quarta-feira, 28 de novembro de 2007

UTOPIA PECULIAR

Mary Allegretti


Meirelles é chefe da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Rio Envira, na fronteira do Acre com o Peru. Está lá desde 1988. Se alguém pensa que essa é uma opção profissional para quem é indigenista, ou é o lugar certo prá quem não gosta de civilização, não entende as motivações do Meirelles. É claro que eu penso que entendo, o que não quer dizer nada, na verdade. Mas arrisco acertar com base em registros que fiz de algumas de suas conversas.

Visitei Meirelles no Envira em 2000. Depois de uma longa viagem até o Acre, um vôo de avião fretado até a antiga fazenda Califórnia, no rio Envira, um dia quase inteiro de batelão e um outro dia de voadeira, chegamos num paraíso. Meirelles mora numa linda casa de seringueiro que ele modernizou, com água encanada, energia solar, um banho maravilhoso e um freezer com cerveja gelada que não existe. Juliano, meu filho, chegou de Nova York direto em Rio Branco e, de lá, no Envira. Vicente Rios que, junto com Adrian Cowell também ganhou o prêmio Chico Mendes, filmou.

O que quer Meirelles. Acho que ele é o último indigenista. O cara que realmente acredita no que faz e é sincero. Já foi atacado, pelo menos, três vezes. E volta lá não só porque mora lá ou porque lá é o seu trabalho. Ele volta porque ele acredita em um modelo novo de contato.

Meirelles tem a missão de impedir que os brancos cheguem perto da área dos isolados e afastar os isolados do contato com os brancos. E faz isso, no alto Envira, há 20 anos. Meirelles acredita que é possível manter esse grupo sem contato - que ele acha que é da língua Pano - pelo menos, mais dez anos. Com a interdição da área, a retirada de seringueiros onde possam ocorrer conflitos e a instalação de um outro Posto de proteção, dá prá ficar tranquilo. A área onde estão esses índios faz parte de uma reserva já demarcada, cercada de várias outras reservas. Assim, os riscos de contato são muitos pequenos. Se ele conseguir espalhar o boato de que não existe mais ninguém ali, morreram todos, dá prá aguentar mais dez anos.

E daí, o que poderá ocorrer durante esse tempo, ou depois? Meirelles pensa nisso quando deita na rede todas as noites. Durante um tempo, ele viveu muito precariamente ali. Agora, tem um motor, um freezer, dá prá tomar uma cerveja gelada e escutar Vivaldi, no final da tarde, quando termina o trabalho da sobrevivência. A Funai não tem dinheiro, assim, ele tem que garantir sua própria roça, tem que pescar, caçar e cuidar de sua vida sem esperar dinheiro de fora.

É nessas horas que ele fica pensando sobre suas utopias. E se os índios fizerem contato? E se ele pudesse fazer um contato planejado e sem riscos. Primeiro, ele precisaria saber falar a língua, porque fazer contato tendo um outro índio como intérprete, é sempre muito arriscado. Nunca se sabe se o que está sendo traduzido é exatamente o que está sendo falado. Além disso, precisaria de dez anos para ensinar, devagar, que, ao mesmo tempo que os brancos têm o terçado, também deixam o nariz do índio correndo, porque trazem doenças que matam. Ensinar com as categorias da cabeça deles.

Fica imaginando como é a cabeça de um índio sem contato. Sabe que é observado permanentemente e que eles devem se experts a respeito da rotina do Posto e conhecer detalhes da sua vida pessoal. Sente-se observado. Mas não quer contato. Não acredita que seja possível sobreviver a um contato.

E sabe de experiência própria. Meirelles participou da atração dos Guajá, no Maranhão, numa época em que a Funai não tinha procedimentos tão elaborados em relação aos índios "arredios". O contato acontecia quando as ameaças já estavam tão perto, os índios tão acuados que era a última alternativa para tentar evitar o completo desaparecimento do grupo. Ele participou da frente de atração dos Guajá, e essa foi a primeira experiência dele como indigenista, em 1973. Hoje, os Guajá estão completamente aculturados. Existem ainda alguns pequenos grupos sem contato, mas já é um caso de resgate, porque não é mais uma sociedade, mas apenas alguns indivíduos, soltos, para os quais não há outra alternativa.

As roças dos índios sem nome estão muito perto do local onde os seringueiros moram e estes vão caçar muito perto das aldeias. Os conflitos são inevitáveis e é melhor tirar essas pessoas de lá para poder deixar os índios em paz.

E isso é possível, e tem sido ainda mais fácil nos últimos anos. A queda da borracha esvaziou o rio Envira. Desde 1992 a crise da borracha se espalhou e os seringueiros foram para Feijó. Moram na periferia, em completa miséria. Na mata só ficaram alguns velhos que vivem, hoje, como os índios, caçando e pescando prá sobreviver. Em Feijó, nos últimos meses, já mataram três velhos aposentados do Funrural prá roubar a minguada pensão que eles recebem. Do Seringal Canadá prá cima, só ficaram os índios. Da Fazenda Califórnia, já no alto Envira, não sobrou nada. Os Kulina tiraram toda a madeira que havia nos barracões da fazenda e construíram várias casas, cobertas de zinco, na beira do rio. Parece um conjunto habitacional. A crise da borracha ajuda a manter o que ainda existe da sociedade indígena, ao menos por mais algum tempo.

E o que vai acontecer depois? Meirelles acha que se for possível assegurar mais dez anos do jeito como está, terá valido a pena. Mas o destino, depois, será igual ao dos demais: uma integração de alto custo, com mortes por doenças, até que o que sobrar acaba se aculturando.

A não ser que um idiota resolva se arriscar a fazer contato por conta própria, convencido de que o povo que vive no Posto da Funai não representa perigo, um fato comprovado nos últimos vinte anos, desde que Meirelles chegou ali. E se isso acontecer, o que ele gostaria era de poder falar a língua. Perguntei se está aprendendo. Disse que não, mas que essa era uma boa idéia. Poderia começar a se preparar para esse contato e, quem sabe, realizar sua utopia e fazer um contato sem traumas, pela primeira vez na história da humanidade.

Como ele diz, tudo isso parece história de ficção. Um povo que vive desde sempre longe de nós, que nunca se comunicou conosco, que tem uma tecnologia da idade da pedra, em plena passagem do milênio. E apesar de toda a tecnologia que existe hoje no planeta, ainda não descobrimos aquela que poderia ensinar ao outro como dominar o que temos de melhor e evitar as desgraças que vêm junto no pacote. Nem eles têm experiência de lidar com coisas tão maravilhosas como uma espingarda, um motor, luz elétrica, lanterna, fósforo e entender que o fascínio pode significar a morte.

Brasília, 10 de abril de 1998. Atualizado em Curitiba em 27 de novembro de 2007.

Não está na hora de escrever essas histórias com o jeito particular que você tem de contá-las, Meirelles?

Mary Allegretti é antropóloga. Clique aqui para conhecer o blog dela.

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