Ele cobre melhor a Amazônia
Carlos Tautz (*)
Lúcio Flávio Pinto é quem melhor cobre a Amazônia, aquela metade superior do mapa que a sociedade brasileira - e, nela, os jornalistas - enxergam de forma míope. Tratada por "hiléia" e "inferno verde" pela ditadura, com omissão pelos demais governos e, pela imprensa, de forma quase folclórica, a região e seus quase 20 milhões de habitantes vêm sendo vítimas de uma espécie de cegueira.
A imprensa, diz Lúcio, é "incapaz de ver, por trás da beleza cênica, a complexidade amazônica como parte de uma engrenagem internacional que a tomo como mote para um extenso circuito produtivo". E, assim, deixa de discutir qual o desenvolvimento adequado e necessário para a bacia hidrográfica que reúne nove países (o Brasil é só o que tem perto de 70% desse território), guarda quase 20% da água potável de superfície do planeta, tem a maior diversidade biológica da Terra e é encarada como a principal provedora dos recursos naturais do globo.
Só aqui no Brasil a Amazônia de que trata Lúcio inclui os Estados da Amazônia Clássica (Pará, Amazonas, Rondônia, Roraima e Amapá), mais Mato Grosso, Tocantins e quase metade do Maranhão. Foi, como ele recorda, uma região criada para receber os benefícios dos incentivos fiscais, a partir da ação da SPVEA, antecessora da Sudam, em 1953.
A seguir, vai a entrevista com Lúcio Flávio Pinto, o criador do Jornal Pessoal, escrito, impresso e distribuído por ele, e somente ele, que por vontade própria abandonou todos os grandes veículos nacionais e preferiu voltar a Belém para cobrir a Amazônia. Nesse ping pong, você encontrará reflexões sobre jornalismo, geopolítica e ética, essas coisas das quais às vezes se esquece.
Vamos qualificar o meu interlocutor: quantos anos de profissão você tem, quantos livros você escreveu e quantos prêmios Esso ganhou?
Tenho 39 anos de profissão. Escrevi 10 livros individuais sobre a Amazônia. Participei de vários outros livros coletivos, a maioria sobre a Amazônia e outros sobre jornalismo, inclusive de antologias de textos. Ganhei três Essos nacionais coletivos, com a equipe de Realidade e de O Estado de S. Paulo, uma menção honrosa nacional e um Prêmio Esso individual regional. Também ganhei dois Prêmio Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas, em 1988. Um deles porque o Jornal Pessoal foi considerado o melhor jornal do Norte-Nordeste do país. Em 1997 ganhei um Colombe d'Oro per la Pace, em Roma, concedido pela Archivio Disarmo. Fui o primeiro não-europeu a receber a premiação.
Que avaliação você faz da cobertura da Amazônia feita pelos jornais da própria região?
Muito ruim. No dia a dia é melhor, evidentemente, do que os de fora porque cobre o cotidiano, registrando-o. Mas não vai além do velho conceito dos "faits-divers", sem uma visão de conjunto e contextualização. Nas coberturas especiais e sazonais perde muito porque se vale do material das agências jornalísticas nacionais, que costumam (já não com a mesma freqüência, porém) mandar enviados especiais à região. Além de investir pouco no material humano que têm e na cobertura da dinâmica humana, que se espraia pelo vasto interior amazônico, as empresas jornalísticas locais estão condicionadas por interesses paroquiais, vinculações políticas e atrelamento aos governos, ainda seus maiores anunciantes.
Você costuma dizer que a imprensa do sudeste é preconceituosa em relação à cobertura da amazônia. Por quê?
Antes, por exemplo, a grande imprensa não aceitava que se condicionasse os investimentos ditos produtivos (como a pecuária de corte) à ecologia porque floresta não dava rendimento. Agora, é incapaz de ver, por trás da beleza cênica, a complexidade amazônica como parte de uma engrenagem internacional que a tomo como mote para um extenso circuito produtivo. Por causa de sua "consciense mauvaise", o Sul Maravilha (para tomar uma entidade mitológica como símbolo) se recusa a tratar de problemas que só parecem ter sentido no
parque industrial paulista, como os que emperram a cadeia produtiva na Amazônia. Há 20 anos o Pará garante 15% das necessidades de alumínio primário do Japão a um custo inferior ao que os japoneses teriam se continuassem a fabricar o material no seu próprio território, graças ao brutal subsídio concedido à Albrás (controlada pela Companhia Vale do Rio Doce), durante as duas décadas anteriores, ao custo de 2 bilhões de dólares para o tesouro nacional. Lingote é a escala produtiva seguinte à da energia bruta. Como é impossível transmitir energia bruta por 20 mil quilômetros, pelo mar, seguia o lingote. E vai continuar a seguir, com a renovação do contrato de energia (3,4 bilhões de dólares) por mais 20 anos. Isso não aparece na grande imprensa, que só quer saber de biopirataria, reserva extrativista et caterva.
Quem cobre melhor a região: a imprensa brasileira ou a estrangeira?
Já tivemos excelente cobertura da Amazônia na grande imprensa brasileira, sobretudo em "O Estado de S. Paulo". Se você verificar a bibliografia sobre a região, no período do regime militar, constatará que quase todos os livros relevantes sobre essa fase fundamental da história brasileira citam fartamente material do "Estadão". Por quê? Porque havia uma excelente estrutura de informações funcionando na empresa. Em São Paulo havia um núcleo de pautas e de cobrança de matérias, que atuava tanto para o lado das sucursais e correspondentes, evitando matérias superficiais, inconsistentes ou mesmo viciadas, quanto para o lado dos editores, evitando que eles adotassem um viés do exotismo, próprio de quem não acompanha sistematicamente a realidade regional. O "Estadão", na segunda metade da década de 70, instalou uma sucursal em Belém e correspondentes em todas as capitais e mesmo em bases municipais, com efetivo poder decisório sobre as matérias. Essa estrutura exige dinheiro, algo que foi cortado dos programas das empresas jornalísticas atualmente. Mas não só isso. Requer compromisso com a causa. Sofrendo a censura do Estado, instalada dentro da redação, que provocou o receio traumático de algo como havia acontecido no Estado Novo, a direção do "Estadão" resolveu desafiar o regime que censurava o jornal. Mostrou que, a despeito dos cortes nas páginas do jornal, o "Estadão" continuava a saber mais do que Brasília, inclusive sobre a jóia da coroa castrense, que era a Amazônia, centrada no projeto de "integrar para não integrar", tão caro à geopolítica produzida pelo Conselho de Segurança Nacional. Isso tudo acabou. O que restou é perfumaria diante do que já tivemos. Ou seja: andamos para trás. Isso, no plano nacional. Internacionalmente, há momentos felizes de cobertura. Mas esse é perfume
barato. Logo evola. Mesmo na imprensa inglesa. A Amazônia tem fascínio, mas é distante. Ninguém, nos centros decisórios, nacionais e internacionais, a entende. Nem quer. Há, no inconsciente coletivo, a presunção de que a floresta vai acabar e logo a Amazônia se normalizará, ficando igual a todas as regiões desmatadas do planeta. Como sempre foi e será, na mentalidade do homo agricola, fazedor de desertos. Mal se percebe que a Amazônia é nossa última oportunidade de instaurar a civilização florestal, única na história da humanidade. Por amarga ironia, porém, somos o povo que mais desmatou em todos os tempos.
Qual é teu objeto de trabalho, na verdade: cobrir meio ambiente ou cobrir os modelos de desenvolvimento que se aplicam à região?
Eu entrevistava, na antiga sede da Fiesp, no viaduto Maria Paula, o engenheiro Eduardo Celestino Ribeiro. Ele era dono de uma grande empreiteira, a Cetenco, e de uma fazenda de gado no sul do Pará. Homem inteligente, bandeirante típico. Eu acompanhava com interesse seu raciocínio até ele chegar à Amazônia. Comecei a ficar alarmado: a Amazônia que ele queria criar não era a mesma Amazônia na qual eu havia nascido e pela qual me apaixonara, mais ainda quando me distanciei dela para tentar "vencer no Sul", o único caminho do sucesso no modelo concentrador colonial. Ele queria transformar floresta em pastagem e abrir estradas de penetração para todos os lados com o investimento ideal para "amansar a terra", a fazenda de gado. Naquele momento decidi que voltaria para minha terra e me comprometeria a informá-la sobre o avanço do colonizador. Queria fornecer-lhe informações em tempo real, que pudessem ser agendadas para uma plataforma de ação imediata, antes que as decisões baixassem de Nova York, Paris, Tóquio ou São Paulo, como caixas pretas. Tenho tentado isso até hoje. Faço esse trabalho por ter a esperança de que na Amazônia seja possível escrever uma história diferente do enredo traçado na Ásia e na África, nas áreas coloniais. É difícil fazer esse acompanhamento porque os "grandes projetos" partem do zero ao 80 rapidamente, como se fossem carros de Fórmula 1. Hoje, gastamos 400 milhões de dólares importando cobre. Amanhã, estaremos exportando US$ 3 bilhões. E ainda assim, o que é trágico, importando. Eu denunciei como pude, na época, o contrato de energia da Eletronorte com a Albrás, iniciado em 1984. Consegui pouco ou quase nada. Mas pensei: em 2004 será diferente. A sociedade estará bem informada e não deixar que se repitam as cláusulas leoninas em favor da empresa de alumínio. Pois bem: talvez o contrato atual seja ainda mais leonino do que o primeiro. A sociedade não se apercebe disso porque não se interessa efetivamente pelo essencial das questões amazônicas ou porque o poder de manipulação das empresas é formidável. Inclusive com a ajuda de jornalistas.
Falar da região significa automaticamente tratar de meio ambiente, qualquer que seja o tema abordado?
Na Amazônia, quase sempre. Sem isso, ninguém entenderá porque esse pedaço do Trópico Úmido é Amazônia e não África, Ásia, Cerrado ou qualquer outra designação. É Amazônia porque todo seu ciclo de vida, que é fechado, depende das árvores. Elas é que garantem a constante reciclagem, dos nutrientes à água. Há uma lição clara nesse sentido, que as pessoas não querem ver, nem os habitantes da Amazônia. Quando só a região produzia borracha para um mundo faminto desse produto, imaginava-se que a natureza havia conferido esse monopólio à Amazônia, terra nativa da hevea brasiliensis. No entanto, essa fantástica árvore só vive equilibradamente na heterogeneidade. Todas as vezes em que foi tentado adensá-la, para dar-lhe caráter econômico, ela foi atacada pelo mal das folhas. Até hoje, os seringais de cultivo existentes na Amazônia não vingaram. Os seringais nativos, que ainda existem, não são competitivos. Metade da produção recorde de borracha, no ano passado (por valor absoluto, sem atualização), foi obtida em São Paulo. A natureza presenteou a Amazônia com a seringueira, mas condicionou o presente à dispersão da árvore numa mata com 100 outras espécies por cada hectare. Por que essa heterogeneidade? Ela tem seu lado ruim, vista pela perspectiva de heveicultura, mas tem seu lado bom pela riqueza biológica, pelo acervo genético que contém. E mesmo panorâmico: ainda que não desse o látex, a seringueira, sem sua companhia natural, é apenas um gigante frágil. Isolada, qualquer pé de vento mais forte a derruba. A complexidade desse equilíbrio é o que distingue a Amazônia e a complica no panorama dos Trópicos Úmidos, mas é também sua essência de riqueza, de originalidade, de especificidade. Poucos têm paciência para entender isso. Por conseqüência, poucos
compreendem o que é a Amazônia.
O que significa o fato de agora você receber da Justiça um tratamento mais duro do que durante a ditadura? Que agora a cobertura de meio ambiente toca mais no capital do que tocava há 30 anos? Significa que agora, falando mais a fundo dos projetos de desenvolvimento, você vai mais ao coração do capitalismo, e que isso ameaça mais do que criticar, como antes, o governo?
Um pouco isso, mas a coisa é muito mais complexa. Os militares que impuseram a marca do Projeto Amazônia em geral acreditavam no que estavam fazendo. Havia corrupção, havia desvios, havia favorecimentos, mas o núcleo doutrinário do "modelo amazônico" achava que estava fazendo o melhor para "integrar" a Amazônia, assim evitando que ela fosse "entregue" aos estrangeiros. O resultado acabou sendo o contrário, mas esses ideólogos do desenvolvimentismo amazônico acreditavam na consistência de sua política. Por isso, e porque a Amazônia era (e é) secundária no projeto nacional, marginal e residual, apesar do seu tamanho e da retórica que lhe diz respeito, admitiam uma margem de crítica muito maior do que a outros pontos mais nervosos, mais sensíveis do modelo nacional. Pareciam admitir que a crítica do que se fazia na Amazônia não atingia o coração do regime. Além disso, por ser fronteira, a Amazônia era uma terra de incógnitas. Quem sabe, o crítico não estaria certo? Quem sabe, não estaria apontando uma situação ignorada pelos donos da doutrina de segurança nacional aplicada à Amazônia? Dou um exemplo. Fiz uma pauta sobre grilagem de terras na Amazônia, a ser
cumprida por mim e pela rede de sucursais e correspondentes de "O Estado de S. Paulo". Essa pauta, que era extensa, com 10 laudas, foi parar no Conselho de Segurança, isso em 1977. O secretário-geral do CSN entrou em contato com o doutor Júlio Mesquita Neto e pediu que eu fosse a uma reunião com os integrantes da Câmara de Terras do Conselho. Era a primeira vez que um jornalista era convidado (não sabíamos então se com aspas ou não) para defrontar-se com um dos setores estratégicos do CSN. Fui bem recebido, debati com militares e assessores com franqueza, divergimos e discutimos, mas saí ileso e bem impressionado com o nível do diálogo. E eles perceberam que eu conhecia profundamente o assunto pautado, inclusive uma lei sobre discriminatória de terras públicas que eles haviam acabado de fazer aprovar no Congresso. As matérias saíram, incomodaram muito, sobretudo os grandes donos de fazendas na Amazônia, que eram paulistas, mas ganhamos a menção honrosa nacional do Prêmio Esso naquele ano.
Por que você recusou integrar o Grupo de Assessoramento Internacional sobre florestas, que faz o monitoramento das políticas públicas federais na Amazônia?
O convite foi muito honroso, o grupo de assessoria é importante para definir e acompanhar as políticas públicas voltadas para a Amazônia, acho que eu lhe daria contribuição útil e aprenderia bastante na convivência com as pessoas tão qualificadas que o integram, mas vi incompatibilidade ética entre fazer parte do grupo e manter o Jornal Pessoal, que tem pago com sangue e sofrimento por sua radical independência e autonomia. Talvez seja excesso de pudor e ética, mas as perseguições que tenho sofrido nos últimos 12 anos me obrigam a ser como a mulher de César: não apenas ser independente e honesto, mas parecê-lo também. Lamentei muito ter que tomar essa atitude, depois de muito pensar e recalcitrar, porque significou uma perda muito grande para mim. Mas achei que, para aceitar o convite, teria que parar o Jornal Pessoal. O que gostaria de fazer, até, mas não posso. Esse minúsculo jornal se tornou um símbolo de resistência e uma tribuna, que ressoa a voz da Amazônia, sufocada ou ignorada. É fugaz como o perfume que fica no ar, mas tem essa força esvoaçante que lhe deu o grande compositor maranhense João do Vale: "A minha voz o vento pode levar, mas o meu perfume fica morando no ar".
(*) Jornalista
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Nota do blogueiro: Carlos Tautz esqueceu de citar o Acre como um dos Estados que compõem a suposta Amazônia Clássica. Além disso, o slogan da ditadura militar na Amazônia era "integrar para não entregar" e não "integrar para não integrar", conforme foi atribuído ao entrevistado numa das respostas.