quarta-feira, 1 de abril de 2009

PELA LIBERDADE DOS ÍNDIOS

O sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior é entrevistado por Felipe Milanez e Maria Emília Coelho para a edição brasileira da revista National Geographic. Meirelles disse que as missões religiosas imbecilizam os índios.



A discreta cicatriz entre a barba e a bochecha esquerda concentra um pouco da história do sertanista José Carlos Meirelles dos Reis Júnior. Ele ganhou a marca nas águas do rio Envira, no oeste do Acre, em julho de 2004. Índios isolados lançaram flechas contra Meirelles enquanto ele pescava. Uma delas penetrou em sua face e saiu no pescoço. Meirelles correu. Mas o único tiro que deu com a arma que levava na mão foi para o ar - um grito de socorro para seus funcionários. No posto da Funai, ele pediu resgate ao Exército. Seis meses depois, recuperado, estava de volta à ativa. Não é dos índios, contudo, que vem a ameaça que mais o faz temer. Conflitos ainda piores se anunciam. Com a intensa atividade madeireira no Peru e a chegada de garimpeiros atrás de ouro, algumas etnias estão em fuga no território brasileiro protegido por Meirelles. Dos quatro povos isolados que se estima existirem na região, três foram fotografados em uma expedição aérea de fiscalização realizada há um ano. As imagens rodaram o mundo. Mas pouco se falou sobre as ameaças reais à sobrevivência desses indígenas. Com o aumento da pressão humana em torno das reservas, diz Meirelles, "infelizmente, o destino dos índios isolados não está nas mãos deles".

Quanto tempo ainda os índios isolados vão ter para escolher o momento de iniciar um contato com nossa sociedade?
Depende da pressão que eles sofrem em cada local. No caso da região do rio Envira, onde atuo, espero que ainda haja um bom tempo antes que aconteça esse contato inicial. A pressão sobre eles agora não é mais brasileira, ela vem do Peru, o que gera um problema novo para nós resolvermos. Creio que nestes últimos anos os índios descobriram, no caso particular dos entornos do rio Envira, que nós, da Frente de Proteção Etnoambiental Envira, da Funai, somos vizinhos diferentes daqueles que eles tiveram no passado e que os caçavam. Não nos temem como temiam seringueiros, madeireiros e garimpeiros. Já não mascaram tanto os vestígios quando andam perto de nossas bases, o que não significa, creio, que haja uma intenção de contato. Temos de ficar atentos a pressões externas e aos sinais que esses povos nos dão para que o futuro contato, se ocorrer um dia, seja o menos traumático possível para eles.

Um ano atrás, foram divulgadas fotografias feitas em uma expedição aérea coordenada pelo senhor. Quais são as conclusões desse trabalho?
O principal é que a terra deles foi demarcada sem nenhum problema, como era o nosso objetivo ao realizar o voo de reconhecimento. As fotos são do grupo que vive na cabeceira do rio Humaitá e nos igarapés da margem esquerda do rio Envira, em território brasileiro. Entretanto, outras fotos do mesmo sobrevoo nas quais aparecem duas malocas dos isolados do igarapé Xinane, oriundos do Peru, foram encaminhadas à Funai para pesquisa. Essas malocas não existiam em 2004, quando sobrevoamos a mesma região. A importância da divulgação é que as imagens podem ajudar a proteger esses povos. A opinião pública tem de entender que tais índios existem, e que temos o dever de garantir o direito deles de permanecer isolados.

Uma vez o senhor foi flechado e por pouco não morreu. Como é a aproximação desses indígenas do posto da Funai?
Eu já vi um bocado de índios da etnia masko piro, que andam pelas cabeceiras do Envira no verão. Uma vez a gente se encontrou sem querer pelas praias e eles correram atrás de nós. Outra vez eles apareceram lá mesmo no posto. Foi em 2004. Mais de 100 homens desse grupo invadiram a casa, mexeram em tudo e foram embora. Mas não levaram nada. Além deles, um outro grupo, o que aparece nas fotos divulgadas apontando flechas para o avião, uma vez invadiu a base e colocou fogo nos telhados. Havia dois trabalhadores no local, e eles tiveram de fugir, à noite, de barco. A ordem, quando acontece uma coisa dessas, é que todos no posto partam imediatamente. A gente tem um barco com motor, com combustível, sempre preparado para uma fuga de emergência.

Logo no início da carreira o senhor fez os primeiros contatos com o povo awa-guajá.
Essa história de que é o sertanista que faz o contato com o índio tem de ser revista. Na verdade, é sempre o índio quem faz o contato. É ele que vai até o branco. Chega uma hora em que o território está tão pressionado que eles não têm mais para onde correr. Foi o que aconteceu com o povo awa-guajá, que estava espremido pelos urubu-caapor e guajajara e pelos arrozeiros que não paravam de chegar ao Maranhão. Os awa-guajá do rio Turiassú fizeram contato com um caçador chamado Antônio Raposo, em 1972, e em 1973 conosco, da Funai, nas cabeceiras do Turiassú. Eles estavam acuados.

Como se dá a aproximação entre culturas tão diferentes?
O contato é uma coisa maluca. Você está no mato e de repente avista três índios pelados te olhando. A comunicação tem de ser por mímica. Depois, os índios encontram todas aquelas coisas que não existem no universo deles, mexem em tudo... Nunca fomos preparados para lidar com essa situação. Eles sofrem dois impactos depois do contato. Primeiro vem a doença. Até criarem resistência, mais da metade já morreu. Outra violência sobre eles é psicológica: nossa tecnologia muda a vida deles radicalmente. É como dar um pulo de 10 mil anos em uma semana. Muitos grupos têm de repensar a própria cosmologia porque veem que aquilo que o pajé falou não é bem assim. Os awa-guajá pensavam que nuvem fosse fumaça de fogo. Mas depois andaram de avião e viram que a história estava errada.

E como é possível controlar essa situação do pós-contato?
Depois do contato o índio vai se relacionar com o "beiradão", ou seja, aquela gente que vive na beira do rio, na fronteira de colonização, uma terra sem lei: a prostituta, o cachaceiro, o madeireiro, o garimpeiro. Não é com um grupo seleto de antropólogos que ele vai conviver. Não é com o pessoal que faz passeata no Rio de Janeiro a favor da Amazônia, com as moças bonitas de Ipanema. Ele vai descobrir de cara o que há de pior na sociedade, concentrado nessas fronteiras. Por isso, a primeira coisa que se deve dar é tempo pra que se adapte às novidades. Junto a isso tem de vir o cuidado com a saúde, pois os índios não têm resistência às doenças que para nós são corriqueiras.

Como era a situação dos povos indígenas no Acre quando o senhor chegou, nos anos 1970?
Quando ali cheguei, em 1976, vi os índios "trabalhando" como seringueiros para os patrões da borracha, e em alguns lugares ainda se faziam as "correrias" (expedições de caça aos indígenas organizadas por seringalistas). Era um regime de escravidão. Para conseguir reverter essa situação, tivemos de oferecer uma alternativa econômica para eles deixarem os seringais. Criou-se um sistema que operava com cooperativas de trabalho. A ajuda financeira possibilitou que eles se organizassem para lutar por suas terras. No rio Iaco, onde trabalhei com os manchineri e os jaminawa, os índios saíram do seringal Petrópolis e foram para um local que hoje se chama Extrema, onde foi criado um posto da Funai. Fizemos a primeira proposta de demarcação do território deles, que quase dez anos depois foi concretizada na Terra Indigena Mamoadate. Isso aconteceu com a maioria dos índios do Acre até quase todas as reservas serem demarcadas.

Em duas décadas na Frente Envira, o que ainda falta fazer?
Já demarcamos três terras indígenas, a Kampa e Isolados do Rio Envira, a Alto Tarauacá e, no final do ano passado, a Riozinho do Alto Envira. O objetivo daquela expedição aérea era verificar a localização dos índios para que essa demarcação física não passasse perto de suas aldeias. Essas três terras somam mais de 600 mil hectares que se estendem ao longo do paralelo 10 graus, fronteira do Brasil com o Peru. A Frente Envira protege quatro povos isolados. Três de etnias ainda desconhecidas que vivem em território brasileiro. E os masko piro, um povo nômade que circula entre a fronteira do Brasil com o Peru.

Tais povos estão protegidos nesse território?
O problema é que agora a gente não depende só da política do Brasil. A exploração ilegal de madeira na fronteira peruana está provocando um processo de migração forçada de outros grupos para as florestas do Acre. Índios isolados estão vindo do Peru para o Brasil, expulsos pelos madeireiros, cuja mão de obra é indígena. São índios aculturados que matam os isolados na floresta, com bala e chumbo. Os isolados do Peru vêm para o Brasil e encontram índios daqui que são parentes desses que atacam eles lá, como os kampa. Isso gera um conflito territorial.

Há indícios de que a Rodovia Transoceânica, que liga Rio Branco, no Acre, ao litoral peruano, afetará esses indígenas?
A rodovia vai, em longo prazo, afetar os indígenas isolados, pois aumentará a pressão e a exploração sobre seus territórios. Pequenos produtores e extrativistas serão deslocados de suas terras e não terão opção senão invadir a terra dos índios isolados à procura de caça, peixe e, principalmente, madeira. Vi esse filme no Maranhão, com a BR-314, que vai de Teresina a Belém. Então, o fim da história é conhecido. Não é a estrada em si, mas seus efeitos colaterais, que não são controlados.

Missões cristãs contataram povos isolados no passado. Como o senhor analisa a presença dos missionários nas aldeias?
Missionário contata índio pra salvar sua alma. Não se preocupa com a terra e imbeciliza os índios. O proselitismo religioso é uma das piores pragas que se pode imaginar para os índios. Se as missões e as ONGs querem ajudar os isolados, que entendam que eles devem ter o direito de permanecer isolados, de ter sua religião. Sua alma não precisa de salvamento.

O senhor está aposentado mas segue em atividade. Como serão as novas gerações de sertanistas?
Na Amazônia, está tudo em extinção: a floresta, os índios e os sertanistas. O ultimo curso que a Funai fez para indigenista foi em 1985. Nossa geração está ficando caduca. Quem vai continuar esse trabalho? Nós temos 70 referências de povos isolados no Brasil, trabalhamos em 22 delas, mas as outras precisam ser checadas. Quem saberá andar no mato para ver se o índio passou por ali? Novas tecnologias ajudam, mas não se pode monitorar a área ocupada pelos isolados via satélite ou por avião. Isso demanda um longo processo, anos de andanças na mata. Esse é um dos trabalhos do sertanista e de seu grupo de mateiros. Ainda não somos totalmente descartáveis.

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