terça-feira, 9 de abril de 2013

TOM ORGAD

Grupos querem globalizar ritual do Santo Daime e se afastam da origem, diz pesquisador israelense



O desconhecimento a respeito da origem e da divisão dos seguidores do Santo Daime contribui para o consumo crescente da bebida, dentro e fora do Brasil. Usando o mesmo nome, vários grupos são percebidos equivocadamente por pesquisadores e pela opinião pública como parte de uma mesma tradição religiosa. As diferenças existem, são significativas e dividem os adeptos em duas tradições bem distintas, de acordo com o pesquisador israelense Tom Orgad, 31, da Universidade de Tel-Aviv, autor de uma tese de doutorado, escrita em hebraico, intitulada "O Daime: de um ritual comunitário local a uma religião messiânica expansiva", que  lança luz no ambiente em que se desenrola a diferença entre as duas principais versões do Santo Daime.

Ayahuasca, Daime, Santo Daime (existem outros tantos nomes) é uma bebida cuja origem ancestral se atribui aos índios do Peru. Há muitos anos é consumida durante rituais religiosos por populações de todos os países da Bacia Amazônica, mas ficou famoso mesmo a partir do Acre. Ayahuasca é um termo de origem quéchua, que significa “vinho das almas” ou “cipó dos mortos”.

A bebida, obtida a partir do cozimento do cipó jagube (Banisteriopsis spp.) e da folha do arbusto chacrona (Psychotria viridis), é capaz, como acontece durante um sonho, de revelar o mundo espiritual, sendo o efeito conhecido como "miração". É rica em harmina, harmalina e DMT (dimetil triptamina).

A origem do que se conhece atualmente como doutrina do Daime se deu em Rio Branco (AC), durante a primeira metade do século XX, quando o negro maranhense Raimundo Irineu Serra (1892-1971), fundou o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, que funciona na localidade conhecida como Alto Santo, a 10 Km do centro da cidade. Pode-se dizer que o grupo original é ortodoxo.

O outro grupo, que tem maior visibilidade, dentro e fora do país, surgiu em meados da década de 1970, quando Sebastião Mota se desligou do centro original. Mota abriu o que é conhecido atualmente  com Instituto de Desenvolvimento Ambiental, do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra.

Tom Orgad estabelece em sua tese as diferenças entre os dois principais grupos. Enquanto o original se considera esotérico e evita o título de religião no sentido convencional, o outro movimenta-se pela “protestantização” do Daime, abrindo filiais dentro e fora do país.

- Essa versão virou uma religião messiânica expansiva, uma igreja, faz parte de um movimento mais amplo, da espiritualidade moderna e da new age, da nova era. A nova comunidade do Daime autorizou o uso de outras substâncias psicoativas, como a maconha, que passou a ocupar uma parte central no ritual. Também inseriu elementos da umbanda no ritual e desenvolveu uma filosofia utópica que enfatiza elementos de panteísmo e idealização da natureza  – assinala o pesquisador, para quem os seguidores de Sebastião Mota estão empenhados em globalizar o ritual do Daime.

Tom Orgad é filho de família judaica. Agnósticos, os pais dele, que são artistas, sempre consideraram o judaísmo como tradição familiar e não como religião. No Brasil, como um "buscador espiritual", se tornou cristão e frequenta o centro original do Daime.

O pesquisador admite que poderia, mesmo a família não sendo de judeus praticantes, enfrentar problemas no país dele ao declarar que frequenta um centro de doutrinação cristã:

- A maioria dos judeus israelenses, mesmo que seja não praticante, é muito orgulhosa de sua raça e nacionalidade. Não apoiariam o envolvimento de um judeu com nenhuma outra tradição religiosa, especialmente com uma ligada ao cristianismo, com qual o judaísmo diverge em muitos aspectos. Agradeço a meus pais por sua tolerância.

Veja a entrevista com Tom Orgad:

O que motivou você a pesquisar sobre o Daime?

Eu queria analisar e entender as diferenças entre vários grupos que se denominam Daime ou Santo Daime. Embora vários grupos se apresentem usando o mesmo nome, estão sendo percebidos por uma grande parte do público e até por alguns pesquisadores, como se pertencessem à mesma tradição religiosa. Mas existem diferenças muito significativas entre eles. Essas diferenças dividem o Daime em duas tradições bem distintas.

Você diz isso porque existe um centro original, a partir do qual surgiram grupos que se tornaram prevalentes na opinião pública, na mídia e no mundo?

Exatamente. Existem duas versões do Daime: uma é a versão original, que percebo como um ritual comunitário local. Este ritual foi estabelecido em Rio Branco durante a primeira metade do século XX por Raimundo Irineu Serra, negro nascido no Maranhão, conhecido como Mestre Irineu. O ritual está sendo preservado até o presente no mesmo local que ele fundou, no Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo ou Ciclu – Alto Santo. A outra versão é muito mais recente. Ela foi formada nos anos 70 por Sebastião Mota, um membro que retirou-se do grupo original e abriu seu próprio centro. Essa versão virou uma religião messiânica expansiva, uma igreja, dirigida por um instituto religioso chamado Ida-Cefluris, que significa Instituto de Desenvolvimento Ambiental do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra. Ele está empenhado em globalizar o ritual do Daime. O Cefluris mudou o ritual significativamente, criando uma versão modernizada e globalizada. Alguns dos elementos principais dessa versão são muito diferentes da tradição original do centro fundado por Irineu Serra. Essa divisão do Daime por vários motivos ainda não foi estudada profundamente pelo pesquisadores.

Quais os motivos?

Os motivos principais estão ligados aos interesses políticos e ao envolvimento pessoal dos pesquisadores com o movimento messiânico expansivo do Daime. A maioria dos pesquisadores do Daime desenvolve, em certo ponto, um forte vínculo pessoal com as comunidades pesquisadas, que na maioria dos casos pertencem ao Cefruris. Muitos se tornam membros oficiais do instituto que espalha a versão messiânica do ritual. Alguns dos pesquisadores mais conhecidos até dirigem igrejas. Portanto, em muitos casos, eles procuram defender os interesses do instituto religioso, da expansão do ritual, e formulam suas questões e temas de pesquisa tendo o objetivo da legitimação e legalização do Daime nos grandes centros urbanos do Brasil e do exterior.

Qual o problema disso?

O problema é que o centro original do Daime, que foi dirigido por Mestre Irineu até o falecimento dele, em 1971, discorda fortemente de vários elementos que o Cefluris adicionou ao ritual, e se opõe à sua expansão pelo mundo. Portanto, alguns pesquisadores preferem ignorar a existência da comunidade original do Daime e sua tradição distinta. Preferem varrer para baixo do tapete opiniões que podem contradizer ou atrapalhar suas atividades políticas em defesa da expansão do ritual. Um resultado dessa tendência é que poucos pesquisadores abordam as diferenças entre as versões do Daime, que eu acho bem significativas.

O que você pontua como diferença entre as duas versões do Daime?

Isso é o tema principal da minha pesquisa de doutorado. Para simplificar, diria que o Ciclu-Alto Santo, que preserva a versão original do ritual, percebe a tradição do Daime como sendo um trabalho espiritual esotérico e único. Seus membros rejeitam qualquer influência externa ou possibilidade de mudança. Acreditam que a tradição do fundador Irineu Serra deve ser mantida da mesma maneira que ele deixou. A versão expansiva, dirigida principalmente pelo Cefluris, faz parte de um movimento mais amplo, da espiritualidade moderna e da new age, da nova era. Assim, se concentra menos nos estudos deixados pelo fundador, e procura fazer mudanças necessárias para introduzir a nova versão do Daime e de mantê-la dentro do mercado global da espiritualidade alternativa.

Como isso aconteceu?

Nos anos 70, depois do falecimento de Irineu Serra, aconteceu uma divisão no Ciclu-Alto Santo, o centro original do daime. Um dos seguidores, Sebastião Mota, saiu e formou o seu próprio centro, o Cefluris, num lugar chamado Colônia Cinco Mil, na periferia rural de Rio Branco, no Acre. Na mesma época, estavam chegando ao Acre as influências do movimento new age, levadas por hippies e buscadores espirituais, principalmente do sul do Brasil, que procuravam se afastar do ambiente urbano e industrializado. No campo sociológico eles são definidos como membros do “cultic milieu” – um movimento geral de buscadores espirituais. Esses buscadores não pertencem a um movimento só. Eles operam como consumidores no mercado amplo da espiritualidade alternativa, na sociedade secular e capitalista. Assim, os buscadores que vieram para o Acre trouxeram influências ecléticas, de varias fontes.

Sincretismo?

Eles eram influenciados pelos escritos de Carlos Castañeda, que divulgou a ideia de iniciação espiritual, xamânica, usando substâncias psicoativas. Também foram influenciados pelas ideias modernas de canalização e terapias alternativas, além de versões das religiões afro-brasileiras. As lideranças do Ciclu-Alto Santo rejeitaram essas influências e insistiram em preservar sua versão do ritual. Sebastião Mota e os membros do seu novo centro receberam de braços abertos as novas ideias e influências. Gradativamente inseriu e assimilou padrões comuns do movimento new age dentro do seu ritual e sistema de crenças. Em outras palavras, depois da morte do fundador Irineu Serra, o Cefluris resolveu misturar a doutrina religiosa que ele deixou com alguns elementos prevalentes da espiritualidade alternativa global e da sociedade secular moderna.

Pode citar um exemplo concreto disso?

A nova comunidade do Daime autorizou o uso de outras substâncias psicoativas, como a maconha, que passou a ocupar uma parte central no ritual. Também inseriram elementos da umbanda no ritual e desenvolveram uma filosofia utópica que enfatiza elementos de panteísmo e idealização da natureza.

Essa versão do Daime é mais experimental?

Pode ser. Os líderes do Cefluris cultivam a ideia de que o Daime é parte de um movimento amplo. Assim, a bebida ayahuasca, que a versão original do Daime considera como substância única, cujo consumo é permitido durante o ritual, é percebida pelo Cefluris como mais um membro da tradição do que eles consideram como “plantas de poder”. Varias comunidades do Cefluris organizam rituais durante os quais ingerem ayahuasca, são pedro, que é um cacto psicoativo, além de maconha. O centro original do Daime procura seguir doutrina bem definida, separada de qualquer outro caminho ou prática espiritual, enquanto a versão expansiva flui entre buscadores espirituais e se permite experimentar e misturar.

Por isso é eclética, não segue, digamos, um fundamento?

Na minha opinião, o ecletismo também tem uma razão prática. O Cefluris segue o objetivo de formar uma rede global de igrejas do Daime. Não é mais uma comunidade só, onde um sistema único de crenças pode ser praticado e cultivado. Temos que lembrar as implicações comerciais. O instituto do Cefluris abastece com ayahuasca igrejas no mundo inteiro em troca de contribuição financeira. Embora o instituto não venda oficialmente a bebida, existem algumas comunidades na Amazônia, ligadas ao instituto, cuja fonte principal de renda é a exportação da ayahuasca.

Qual o resultado desse aspecto comercial?

Isso pode incentivar os produtores ou fornecedores da ayahuasca a não obrigar os consumidores a seguir uma tradição rígida, que poderia até limitar e reduzir a possibilidade de expansão e crescimento institucional. Isso pode gerar uma abordagem mais flexível. Esse elemento econômico cria uma diferença fundamental entre as versões do Daime. Pela versão original, a bebida ayahusca pode ser produzida somente num ritual específico, rigoroso e muito reservado, por uma equipe fechada de homens. Ela pode ser consumida somente dentro da comunidade, e nunca pode ser vendida para se obter lucro financeiro. A globalização do Daime, porém, mudou essa tradição. O instituto do Cefluris, que esta comprometido em enviar a bebida para dezenas de igrejas, às vezes usa maquinas ou inventa novas variações da bebida, como, por exemplo, uma forma mais concentrada, para facilitar o transporte.

Além de exportar a bebida do Acre e do Amazonas para outros estados, ela também é exportada para outros países?

Sim, o que agrava a situação. A bebida está sendo enviada para comunidades estrangeiras, cujos membros têm condições financeiras bem melhores que os produtores da bebida na Amazônia. Isso pode incentivar os produtores da bebida a pedir uma contribuição que também compense pelo tempo e esforço dedicados à produção. E assim a ayahuasca passa a ser a profissão de alguns. Além de criar conflitos e problemas internos dentro das comunidades que produzem e espalham a bebida, isso é completamente contra a tradição original, que, como já dissemos, proíbe o envolvimento de qualquer elemento comercial na produção ou no consumo da ayahuasca.

Então esses usuários de ayahuasca produzem a bebida, digamos, em escala industrial para alimentar vários centros espalhados pelo mundo?

Sim, começa a parecer uma fábrica, mas quero enfatizar que não venho criticar nem culpar quem conduz esse processo. Presumo que façam isso com boas intenções. Mas é importante destacar que este processo é muito diferente da tradição original do Daime, das instruções do fundados Irineu Serra, que o instituto do Cefluris diz seguir. Desde o momento que a comunidade do Cefluris abriu as portas para a modernização e globalização, as mudanças têm ocorrido de modo rápido e potente, o que parece quase incontrolável. O Cefluris se estabeleceu em 1974. Dentro de muito pouco tempo, inseriram o uso religioso da maconha e rituais umbandistas. Assim, menos de quatro anos depois do seu estabelecimento, o seu ritual já estava muito distante da versão original do Daime. Dois ou três anos mais tarde, já se formou uma nova visão utópica. Ela resultou em mudar da região da cidade de Rio Branco para Pauini, no Sul do Amazonas. Lá surgiu uma comunidade messiânica chamada Céu do Mapiá, considerada pelos seguidores como Nova Jerusalém, no meio da floresta amazônica. Pouco depois veio e formação do que chamo de igreja expansiva.

Quem mais influenciou a mudança?

Todas essas mudanças, que formaram a versão expansiva do ritual, foram incentivadas pelas influências dos buscadores espirituais e o mercado moderno dentro do qual eles operam . São consideradas completamente inaceitáveis no centro original, que existe até hoje. O problema é que a maioria dos pesquisadores e textos sobre o Daime, sobretudo o que está disponível na internet, apresentam este desenvolvimento como se fosse uma continuação direita da obra tradicional do Daime, fundada por Irineu Serra, no Alto Santo, a oito ou dez quilômetros do centro de Rio Branco, a capital do Acre. Mas o que aconteceu foi um processo desligado da obra dele. E isso criou uma história muito diferente, que não é a continuidade da versão tradicional.

Você diz que os daimistas no exterior praticam o ritual em países distantes, sem contato ou conhecimento com a tradição original. Como a prática deles é diferente de quem está ligado à tradição original?

De uma maneira bem interessante. A diferença não existe só entre daimistas dentro e fora do Brasil, mas também entre membros do centro tradicional do Alto Santo e das igrejas urbanas e modernas do sul do Brasil. Digamos que existe uma “protestantização” do Daime. A experiência mística imediata tem sido extremamente acentuada. Ela diminui a importância da estrutura social e do sistema religioso tradicional. Embora a experiência imediata seja muito significativa em todas as versões do Daime, o movimento messiânico a enfatiza ainda mais, reprimindo vários elementos tradicionais que têm uma grande importância na versão original do ritual.

Como é isso?

Na versão original, o consumo da ayhuasca é sempre complementado por várias práticas e elementos sociais que dão uma forma estruturada para as experiências sob a influência da bebida, enfatizando o elemento cristão dessa tradição. Os membros da comunidade estão obrigados a cumprir algumas práticas religiosas que não envolvem a ayahuasca. Por exemplo, rezar diariamente uma certa quantidade mínima de preces. As preces são feitas sem tomar ayahuasca, e isso é considerado um ato de devoção. Eles também praticam um ritual religioso chamado Santa Missa, uma missa mesmo, que não envolve o consumo da ayahuasca. Alem disso, o ritual é sempre conduzido e legitimado pela presença de uma personagem espiritual única, uma liderança carismática. No início, era o Mestre Irineu. No presente, o centro é dirigido pela viúva dele, dona Peregrina Gomes Serra, que também é considerada pelos seguidores como grande personagem espiritual. Ela serve como uma referência viva aos membros da comunidade. Caso alguém tenha alguma dúvida sobre o ritual, a doutrina ou sobre a sua própria experiência, ela está presente e dá conselhos, orienta.

Não é assim na versão expansionista ou messiânica do Daime?

Os elementos que mencionei são significativamente reduzidos na versão messiânica do Daime, particularmente fora da Amazônia. O Cefluris também tem seus líderes espirituais, mas eles moram na Amazônia, muito distantes da maioria das igrejas mantidas nas grandes cidades brasileiras e no exterior. Seus membros também são aconselhados a rezar e cantar os hinos religiosos fora do ritual, mas não existe nenhuma pratica obrigatória que não envolva o consumo de substâncias psicoativas. Preces são rezadas, em muitos casos, com o uso de maconha e a Santa Missa é sempre celebrada com uso de ayahuasca. Além disso, a maioria dos usuários de Daime fora do Brasil não fala bem o português, o que limita o seu contato com o conteúdo dos hinos e das preces.

O que significam tantas mudanças na tradição?

O risco é do Daime virar mais um produto no mercado democratizado da espiritualidade alternativa moderna. Muitos membros do movimento internacional do Daime praticam a religião sem a presença corporal de um professor ou personagem de autoridade espiritual, alguém que esteja ligado à tradição original. Quase todos têm um entendimento muito limitado da história, da tradição oral. A prática religiosa fica cada dia mais parecida com manifestações do movimento new age global. Embora se declarem discípulos do fundador, estão menos ligados às instruções específicas que ele deixou.

Quando se busca na internet informações sobre o Daime, na verdade encontramos muita desinformação. Em resumo: existiu um homem, um negro maranhense, que recebeu a missão de desenvolver uma doutrina no começo do século passado, que fundou um centro em Rio Branco, que morreu em 1971 e que tudo acabou na origem. A impressão é que o centro original fechou e o que existe são apenas os “continuadores” do que seria uma tradição. Você tem essa percepção também.

Existe muita ignorância a respeito da origem e do desenvolvimento do Daime. Pesquisadores, alguns intencionalmente, nem sempre tentam erradicar isso. Portanto, pessoas que gostam do Daime, mas desconhecem a história, ficam espalhando, inocentemente, versões distorcidas dela. A maioria das histórias disponíveis sobre o Daime na internet não reconhece a importância da divisão do Daime. Trata o Daime como se fosse um movimento que foi formado e desenvolvido de maneira consistente. Como você disse, relatam que foi iniciado no Acre por Irineu Serra, que depois passou a liderança para Sebastião Mota, que tratou de espalhar o ritual no mundo. Muitos seguem a tradição de Mota e seu instituto, pensando que seguem as instruções do fundador.

A sociedade que vive no Acre, por exemplo, sabe que o Daime, na sua origem, não tem uma inflexão messiânica, evangelizadora. Embora um dos hinos fale em “doutrinar o mundo inteiro”, o centro original proíbe seus sócios de convidar pessoas para participar dos rituais?

É verdade. É um caso que demonstra bem a grande diferença entre as várias versões do Daime. A frase “doutrinar o mundo inteiro”, que você citou, aparece no hinário “O Cruzeiro”, de Irineu Serra, o texto sagrado mais importante do Daime. No centro original, o verso pode ser interpretado como uma referência à uma doutrinação esotérica, que talvez acontece num plano astral ou invisível. Explico: mesmo que seja somente a partir da oração, os membros do centro acreditam que o mundo inteiro pode ser doutrinado em decorrência de seu trabalho espiritual. Porém, na versão expansiva, a interpretação é exotérica e não esotérica. Ou seja, o Daime tem que doutrinar, literalmente, o mundo inteiro, o globo inteiro. A bebida tem que ser distribuída em todas partes do planeta para que o mundo possa ser doutrinado.

Outro hino diz que “não é coisa que se ofereça, é para aqueles que procurar”.

E isso está no “Manifesto do Alto Santo”, um documento assinado por dona Peregrina Gomes Serra, líder do Alto Santo, em 2006. No documento, ela afirma que o Daime é um trabalho esotérico e não uma religião com objetivo de evangelizar o povo.

Sendo esotérica, não tem o sentido tradicional de uma religião que procura catequizar e se expandir.

O movimento messiânico expansivo também não evangeliza ou divulga o ritual de maneira extrovertida. Não é um caso de polaridade esoterismo versus exoterismo, mas de uma mudança gradativa. Por exemplo, sendo buscadores espirituais, membros das igrejas da versão moderna do Daime frequentam outros grupos alternativos, como de yoga, reiki, canalização, rituais do novo xamanismo etc. Naturalmente, dentro deste movimento, as pessoas convidam amigos para conhecer os outros grupos que frequentam. Assim, embora não estando divulgado oficialmente, o Daime internacionalizado torna-se conhecido nos círculos sociais da espiritualidade alternativa, de maneira que é afastado da tradição esotérica e vira uma prática espiritual new age, mais uma entre muitas.

O que vai acontecer?

É difícil prever, mas tenho certeza que o Daime vai seguir se espalhando pelo mundo. Provavelmente vai ser legalizado em mais e mais países . Acho que a versão expansiva vai seguir se afastando da versão tradicional, talvez até criando algumas novas versões do ritual. Espero que adiante desse processo, haja esforço para preservar a tradição original do Daime, de Irineu Serra, e seja mantida a consciência de que ela existe. Muitos da geração dos fundadores do Daime já faleceram. Aqueles que ainda estão vivos já estão velhos. Acho que eles carregam uma tradição preciosa para os interessados no uso da ayahuasca. Ainda existem testemunhas vivos, que presenciaram a formação do ritual e conhecem bem a prática tradicional. Temos que fazer um esforço para preservar e documentar essa sabedoria para as futuras gerações.

O Daime está em Israel?

O uso da ayahuasca está ilegal em Israel. No passado, alguns israelenses já foram presos pela polícia porque tentaram importar ayahuasca para dentro do país. Portanto, se existir um grupo de Daime lá, é clandestino. Não quero impedir ou atrapalhar ninguém. Embora sendo israelense, não pesquiso ou me refiro à possibilidade do consumo de ayahuasca no país.

Mas existem países onde a ayahuasca é considerada uma bebida ilegal.

Mas vamos falar sobre os países onde o Daime já foi legalizado. Acho que tem um processo típico, que acontece na maioria dos lugares onde o Daime ganha uma certa popularidade. No início, a igreja fica completamente clandestina, tentando se esconder das autoridades. Depois, chega a hora em que as autoridades agem, muitas vezes prendendo os dirigentes. Na maioria dos casos, se inicia um processo jurídico, que pode terminar de várias maneiras: uma legislação completa do ritual, a proibição dele, ou uma suspensão da decisão, que praticamente deixa o grupo seguir sua atividade religiosa. O Daime jé é legalizado em alguns países, inclusive a Holanda, Espanha e no Oregon, nos Estados Unidos. Em outros países, está no meio de um processo jurídico.

Quanto tempo durou sua pesquisa?

Minha pesquisa tem muito a ver com minha trajetória pessoal. Não conheci o Daime como pesquisador. Conheci o daime, em 2005, também como um buscador, que queria resolver alguns problemas pessoais. Tomei Daime pela primeira vez na Europa e gostei. Achei primoroso e realmente ajudou bastante minha vida. Mas também ficou bem claro que a versão europeia que conheci era muito distante e diferente da origem. Em 2006, viajei ao Acre para conhecer a fonte. Durante um ano, mais ou menos, percorri vários centros de Daime, até que me fixei no Ciclu-Alto Santo. Já havia aprendido bastante sobre a diferença entre as comunidades que praticam o ritual. Tinha lido a maioria dos livros e pesquisas acadêmicas que foram escritos sobre o Daime, e entendi que ainda faltava pesquisa sobre uns assuntos bem importantes, principalmente aquilo que tem a ver com a diferença entre as duas versões do Daime. Como já tinha um mestrado, decidi escrever meu doutorado sobre o assunto para compartilhar minhas ideias com seguidores de centros que usam o Daime e com a comunidade acadêmica. Escrevi a pesquisa entre 2011 e 2012.

Em hebraico.

Está em hebraico, sim. Agora estou pensando em publicar um artigo em inglês e português.

E sua família?

Minha família inteira é judaica. Em Israel, o judaísmo não é considerado somente como uma religião, mas também como uma descendência étnica e tradição cultural. Meus pais são judeus não praticantes, quer dizer, são agnósticos, que não praticam rigorosamente a religião judaica, mas pertencem a essa raca, a essa nação. Na nossa casa, a gente sempre comemorava os feriados judaicos, mas o judaísmo não foi considerado uma religião, somente uma tradição familiar.

Como seus pais reagiram a seu envolvimento com o Daime?

Meus pais são pessoas muito boas, artistas, com uma mente aberta. Com eles não é tão difícil.

Mas fora deste contexto, mesmo que não sejam judeus praticantes, o que acontece com você ao dizer que frequenta um centro de Daime, cujo fundamento é a doutrina cristã?

Em muitos casos, teria algum problema. A maioria dos judeus israelenses, mesmo que seja não praticante, é muito orgulhosa de sua raça e nacionalidade. Não apoiariam o envolvimento de um judeu com nenhuma outra tradição religiosa, especialmente com uma ligada ao cristianismo, com qual o judaísmo diverge em muitos aspectos. Agradeço meus pais por sua tolerância.

Então foi relativamente fácil você aderir aos ensinos do Daime?

Nesse sentido não foi difícil. Eu não tinha apego a nenhum sistema de crença contraditório ao Daime. O maior desafio foi entender onde realmente existia a forma original da obra de Irineu Serra. Eu procurava conhecer a origem da doutrina dele, mas quando alguém chega ao Acre com esse tipo de busca, encontra muitas distrações, principalmente de grupos que usam o nome de Irineu Serra, embora com práticas que foram proibidas por ele. Por exemplo: o uso da maconha e de outras drogas junto com a ayahuasca, e várias outras maneiras de consumo da bebida que considero realmente muito irresponsáveis, perigosas até. Às vezes, também se metem com o comércio, com a venda da bebida, e procuram turistas, que têm condições financeiras e são menos críticos. Os estrangeiros que chegam no Acre, depois de ter conhecido o Daime no exterior, sem saber falar português, na verdade são muito inocentes. Em muitos casos se envolvem com grupos sociais problemáticos e sofrem por isso. A parte mais complexa da minha trajetória era entender isso, e chegar ao lugar onde se pratica o trabalho que realmente foi estabelecido por Irineu Serra.