sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

O HOMEM DO CAMBÃO

Leila Jalul

Vou logo explicar o que é cambão, no Acre: aquela madeira roliça que, colocada no ombro, servia para equilibrar o peso das latas d’água. Pois bem, falante, cheio de prosopopéias, assim era seu Moacir Pescocinho - o maior carregador de água que Rio Branco já viu. O mais solicitado. Era um “the best".

A rua Rui Barbosa, em toda sua extensão, tinha o carimbo dos seus pés ligeirinhos. Uma, duas, três, vinte viagens por dia, cambão no ombro e duas latas de querosene de vinte litros, distribuídas e penduradas em cada extremidade. Ia e vinha do cacimbão da Nhanhã.

Todo dia, dia todo, enchendo de água limpa os tonéis, para o consumo e higiene do baronato local. Eta Moacir! Não fosse o pescoço trucidado por uma queimadura de terceiro grau, que lhe encolheu a musculatura, fazendo com que sua cabeça encostasse no ombro, por certo seria ainda mais danado de bom.

Doido pra casar, não parava de reclamar quando o assunto era mulher. O negócio dele era fazer menino para lhe ajudar. Mais nada. Não arranjava nenhuma. Dava dó ao ver meu chapa reclamar da sina.

Ao lado dele, sem cambão, com dois pequenos baldes, lá ia eu, carregando água para abastecer o baronato lá de casa. Aproveitava a companhia, e, no meio do trajeto, sempre uma paradinha. Conversávamos para aliviar o cansaço e para deixar escorrer um pouco o suor.

Depois a gente ria. Ria da gente e dos outros, pois ninguém é de ferro. A Nhanhã era a nossa maior vítima. Viúva, enquanto viveu, nunca deixou de arrumar a mesa para dois.

- Tu viu, Moacir? Ela estava almoçando com o defunto? Tu escutou o que ela estava dizendo para ele?

- Num ouvi, não!

Hoje, pensando bem, sei que Deus abençoou o Moacir, apesar de todos os pesares. Ele não precisava pedir ombro emprestado pra chorar. Tinha o dele mesmo. E eu o meu.

Eta Moacir, camarada velho de guerra! Tinha os olhos de pedinte e o sorriso de campeão. Quando chegou no céu, com certeza ganhou o troféu Cambão de Ouro.

A cronista Leila Jalul tem enviado ao blog relatos das aventuras dela no Acre, na fase dos 10 aos 15 anos de idade.

4 comentários:

Anônimo disse...

Leila, seu texto é uma delícia!Espontâneo, leve,light,"orgânico", sem contra indicações. aliás, saudável e recomendável em terapias anti-stress. só tem um problema; causa dependência.eymard.

Anônimo disse...

Leila: o Jacinto da fisioteapia da Universidade também era botador d'água no primeiro distrito, o teu lado. Ele me contou que abastecia aquela área da Epaminondas Jácome, em especial a casa dos Lavocat onde trabalhou por muitos anos. O poço de onde ele tirava água ficava no atual Colégio Meta. Será que esse poço ainda existe? Eu não sabia que o nome daquele pau era cambão. De botador de água, do lado de lá, de onde eu vim, lembro-me do avô da Maria Bibi,Seu Antônio, pai da Mundoza, da Nazaré e da Terezinha, lá do Quinze, da curva, que chamavam de Rabo da Bêsta e hoje tem um nome que inicia por "Boulevard". Ele também rezava em crianças com um galhinho bem verdinho.E cá estamos como Sherazade: uma história puxando o fio de outra história das arábias acreanas.Fátima Almeida.

Anônimo disse...

Eymard, cogumelo também é orgânico e dá barato!
Sei que vc está dizendo que eu sou uma droga leve, tipo futebol, mas não tem problema! Uma vez fiz um exame de urina que acusou, apenas, 11 tipos de alcalóides! rs
Vc sabia qual a razão de ter escrito estas crônicas e outras que ainda vou inventar? Claro que não sabe!
Esclareço:
Por seis anos fiz terapia com uma moça de São José dos Campos. Terapia por telefone. As conversas não tinham aquele olho no olho, e, fatalmente se perdiam. Era mais ou menos como estudar matemática através do telecurso de segundo grau. No final de cada mês, como era de se esperar, a conta do telefone estourava.
Assim resolvi escrever. Sai mais em conta e não preciso sequer comprar os livros do Paulo Coelho, nem os da Lya Luft, tampouco os do Lair Ribeiro.
Comigo agora é assim: eu armo o pau, eu mesmo faço a gamela, eu mesmo roubo a moça, eu mesmo caso com ela!rs

Anônimo disse...

Fátima, vc tem umas tiradas interessantes. Gostei da comparação com a princesa Sherazade. É isso aí mesmo!
Tenho que acabar com algumas maldições que o Rei Shariar imprimiu desde que de descobriu traído. Acredite, essas histórias não têm fim e nem autor... Nelas eu me dou ao direito de viajar na maionese, de criar fatos, de trocar nomes, de inverter a ordem dos fatores... Não me prendo a nenhum tipo de exatidão. Só valem mesmo eu e meus heróis, eu e meus bandidos, eu e a minha sofreguidão.
Que tal vc atacar como historiadora e abrir seu espaço? Você tem tudo prá ser Flamengo e continua Bangu! Quero ler sobre o Goldwasser, quero ler sobre colonização, sobre alguns passantes contemporâneos que deixaram marca. Quero saber da história contada por quem dela fez seu mister nos grupos escolares da vida. Quero que você exponha à luz do dia o que antes só se sabia nas caladas da noite.
A história é uma história e o homem é o único animal que ri.
Sobre o poço da Epaminondas Jácome, deve ter ido para o beleléu. E já foi tarde! A modernidade exigiu água tratada e nossos homens do cambão merecem repouso. Os ortopedistas agradecem!
Sobre o Rabo da Besta, hoje tem o nome de Boulevard Augusto Monteiro. Você sabe quem é? Pesquise e me comunique.
Gosto de você.