

Kama Sapanawa aparece atrás de Fernando Ashaninka, que segura o jabuti no primeiro contato
Um indígena da etnia sapanawa, que estabeleceu o primeiro contato em junho do ano passado, na fronteira do Brasil com Peru, está doente e um relatório médico do setor do Ministério da Saúde que cuida de casos envolvendo índios isolados e de recente contato recomenda que o mesmo seja examinado com urgência.

O indígena faz parte do grupo de jovens que contatou indígenas ashaninka e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), na Aldeia Simpatia da Terra Indígena Kampa e Isolados do Alto Rio Envira, no Estado do Acre.

Kama, que aparenta ter 20 anos, contraiu uma gripe que evoluiu para pneumonia e agora está sob suspeita de ter sofrido derrame pleural. Após o contato, os sapanawa foram vacinados, mas continuam com imunidade baixa. O Ministério da Saúda aguarda posicionamento da Funai para providenciar a remoção do indígena para exame e tratamento em Rio Branco.

Desde o contato, a Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) tem sido criticada no Acre por antropólogos e indigenistas porque  não teria se preocupado em plantar roçados para alimentar o grupo de 34 sapanawa. Uma criança nasceu após o contato.

Os sapanawa se dividiram em dois grupos em busca de comida nas bases da Funai. Alguns foram para a base do Douro, que fica no Rio Tarauacá, acima da município de Jordão. A menos de dois quilômetros em linha reta, abaixo da base, existe uma comunidade de brancos com mais de cem pessoas.



A proximidade para transmissão de doenças é grave por falta de roçados. Funcionários da FPE da Funai têm sido criticados porque perderam tempo com permacultura da quinoa, quando se sabe que o alimento básico dos índios é macaxeira, milho e banana.

Há tempos que os sapanawa peregrinam em busca de comida pela aldeia Simpatia, abaixo da base do igarapé Xinane e mais recentemente na base do Douro. Da base do Xinane para a base do Douro, no Rio Tarauacá, são três dias de caminha dentro da floresta.

Até o uso de roupa sem o cuidado de lavar tem causado muita micose nos índios recém contatados, além de gripes e outras doenças tropicais.

Consultado pela reportagem, o indigenista Leonardo Lenin, que chefia a Frente de Proteção Etnoambiental (FPE), manifestou preocupação. Ele explicou que na base do igarapé Xinane existe uma equipe técnica de saúde permanente.

Na sexta-feira (6) da semana passada, uma equipe de saúde foi deslocada para a base do Douro para acompanhar o indígena, mas deixou a área na terça-feira (10).

“Agora temos um servidor fazendo o monitoramento. Como houve melhora, estamos esperando avaliação médica para tratar da remoção dele para Rio Branco. Nesses casos, a gente fica muito receoso de fazer uma remoção. Estamos adotando todos os procedimentos ainda em área”, afirmou Lenin.

O chefe da FPE disse que todos os roçados da base Xinane estão sendo reativados para prover alimentação suficiente aos indígenas, mas que esse é um trabalho demanda tempo.

A preocupação maior da Funai é com a permanência de sete indígenas de recente contato na base do Douro, que s deslocaram para lá por causa da existência de mais comida. Porém, a proximidade com os moradores brancos da região os deixa mais vulneráveis às doenças.

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