terça-feira, 8 de maio de 2007

MIRAGEM E DISSIMULAÇÃO

Oswaldo Sevá

Após o show de fogos da auto-suficiência petrolífera no ano passado, esse 2007 está sendo particularmente rico em miragens produzidas no primeiro escalão das mega-empresas e da máquina do Estado. Começaram incensando o etanol e o “biodiesel”, transformando em heróis grandes patrões latifundiários e cartéis do agronegócio, anunciaram depois a “aceleração de crescimento”. Esse programa falsamente governamental é um “portfolio”, ou seja: uma listagem de projetos privados de interesse de poucos capitalistas, com passaportes nacionais e estrangeiros, todos poderosos. Os projetos mais caros do pacote são os de iniciativa e interesse da A=Andrade Gutierrez, da C=Camargo Corrêa e da O=Odebrecht, as quais esfregam as mãos desde a tecelagem do tal PAC, pensando com apetite no financiamento tranqüilo com o capital sacado do nosso polpudo FGTS. O programa podia se chamar PACO, e estaria tudo quites.

Alguns dos investimentos mais falados deste pacote são hidrelétricas de grande porte. Projetos conhecidos, que vinham sendo promovidos por grandes empresas e por grupos políticos desde bem antes da eleição de 2006. O enredo central, que os dito cujos vêm insistindo, é a hipótese ameaçadora de um próximo “apagão elétrico”. É truco! Se estão se referindo a um desligamento generalizado em toda a malha, por causa de ultrapassagem da capacidade de atendimento, bem, na parte do país que é atendida pelo sistema interligado, desde o tempo das “Lights” nunca mais ocorreu. Algumas vezes, sim, mas por causa de falhas técnicas, algumas delas originadas nas instalações de grandes clientes industriais, e acidentes operacionais em usinas e em subestações; foi quando grandes malhas regionais desligaram e demoraram horas para recarregar.

Houve também interrupções do atendimento em cascata, por causa de seqüelas de instabilidades na transmissão, justamente em trechos muito longos que interligam a malha Norte com a Centro Oeste, esta com a Nordeste, e no linhão de Itaipu; e alguns episódios de descontrole do sistema por parte dos seus operadores (antes GCOI - grupo Coordenador da Operação Interligada, hoje ONS - Operador Nacional do Sistema elétrico). Refrescando nossa memória e informando os mais novos, “com menos de trinta”: o “black out” atingindo vários Estados do Sul, Sudeste e Centro Oeste por várias horas em abril de 1984, nos dias em que os deputados federais derrotavam a emenda das eleições diretas, pode ter sido o resultado, planejado ou não, de uma sabotagem de extrema-direita.

Pois bem, na tentativa de acelerar o licenciamento de dois grandes projetos para barrar o maior afluente do rio Amazonas, o primeiro poucos quilômetros rio acima da capital de Rondônia, Porto Velho, e o outro, cujo represamento atingiria as margens bolivianas dos rios Madeira-Mamoré e Abunã, eclodiu uma crise profunda no Ibama e nas relações do Ministério de Meio Ambiente com o “núcleo duro” do governo. Esse núcleo, pilotado pela Casa Civil e pelo Ministério de Minas e Energia e pela sua delirante Empresa de Pesquisa Energética (EPE), com galhos grossos no Senado, nas ditas “agências reguladoras” como a ANP e a ANEEL, e até nos tribunais supremos, encarnou, desde a nunca explicada “harmoniosa transição” de 2002-2003, a missão de ajudar a implementar por aqui mais algumas preciosas etapas da re-divisão internacional dos conteúdos energéticos.

Trata-se de apoiar, de modo consistente, decisões internacionais já tomadas para ampliar aqui os processos eletro–intensivos que se valorizam em âmbito global: aços, ferro-ligas, especialmente de silício e de nióbio, e os metais alumínio, estanho, cobre, níquel, e também a celulose, além dos metais e pedras preciosas que sempre estão na pauta nesse El Dorado que já dura cinco séculos. Por isso, há que ser dissimulada essa verdadeira conquista moderna, não mais apenas européia e norte-americana, mas agora australiana, chinesa, indiana, coreana e até mexicana. Há que ser maquiada e fantasiada essa aberração: uma invasão quase autônoma dos capitais da mineração, da metalurgia e da eletricidade numa das regiões mais ricas e ainda inexploradas do planeta, a pan Amazônia, as Amazônias boliviana, peruana, equatoriana, colombiana, venezuelana e a brasileira.

Evento revelador - Na quinta feira após o feriado Dia do Trabalho, três de maio de 2007, foi inaugurada no rio Araguari, bacia do Paranaíba, a hidrelétrica Capim Branco II, a segunda da dupla de usinas feitas pelas empresas Cemig, meio estatal de MG meio estrangeira, CVRD, a maior da mineração internacional, ex-estatal hoje nas mãos de poucos grupos financeiros locais e estrangeiros, e Votorantin, o maior dentre os conglomerados de origem brasileira, cada vez mais ponderável na indústria elétrica e também grande usuário de eletricidade em suas operações de celulose, de bauxita e alumínio, de níquel e zinco.

Esse é uma fotografia fiel, embora incompleta, da atual composição que comanda o filé da economia brasileira e que verdadeiramente pauta o governo, define os alvos e a ênfase das ainda chamadas “decisões governamentais”. Outro simbolismo que sintetiza os tempos atuais – o culto às personalidades empresariais - foi o batismo do par de usinas com o nome de Amador Aguiar, o patriarca fundador do Bradesco, considerado outro grande “player” na eletricidade, através da razão social VBC, onde o V é o mesmo Votorantin, e o C é a Camargo Correa, empreiteira que engordou como nenhuma outra durante a ditadura militar e o governo Sarney, e se tornou outro dos poucos e grandes capitais internacionais de origem brasileira.

O retoque final no retrato melancólico de três de maio foi o presidente discursando no palanque entre empresários e o governador Aécio Neves. Com sua camisa social colorida destoando dos ternos escuros dos demais, Lula elevou sua voz rouca, raivoso, como em sua época de sindicalista: “Nós temos duas alternativas concretas e quero dizer aqui para os empresários: ou nós fazemos as hidrelétricas que temos que fazer, vencendo todos os obstáculos, ou nós vamos entrar na era da energia nuclear”. (...)“Não temos escolhas. Ou fazemos o quê tem que ser feito e aí precisamos todos conversar com o Ministério Público, com as entidades de meio ambiente, com as ONGs, com os tribunais de contas, ...aproveitar que o papa está vindo e conversar com o papa, porque o Brasil não pode parar por falta de energia!”.(...)

O leitor inteligente verá a chave da miragem no mesmo improviso presidencial do três de maio. Num raro e breve momento em que não podia dissimular a miragem, o presidente ex-líder operário mais do que honrou as demais personalidades do palanque, identificando-se com a supremacia deles. (...)“Nenhum empresário virá investir no Brasil nos próximos anos, se nós não dermos a certeza de que o País terá energia para oferecer às indústrias”. E de pronto voltou à mistificação energética. Segundo o autor de matéria publicada em um grande jornal “Lula defendeu a integração energética da América do Sul, observando que o potencial hídrico do continente - transformando o megawatt x hora em barris de petróleo - equivale a quase toda a reserva de petróleo do mundo”.

Isso eu já havia notado quando pude ajudá-lo pessoalmente no tempo das “caravanas da cidadania”, 1994, 95: o homem é perspicaz, capta bastante coisa, faz os links, mas... chuta com todas as pernas. Foi capaz de aceitar uma balela dessas que alguém lhe assoprou. Pior: capaz de propagandear uma miragem boba e tecnicamente errada. Deve acreditar nesse alguém bem mais do que fingia que acreditava em assessorias gratuitas e empolgadas dos vários intelectuais e técnicos de esquerda que o acompanharam, desde 1982 até perto de 2002.

Na segunda-feira seguinte, oito de maio, a ministra da Casa Civil, com pose de Chefa de Estado, deu o mesmo recado. Com aquele semblante sério, mescla de uma professora de Latim com um executivo careta, repetiu para as redes nacionais de TV as mesmices energéticas que confundem as massas e embaralham até uma parte dos estudiosos acadêmicos.
Deixaram, ambos, para todos nós, o peso e a culpa de “atravancar o progresso”, caso não concordemos nem apoiemos as sábias decisões. Que nem deles são!

Oswaldo Sevá é engenheiro e professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp

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