sábado, 14 de abril de 2007

A ESQUERDA PREDATÓRIA

Sérgio Abranches

Andando pela blogoesfera e processando as centenas de e-mails não solicitados que recebo, tenho encontrado uma farta coleção de bobagens escritas por gente da esquerda brasileira sobre meio ambiente e desenvolvimento. Analisando o comportamento dos parlamentares brasileiros, no Senado e na Câmara, o que se observa na banda esquerda é que para cada Gabeira, há pelo menos quatro parlamentares de esquerda que defendem visões ultrapassadas em relação ao meio ambiente e desenvolvimento, imaginando que estão defendendo os interesses populares.


É a esquerda predatória. Um parte significativa da esquerda nunca defendeu, no Brasil, os interesses populares. Sempre foi defensora de privilégios corporativos, dos "com carteira", dos "com grupo organizado", ainda que se intitulem "sem" alguma coisa. Os setores da esquerda que realmente são solidários aos interesses dos verdadeiramente despossuídos, os pobres "sem carteira", os verdadeiros "sem" eira, nem beira, sabem há muito, na sua maioria, que a deterioração ambiental atinge mais a essas classes que à dos "com", que a esquerda predatória defende.

Quando alguém da esquerda fala que o alerta sobre mudança climática global ou a preocupação ambiental, ou a defesa da Amazônia não passam de manobra imperialista, mais um truque do EUA, mostra apenas atraso e ignorância. E com atraso e ignorância, não vamos nem proteger, nem emancipar os despossuídos.

É tão óbvia a vulnerabilidade dos mais pobres (verdadeiramente pobres) às mudanças ambientais, que nem seria preciso lançar mão da hipótese de mudança do clima, de aquecimento global. Basta pensar na poluição das águas, na falta de saneamento, na desertificação de terras de agricultura, na proliferação de vetores transmissores de doenças. É evidente que os mais vulneráveis a todos os efeitos humanos negativos da perda de qualidade ambiental são os pobres. Os ricos e os remediados têm mobilidade – podem deixar áreas de risco – têm recursos para recorrer à ciência e à tecnologia para se defender. Mas não é essa a regra da sociedade desigual, que a esquerda deveria sempre consultar? Os setores dominantes se safam e os dominados se danam?

Também não faz sentido imaginar que tudo se resuma aos países ricos e dominantes transferirem o ônus ambiental para os países pobres. Imaginar que o Brasil faz parte dos países pobres e dominados é cometer o mesmo erro de confundir os trabalhadores "com" e os despossuídos. Do ponto de vista geopolítico e diplomático, o Brasil é uma potência intermediária. Tem voz e voto. Não faz parte dos países despossuídos. Faz parte dos países "com" voz e voto em todas as arenas internacionais relevantes. Só não tem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Do ponto de vista econômico, o Brasil é um país de classe média. Está entre os 20 maiores PIBs do mundo.

Quando o Brasil se curva aos interesses dos países mais poderosos, não é porque não tem força ou meios para resistir. É porque há uma constelação de interesses domésticos associados a esses interesses externos, que têm força e poder para impô-los domesticamente. Às vezes, essa força vem da omissão de outros grupos da sociedade e da política brasileira. Dou um exemplo ambiental: os Europeus querem nos mandar seus pneus usados. É lixo. Não devemos aceitá-los. Mas o governo brasileiro aceitou uma imposição do moribundo Mercosul, para que recebamos esse lixo de pneu de países membros. Os interesses domésticos, associados à reciclagem de pneus, têm conseguido fazer avançar seus negócios aqui, por inércia dos demais. Eles não teriam força para nos impor essa importação de lixo, se os setores que se julgam progressistas dessem mais importância aos problemas ambientais. O que acontece com o descuido com pneus usados? Viram abrigo para o mosquito da dengue, entopem bueiros, poluem rios. Quem paga o pato? Os "sem". São mais vulneráveis às doenças, têm menos acesso a serviço médico com qualidade mínima, consomem água poluída.

Mas o fato é que a mudança climática global não é um artefato da dominação imperialista. Nem a proteção ambiental é antagônica ao desenvolvimento. Sobretudo ao desenvolvimento que emanciparia os "sem", os despossuídos. A evidência científica é "trans-ideológica". Conheço cientistas de ponta, aqui e no exterior, de direita e de esquerda, das várias direitas e das várias esquerdas, que atestam que as evidências físicas e biológicas da mudança climática são inequívocas e incontestáveis. Na negação, a esquerda predatória está de braços dados com a direita mais reacionária. George W. Bush também nega a mudança climática. Tem até censurado os cientistas dos laboratórios estatais do EUA – é lá também tem disso – para evitar que façam a cabeça da opinião pública sobre a realidade do aquecimento global.

Aí, voltamos ao óbvio, uma mudança desse tipo atinge muito mais dramaticamente os "sem" do que os "com" cujos interesses a esquerda predatória defende. Internacionalmente, os países e as populações mais despossuídas – no continente africano e asiático – serão as principais vítimas da mudança climática global. No Brasil, a região mais dramaticamente atingida será o semi-árido nordestino. Quem é realmente de esquerda, quem deseja a emancipação das principais vítimas da exclusão social, da discriminação e da exploração – trabalho escravo, sub-remuneração, lumpenproletarização – não pode desconsiderar a ameaça que a mudança ambiental representa e representará para esses setores da sociedade.

Mestre em Sociologia pela UnB, PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell e Professor Visitante do Instituto Coppead de Administração, UFRJ. Escreve no site O Eco.

Um comentário:

Anônimo disse...

Francamente, quanta obviedade! Que raiva de mim por ter gasto tempo com esse artigo pretencioso.