sábado, 9 de outubro de 2010

MUNDIALIZAÇÃO

José Augusto Fontes

Servo da própria ambição, da falta de tempo para a sensibilidade, quase sem notar, torna-se o homem escravo do grande capital. Sua alegria é ganhar dinheiro e consumir devaneios. Os governos são bancas que recolhem as apostas, que preenchem o talão, que transferem o bolão. Cada pessoa é um número a cadastrar na taxa do registro de nascimento, na mercearia da esquina, que tem desejo importado. Vigie-o, ele tem tributos a pagar. Cadastre-o no plano de saúde, de aposentadoria, de moradia, na conta da funerária. Quem sabe, queira comprar um terreno no campo da saudade, em suaves  e eternas prestações. Isso faz bem para o espírito. É a ideologia da tentação, que bate e insiste, rápida e rasteira. Aposente -o, depois de morto.

A representatividade é fantasia no bloco das corporações. É alegoria. Serve mais para manter o ritmo do jugo, para legalizar as imposições. Representantes atravessam o compasso, sem respaldar conquistas dos que seriam os verdadeiros representados. A comunidade, em massa, desfila manobrada, dançando, sem notar que tem rock no samba e que o enredo é a mesma ilusão do carnaval passado.

A mundialização socializa os prejuízos, divide bem todos os fracassos, impõe ônus e tristeza. Mas não divide os ganhos. Torna o fato de suar a camisa, de trabalhar apenas para comer, algo muito digno e suficiente. Elejam-no e ele nos dará consórcios, bancos, multinacionais, dinheiro. Nação é mesmo uma ficção, como os números digitados e transferidos, sem acessar tantos homens sofridos, tantos sorrisos deletados. Filiem-no e ele será contribuinte para sempre. Isso fica entre nós e ele nem sente.  Parabólicas, cabos, satélites, fibras, tudo transmitido e monitorado. A mídia a serviço da mundialização ratifica, é preciso quebrar as barreiras, expandir os mercados. O mercado, cada vez mais único, é a grande boca de um lobo insaciável, vigiad o pelas garras de uns tigres bem manhosos e pelos olhos de uma raposa barulhenta.

É fácil criar conceitos e motivações ensaiadas, o risco-Brasil foi uma temeridade. Elevem os juros, taxem os produtos, engarrafem o suor, limpem a choradeira! A privatização genérica é o que a lógica indica. Transfere para algumas pessoas o que era de muitas, o que poderia ser usado em benefício de várias. Os tempos são outros. Há o dízimo. O desemprego é uma ilusão, culpa exclusiva desse ou daquele sistema, incapaz de revelar sua capacidade de gerar frustrações, de fantasiar números, que não são assim tão irreais. Todos precisam se encaixar, há um grande eixo, fora do qual é perigoso até sonhar.

Governos são (es)forçados para entregar a identidade nacional. Precisam entender que o lobo tem fome e que os tigres são indomáveis. Algum barulho que a raposa insaciável faz é culpa das bombas que solta, ao tempo em que balança o rabo, atraída pelo cheiro do petróleo. Soberania é coisa ultrapassada, se no país dos outros. Não vale em terceiro mundo, em segundo, milésimo, em coisa nenhuma que esteja fora do eixo. Tudo que for feito pelos representantes populares é legítimo, pois foram eles eleitos. Interesse nacional é detalhe. É bom repetir: nação é ficção, interessa  a arrecadação. Vale o barril, todo mundo viu. A contribuição, a eternização de dívidas. É a ideologia da tentação.

Viver é algo que serve para enriquecer, não é mesmo? O lucro fica guardado, o golpe foi aplicado. Nada há para dividir nem para produzir, o negócio é investir, tudo muito científico, acumular é o que interessa. A grande massa, se algo ganhasse, quem sabe, restaria organizada e ameaçadora, ia querer mais. Isso dá trabalho, trabalho dá salário, divide muito. Já chega! Conversa mole é pra quem tem dinheiro. Nem todo mundo pode ser feliz, alguém precisa fazer a força, suportar o peso. Há certa lógica nisso, exige quem pode. É preciso lucrar, acumular; quem guarda, tem! Quem não tem fica calado, vai aguentando, domingo tem missa, futebol, cachaça, a noite passa, outro dia vem, isso tudo está muito além. Basta viver para  empilhar sonhos, deposit ar frustrações, para conformar-se e suar. Conseguir comer é alcançar a dignidade, a cidadania. O algo mais é inatingível. Estuda-se para as teorias, para os números, para produzir. Produzir para quem?

Não há pesquisa para o crescimento do homem, mas do lucro. A propriedade privada é muito mais organizada. Produção, só com simulação. O bem-querer coletivo deve ser vendido, dado, transferido, para que não continue atrapalhando. A ilusão do prazer de viver é como a ilusão do carnaval, que sai de cena com as cinzas. Terceirizar, instituir de vez o auto-atendimento, máquinas não erram, não faltam, não reclamam, não precisam de salário nem de aposentadoria. Arrumação global, ocupação mental, subdesenvolvimento intelectual, enganação e distração, isso é só fenômeno.

Dominando os meios e recursos, o capital global manobra idas e vidas. Não deixa o papagaio de papel pegar vento. O vento não pode ficar andando por aí. Do ambiente, do meio, explorar, retirar, auferir. Vales modificados, cursos de rios alterados, florestas transformadas em móveis e esquadrias, em pasto, sem reposição do verde. Se precisar, ainda há água para vazar. Animais, cheiro de mato, índios, colonos, seringueiros, todos, bem embalados e exportados para o além, quase em anonimato. Vida eterna fácil, basta relacionar. Gente simples, gente pobre, gente calada, clonada, para não dar problema, para não querer ter querer, para não querer ser mais que nada, quase nada.

Os ganhos dessas explorações? Os membros das sociedades envolvidas? Não e não! Para quê? Ganha com isso quem pode, quem arrecada, explora, aufere. Mas tudo passa, há sempre o outro dia. Agora, o navio negreiro viaja on line. Homens dos campos e florestas, trabalhador urbano e sem-emprego, viraram suburbano, que é periférico e deve ser excluído. Serve para quê? Reunião de pessoas, praças, igrejas, ruas, casas? Não há tempo (nem dinheiro) a perder. O encontro depende do consumo, a praça é de alimentação, está no contexto quem pode. A ambição não vê olhos tristes, não enxerga sonhos. Quer lucros. O trabalho compra-se. O suor sai do rosto e vai para o chão, é algum sal na terra. O sonho vai para a cama. E adormece, enquanto espera.

José Augusto fontes é poeta, cronista e juiz de direito no Acre

Um comentário:

Altemar disse...

E cadê o Tribuno?