sábado, 9 de dezembro de 2006

AGRURAS DA VIDA

Desde cedo, aprendiz de sobrevivente



Liliana Lavoratti

As agruras de ministra do Meio Ambiente não assustam Marina Silva. Desde cedo ela teve de aprender a lutar contra as adversidades. “As parteiras dos seringais pegavam as crianças e, com olho experiente, diagnosticavam se tinham ou não condições de vingar em meio à alta mortalidade infantil na floresta”, conta o jornalista Toinho Alves, ex-secretário estadual de Comunicação do governo de Jorge Viana (PT), que conheceu Marina no início dos anos 80, quando ela era estudante de História na Universidade Federal do Acre. Dos 11 filhos de Pedro Augusto e Maria Augusta Silva, três morreram ainda pequenos. Marina ficou sendo a segunda mais velha dos oito sobreviventes – sete mulheres e um homem.

Como não havia escola no seringal, aos 14 anos Marina aprendeu a conhecer as horas no relógio e as quatro operações básicas da matemática para não ser enganada na venda da borracha. “Aos 15 ficou órfã de mãe e, como a irmã mais velha havia casado, assumiu a chefia da casa e a criação dos irmãos mais novos”, acrescenta Toinho. Foi nessa etapa que o destino dela tomou um rumo diferente daquele das amigas de infância. A hepatite grave a levou para a cidade, onde resolveu ficar trabalhando como empregada doméstica depois do tratamento médico. Queria estudar e realizar o sonho de então: ser freira.

“Os médicos achavam que ela só tinha uns três meses de vida”, conta o bispo dom Moacir Grechi, que conhece Marina há 35 anos. “Aquela mocinha magricela virou uma aguerrida militante das comunidades eclesiais de base quando retornou ao Acre. Inteligente, corria riscos por amor à causa, nunca perdeu essa garra”, relata o bispo. Segundo ele, o crescimento pessoal e político da exseringalista seguiu o ritmo do avanço das organizações populares, sindicais e partidárias no estado, “para as quais a Igreja católica, por meio das CEB, foi uma espécie de útero materno”.

Alfabetizada pelo Mobral e formada no primeiro e segundo grau pelo supletivo, Marina se preparava para entrar na universidade em 1982. Optou por História, já que não havia o curso de Psicologia, área em que sua filha mais velha, Shalom, de 25 anos, é formada. “Sou apaixonada por psicanálise”, confessa a aluna do curso de especialização em psicanálise na Universidade de Brasília (UnB). “Dizem que o conhecimento da psicanálise nunca serve para ajudar a si mesmo nem os amigos nem os parentes, mas serve para ajudar os outros”, comenta. Ela não vê incompatibilidade entre o método criado por Sigmund Freud para investigar e tratar dos transtornos mentais e a importância que atribui à religião — atualmente freqüenta a igreja evangélica Assembléia de Deus.

Marina vive todas essas dimensões da vida sem deixar de ser a amiga, a esposa, a mãe de quatro filhos. Nos tempos do teatro ela se casou com José Gomes, com quem teve Shalom e Danilo, 24, e de quem se separou mais tarde. Foi na militância petista que ela conheceu Fábio Vaz, o segundo marido, com quem teve Moara, 16, e Maiara, 14, e vive até hoje. Foi de Moara, quando tinha 4 anos de idade, que Marina recebeu o que considera o maior elogio. “Perguntada por uma jornalista se quando crescesse queria ser como a mãe, senadora, ela disse que não, porque
a mãe trabalha muito.”

As marcas da origem de Marina também estão presentes em sua saúde. Vítima de várias malárias, quatro hepatites e contaminação por mercúrio, ela conhece bem esse lado pouco romântico da vida na Amazônia, assim como boa parte dos moradores da floresta. Aos 16 anos ela teve de migrar para a cidade em busca de tratamento para salvar a vida, conseguiu se curar, mas as seqüelas exigem cuidados intensivos até hoje. E fazem dela uma figura franzina e – apenas aparentemente – frágil. “Hoje estou bem. O espírito forte que segura este corpo fraco está de pé. Apenas o corpo fraco está bem cansado.”

Para o jornalista Altino Machado, que conviveu com a atriz e figurinista Marina no começo dos anos 80 no grupo de teatro amador Semente, a senadora-ministra “sempre foi a reserva moral da política do Acre”. “Basta ver a casa dela em Rio Branco, na rua da Tripa, uma construção feita aos pedaços em um conjunto habitacional de classe média.” Ele acrescenta que essa conduta “é quase impossível de encontrar em quem já teve tantos mandatos”, lembrando que ela foi vereadora, deputada estadual, deputada federal e senadora — “sempre a mais votada” — antes de comandar o MMA.

Lições de honestidade ela diz ter aprendido com o pai, que não hesitou em vender tudo o que tinha para pagar um dos vários tratamentos de saúde a que Marina teve de se submeter e até hoje mantém uma banquinha de venda de bombom na rodoviária de Rio Branco. “Meu pai nunca tolheu os sonhos dos filhos, principalmente os meus”, conta ela, emocionada. É a ele que Marina atribui também a sua forte noção de respeito à liberdade, à diferença e sobretudo à verdade.

É por essas e tantas outras histórias vividas até agora por Marina que os seus admiradores não hesitam em afirmar que ela é a “ponta de lança, é quem chega primeiro, quem lança um posto avançado na outra margem e daí todo mundo passa”. Em 1986 disputou uma vaga de deputada constituinte para ajudar eleger Chico Mendes deputado estadual. Ele não conseguiu a vaga, mas Marina ficou em oitavo lugar, só não participando da Assembléia Nacional Constituinte porque faltou voto de legenda para o PT. “Não me considero herdeira do legado de Chico Mendes. Ele não deixou herdeiros, mas continuadores, inclusive eu”, ressalta.


Deputada estadual mais votada em 1990, ajudou a eleger outros dois mandatos petistas para a Assembléia Legislativa, lançando as bases para o PT ganhar a prefeitura de Rio Branco em 1992. De 1996 a 1998, entre o fim do mandato de prefeito até a eleição para governador do estado, Jorge Viana trabalhou na assessoria da senadora. E do Senado ela foi para o Ministério do Meio Ambiente. “Tudo isso resultou em uma importante inserção do Acre, que nunca havia existido”, ressalta Toinho Alves.

Mesmo com esse currículo, Marina dá mais importância para a atitude do que para o discurso. “Durante até bem pouco tempo o mundo se movimentou por aquilo que as pessoas pensaram e disseram, independentemente do que elas faziam. Era assim em relação à filosofia, à espiritualidade”, diz. Hoje essas idéias estão se tornando atitudes e realizações, e o mundo começa a se inspirar no fazer, como é o caso do Prêmio Mulheres mais Influentes Forbes
Brasil, concedido a 19 mulheres – Marina foi o destaque nacional. “O prêmio não foi dado porque essas mulheres pensaram alguma coisa, mas porque fizeram algo relevante. É sobre esse fazer que as pessoas estão tendo de pensar novamente, criando um círculo virtuoso”, citando como exemplo o trabalho de Zilda Arns.

“Quantas crianças deixaram de morrer pelo trabalho da Pastoral da Criança, quantas mães deixaram de sofrer a lágrima da perda do filho em conseqüência do esforço de um conjunto de pessoa anônimas que são capazes de ir além de si mesmas”, elogia. Em muitas ocasiões Marina presenciou mulheres pobres na periferia de Rio Branco pesando seus filhos esqueléticos e recebendo a multifarinha — complemento alimentar doado pela Pastoral da Criança para tratar a desnutrição das crianças. “Isso é investimento, é o desenvolvimento que nenhum governo pode prescindir porque é a economia do amor, do importar-se com o sofrimento do outro”, conclui.

Liliana Lavoratti é editora de política da Gazeta Mercantil. Escreve também para a revista Forbes Brasil, que traz na capa da última edição Marina Silva. "Inspiração nacional - Destaque na terceira edição do Prêmio Mulheres mais Influentes Forbes Brasil, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, é uma mulher que traz orgulho ao brasileiro", afirma a revista.

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