quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O MENINO E A MOEDA

Leila Jalul

Pouco escrevi sobre os heróis contemporâneos Chico Mendes e Wilson Pinheiro, que aparece na foto ao lado. Jornalistas, historiadores, antropólogos e sociólogos fizeram isso. Relatos e reportagens, alguns com histórias vividas junto aos líderes seringueiros, com certeza, foram mais fiéis aos fatos.

Por terem ideais e sofrimentos compartilhados, atribuo aos jornalistas acreanos, desde o Varadouro, e outros, a edição dos fatos dentro do rigor da verdade. Outras divulgações embutem fantasias, lições de oportunismo e inverdades. Excetuo, como sempre, as que tenham algum valor.

Foi no tempo do governador Joaquim Macedo que Wilson Pinheiro foi assassinado. Nada que se parecesse com o auê formado quando da morte de Chico Mendes. Por uma razão simples: não se tratava de morte anunciada. Em Xapuri, o chefe do Gabinete Civil, Elias Mansour, ministrava uma palestra para os alunos de licenciatura parcelada em letras e pedagogia. Eu representava a Universidade Federal do Acre na cidade.

A notícia da morte do líder seringueiro voou rápida. Dali mesmo, zarpamos para Brasiléia, direto para a casa que abrigava o sindicato onde, ainda quente, estava estirado o seringueiro. Elias Mansour retorna para Rio Branco. Era necessário cumprir ações de governo que o fato exigia. E ali me deixou, sem conhecer ninguém, exceto o defunto e o médico Tufic Saad, irmão do Edu.

Não me exijo exatidão no que narro, considerando o tempo, o elemento surpresa, mas muita coisa gravei da cena. Na sala comprida, uns quase trinta homens se postaram ao fundo, com chapéus nas mãos, em tom de luto e, no início, o corpo, o médico, eu e uma outra criatura que julgo ser um agente de saúde.

Nada de dissecação de cadáver ou de qualquer outro procedimento médico apropriado, exceto a injeção de formol para a conservação do defunto pelo tempo preciso, até que seus companheiros de “empate” chegassem para as últimas homenagens.

Doutor Tufic, só por força da profissão, agüentou a tarefa. No meu caso, no do outro ajudante, apenas pela solidariedade. A sala ardia, nossos olhos queimavam, o silêncio daqueles homens doía, ensurdecia e, ao mesmo tempo, encorajavam.

Aí aparece um menino. Menino, modo de dizer, pela idade e pelo tamanho. Dos seus olhos, claramente saía um sentimento adulto de perda, de dor, de inconformismo. Pareciam querer negar a sua condição. Sai do fundo da sala, de dentre os homens, abre a boca de Wilson e, debaixo da língua, introduz uma moeda.

Não me perguntem de quanto, mas não entendi nada. Acho que o médico, menos ainda. Mas, quem sabe, um último desejo? Uma promessa? Um adjutório para que Wilson pudesse pagar seu ingresso na catraca do céu?

Terminado o suplício do formol, começou a chegar gente. Gente do mato, dos seringais e dos ramais. E, para surpresa geral, aparece um tal de Nilo, capataz de um fazendeiro. Entrou, olhou ao derredor, cumprimentou a um e a outro e se foi.

Sempre me disseram que estou meia hora atrás dos calendários e dos relógios. O certo é que depois fiquei sabendo que eliminaram o Nilo, numa espécie de ação coletiva, sem identificação de autoria, e a moeda era uma simpatia infalível para desvendar crimes.

Ora, se o criminoso costuma voltar ao local do crime, naquele o Nilo se deu mal. Mesmo sem relógio e calendário, sei que o menino cresceu, mataram o Chico Mendes e sei que o Wilson virou nome de ponte. Isso mesmo. Virou ponte.

4 comentários:

Anônimo disse...

leila, ouvi dizer que aqui no Acre o Diabo não dorme.

Saramar disse...

Leila, querida,
que trágica ponte, qie interminável ponte, que precisa de sangue para existir, antes e agora e até quando?

beijos Leila e Altino.

Anônimo disse...

Engraçado...

Como uma simpatia...
Fez uma ação coletiva...
De mais de 20 homens...
Matarem apenas um mero suspeito...

O direito diz que todos são inocentes até que se prove o contrario...
Até hoje acho que Nilo foi morto injustamente...
Sem julgamento e sem ser ouvido...

Pediu em seus últimos momentos de vida para ter um filho...
Pelo que sei era trabalhador e incapaz de matar alguém...

Era uma boa pessoa
De coração bom
Que foi morto numa barbarie
Por uma simples simpatia
Que se escolheu o homem errado

Disso eu tenho Certeza.

Anônima por motivos pessoais

Anônimo disse...

Anônima,

você não é a primeira pessoa que me fala que o Nilo era uma excelente pessoa. Ele foi muito amigo de uma moça do segundo distrito, de nome Vera. Uma vez, através da Vera ele (a quem não conheci), me mandou um remédio para um problema de saúde meu.

Mortes como a dele, do Chico, do Wilson, sempre são bárbaras. Quem tem sentimentos cristãos não admite assassinatos. Mortes como as que ainda ocorrem nos embates entre fazendeiros, grileiros e trabalhadores, são absurdas nos tempos modernos.

Felizmente o Acre vive outro momento. Acabou o reinado do boi, já são parte do passado os homens de botas e esporas, não se ouve mais falar em trabalhadores amarrados e açoitados em troncos, como na escravidão.

Chico e Wilson têm seu significado para o Acre. Ainda mortos, são respeitados. No caso do Nilo, penso, foi uma pessoa que estava no lugar errado, na hora errada e servindo a alguém errado. É o que sei.

O texto não faz julgamento, apenas quer registrar um momento que vivi.