sábado, 9 de dezembro de 2006

CAPRICHOS DE SONHADORES

Para a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, um país como o Brasil, que tem 50% do seu Produto Interno Bruto (PIB) baseado no uso de recursos naturais, deve cuidar mais de sua legislação ambiental e não tratá-la como assunto de diletantes



Por Liliana Lavoratti

Tudo começou em 8 de fevereiro de 1958, no Seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, capital do Acre, onde nasceu Maria Osmarina Silva Souza. Em 1985 ela já era a Marina do PT, e hoje, aos 48 anos, é a ministra do Meio Ambiente do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e ícone de ética na política e resistência contra a destruição da natureza. Mas entre a Osmarina e a Marina Silva que ocupa uma das mais visadas e polêmicas cadeiras no primeiro escalão em um complexo país chamado Brasil, existem muitas histórias e várias "Marinas". Partes de uma trajetória única de uma personagem também singular.

São elas: a adolescente doente que migrou do seringal para a cidade em busca de tratamento, a empregada doméstica que queria ser freira,a militante das comunidades eclesiais de base (CEB),do movimento estudantil e do semiclandestino PRC durante a ditadura militar, a participante dos "empates" com Chico Mendes - ações pacíficas organizadas pelos seringueiros contra a derrubada da floresta -, a atriz e figurinista do teatro amador, a estudante do Mobral e da faculdade de História, a professora, a fundadora da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do PT, a vereadora, a deputada estadual e federal, a senadora, até o papel de protagonista do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que divide seu tempo com o marido, os quatro filhos e o estudo de psicanálise.

"Faço parte da família dos anônimos. Sou mulher, negra, pobre e não pertenço a nenhuma família poderosa", diz Marina em tom de brincadeira,embora sua trajetória tenha ensinado o que isso significa na própria pele - ou no corpo, com as seqüelas das várias doenças contraídas na selva, como a malária e a leishmaniose. "Às vezes, as pessoas tentam me desqualificar,me confundem com uma figura quixotesca." Mas com uma diferença, acentua. "Dom Quixote duelava com moinhos de vento achando que eram gigantes, e eu duelo com gigantes achando que são moinhos de vento", ressalta Marina.Mesmo considerada a reserva moral no governo Lula, reconhecida como responsável pela melhora da imagem do Brasil no exterior - especialmente no que diz respeito à destruição da Amazônia -,e detentora de um balanço positivo de sua gestão à frente do MMA,a ministra carrega o fardo de ter sido rotulada como um dos "gargalos" do desenvolvimento.

As recorrentes queixas dos empresários que acusam o MMA de dificultar as licenças ambientais para empreendimentos industriais e construção de hidrelétricas surtiram eco nos ouvidos do presidente.Lula surpreendeu semanas atrás ao declarar que índios,quilombolas e o meio ambiente estão entre os entraves do desenvolvimento.Dias depois, no jantar de posse da nova diretoria da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o presidente disse que não daria mais nome aos entraves "para não criar um bode expiatório",pois os problemas são vários e de toda ordem. Mas o pedido indireto de desculpas não foi suficiente para neutralizar a revolta no setor.

O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), presidido por Marina, aprovou semana passada uma manifestação contra o presidente Lula, demonstrando "indignação" e "preocupação"."As declarações sinalizam retrocesso na legislação e na garantia de direitos conquistados pela sociedade brasileira", diz o texto.Os ambientalistas argumentam que a todos interessa o desenvolvimento, porém esse não pode se restringir ao crescimento econômico." A declaração do presidente Lula não condiz com o contexto do século 21, quando o mundo está buscando o desenvolvimento sustentável, e com um mercado cada vez mais globalizado que exige responsabilidade social", sublinha o diretor da organização não-governamental SOS Mata Atlântica,Mario Mantovani.

Para ele, o governo brasileiro só não foi mais pressionado pelo exterior em relação à preservação da Amazônia por causa da presença de Marina no Ministério,"conhecida, respeitada e premiada por organismos internacionais". Motivos esses que levaram Lula a anunciar a nomeação dela para o MMA antes de tomar posse no Planalto. Durante sua primeira viagem como presidente eleito aos Estados Unidos,no final de 2002, o presidente revelou que Marina era o primeiro nome escolhido para sua equipe ministerial.

"Marina conseguiu imprimir bom senso ao país, mas Dilma está vindo como guerrilheira do desenvolvimento a todo custo"

A diferença de tratamento suscitou nos observadores da cena política a dúvida sobre o futuro de Marina no governo." Quero que primeiro de janeiro de 2007 seja um dia ricamente abençoado para 180 milhões de brasileiros neste país", despista delicadamente ao ser provocada sobre a questão. Seja qual for a decisão - do presidente Lula e dela -, uma coisa é certa:Marina não está entre os políticos que são capazes de "perder a alma"para ter um cargo. Como dizem seus admiradores e assessores próximos, ela continuará com a mesma garra se tiver de voltar ao Senado para cumprir os quatro anos de mandato que lhe restam."Apesar de ser ministra, ela continua com o caráter da menina magricela e doente que conheci décadas atrás", afirma o bispo da arquidiocese de Porto Velho (RO),dom Moacir Grechi, 72 anos,que no início dos anos 70 ajudou Marina a chegar ao Hospital São Camilo,na capital paulista, para curar a primeira das quatro hepatites contraídas até agora.


Foi com a cabeça erguida que Marina enfrentou algumas derrotas na disputa de posição dentro do governo, como a lei dos transgênicos.Cedendo à pressão da bancada ruralista, o Palácio do Planalto não bancou a proposta da ministra e dos movimentos ambientalistas,de adoção de salvaguardas para evitar a expansão de cultivos transgênicos que pudessem ser nocivos à saúde humana e aos recursos naturais."Quem está atento às mudanças no mundo sabe que as questões ambientais não podem ser mais encaradas como capricho de sonhadores que não sabem nada sobre o desenvolvimento, como às vezes costumam nos enquadrar", comenta. E mais: um país que tem 50% do seu Produto Interno Bruto (PIB) baseado no uso de seus recursos naturais, como é o caso do Brasil, não pode permitir que o mercado externo identifique sua produção como praticante de "dumping ambiental", sustenta a ministra.

Hoje,o lobby visa flexibilizar a legislação ambiental brasileira - uma das mais avançadas do mundo - com o argumento de que as regras atrapalham investimentos em infra-estrutura, essenciais para o país alcançar o crescimento anual ao redor de 5% ao ano, como deseja o presidente Lula para o segundo mandato. A proposta parece contar com o apoio da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.Recentemente, ela defendeu a descentralização, para governos estaduais e municipais, do licenciamento ambiental,uma competência exclusiva do MMA,por meio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).


Descentralizar até pode ser importante,mas com critérios, afirma o diretor da organização não-governamental SOS Mata Atlântica,Mario Mantovani. Segundo ele, a maior parte dos estados e municípios não cumpre sua obrigação no sistema nacional de meio ambiente,que já é compartilhado. "Além disso, se na esfera federal os recursos públicos destinados a essa área são tão escassos, podemos imaginar a estrutura dos pequenos municípios e até mesmo dos governos estaduais para cuidar desses problemas", prevê."Se o Palácio do Planalto se acha vulnerável às pressões dos maus empresários, os prefeitos ficarão totalmente vulneráveis."

Por isso, sugere Mantovani,Marina Silva deveria não só ficar no governo mas comandar também a Casa Civil. "Marina conseguiu imprimir bom senso ao país,mas Dilma está vindo como guerrilheira do desenvolvimento a todo custo", alfineta. O diretor da SOS vai ainda mais longe: "Se não mantiver Marina no ministério, Lula estará traindo os eleitores e o sentimento de alguém da floresta que mostrou ser tão gente quanto o metalúrgico que chegou à presidência da República.Com a diferença de que a ministra não cede a pressões contrárias aos interesses coletivos", dispara o ambientalista.

Mais uma vez o país está discutindo o que é periférico e não central, segundo o primeiro secretário da Secretaria Especial do Meio Ambiente,Paulo Nogueira-Neto,professor aposentado da Universidade de São Paulo e uma das maiores autoridades no assunto. "Descentralizar ou não os pareceres ambientais é uma situação parecida com a crise dos controladores de vôo.Basta pagar bem e habilitar esses profissionais que os aeroportos ficarão descongestionados e os passageiros viajarão com segurança", assegura. Na opinião dele, não adianta descentralizar essa atribuição porque os órgãos públicos estaduais e municipais sofrem os mesmos efeitos do desmonte ocorrido no âmbito federal."A solução passa pelo reforço do orçamento para a área,mas antes disso é preciso torná-la prioridade de fato e não só no discurso", recomenda.

Apesar de ter dobrado de 1999 para 2006, o orçamento do MMA ainda é um dos menores da Esplanada. Para este ano, o total é de R$ 2 bilhões, que na prática viraram R$ 1,321 bilhão depois da retenção de verbas para a formação do superávit primário (a economia nas despesas para abater juros da dívida pública).Comparados com as verbas do Ministério da Saúde,um dos maiores orçamentos do governo federal - da ordem de R$ 40 bilhões neste ano -,os recursos destinados para a área ambiental são inexpressivos.Somente o Ibama,principal órgão executor da política ambiental brasileira, consome atualmente 66% do orçamento do MMA.


É preciso ressalvar, no entanto, que a atividade-fim do ministério é a elaboração de políticas ambientais e a execução dessas diretrizes.Portanto, o MMA não possui uma carteira de investimentos, como é o caso de outras pastas, como Transportes e Integração Regional. Por isso, o grosso das despesas do Ministério do Meio Ambiente é com custeio e salários dos 7 mil servidores. Um dos programas mais expressivos é o Plano Nacional de Combate ao Desmatamento, que neste ano receberá R$ 45 milhões.


"O país está de novo discutindo o que é periférico e não central", diz o professor emérito da USP, Paulo Nogueira-Neto

O tamanho do orçamento do MMA reflete o grau de importância que o país dá ao setor. É que as questões ambientais ainda não se transformaram em prioridade entre as diretrizes governamentais, condição necessária para ganharem uma dimensão que vai além das ações de conservação de recursos naturais. Algo que não aconteceu no primeiro governo Lula nem faz parte do que se conhece até agora por programa do segundo mandato."Na base de todos os conflitos ambientais está sempre a mesma questão: como impor limites ao capital, que não foi concebido para ter limites"?, analisa a especialista em auditoria ambiental,membro do Instituto Socioambiental (ISA), entre outras entidades ambientalistas, além de autora de diversos livros sobre o tema, jornalista Teresa Urban.

O desafio é fazer com que a atividade econômica não ultrapasse os limites da sustentabilidade dos recursos ambientais, permitindo a sua renovação, e dessa forma continuem cumprindo com a função essencial de purificar o ar,manter o abastecimento de água, o solo fértil, o equilíbrio do clima, o controle de pragas e doenças. Coisas essenciais para a sobrevivência da espécie humana e que ainda não aprendemos a fazer. As derrotas de Marina Silva no governo aconteceram porque as propostas conflitaram com interesses econômicos, destaca Teresa Urban.

O balanço da gestão da senadora no MMA é incontestável no campo da conservação da natureza - o desmatamento da Amazônia caiu 52% no acumulado de 2004 a 2006; as unidades de conservação nos últimos quatro anos aumentaram em 40%; as reservas nativas de araucárias cresceram de 4 mil para 72 mil hectares; 400 criminosos envolvidos com o tráfico de madeira, dos quais 100 do Ibama,foram presos; 1,5 mil empresas que agiam ilegalmente foram desconstituídas e apreendidos 750 mil metros cúbicos de madeira; o contingente de analistas ambientais foi reforçado em 30% por meio de conconcurso público. Na atual gestão foram aprovados no Congresso duas leis relevantes: a de gestão de florestas públicas, implementando um conceito novo na exploração extrativista, e a lei que disciplina o uso da Mata Atlântica.

Mas todas as vezes que a decisão envolveu interesses econômicos mais amplos, a ministra foi derrotada.O melhor exemplo foi o da proibição dos transgênicos,proposta de Marina que o governo não bancou, cedendo à forte pressão contrária à adoção de salvaguardas para evitar que as lavouras transgênicas tragam prejuízos à população e ao ambiente."Como responsável pelo interesse coletivo, cabe ao Estado estabelecer parâmetros para a expansão econômica.Mas o Estado tem dificuldade de fazer isso dadas as características do capitalismo, expansionista por natureza", enfatiza Teresa Urban.Para ela,gerenciar a questão ambiental no Brasil é uma tarefa gigante que requer responsabilidade de todos os níveis e áreas do governo." São 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território com diferentes formações e ocupação."

Para Marina, no governo Lula foi iniciado um processo sem volta na área ambiental,em que várias políticas ambientais já são transversais ou integradas, como o Plano Nacional de Combate ao Desmatamento, que envolve 13 ministérios." A visão fragmentada do setor ambiental não é um problema isolado do Brasil.A superação desse equívoco é um processo que não acontece da noite para o dia, principalmente em um país onde a questão ambiental ganhou institucionalidade há pouco tempo", diz. Somente em 1974,no regime militar, foi criada a primeira instância federal de coordenação na área, a Secretaria Especial do Meio Ambiente.


Liliana Lavoratti é editora de política da Gazeta Mercantil. Escreve também para a revista Forbes Brasil, que traz na capa da última edição Marina Silva. "Inspiração nacional - Destaque na terceira edição do Prêmio Mulheres mais Influentes Forbes Brasil, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, é uma mulher que traz orgulho ao brasileiro", afirma a revista.

4 comentários:

Anônimo disse...

Logo que Marina chegou ao senado despertou o interesse da mídia que teimava em levantar sua história pelo lado das oportunidades do sistema. A seringueira que chegava ao senado deveria ser uma história facilitada pelas possibilidades de um sistema que dá a todos a oportunidade de crescer, basta querer. Numa entrevista, enquanto o entrevistador teimava em levantar essa perspectiva, Marina, tranquilamente, negou que as coisas funcionassem assim. Seu caminho, lembrou, fora construido em meio a muito sacrifício e suportado graças a convicção em princípios que fortalecera em sua trajetória e a certeza quanto aos seus objetivos que não eram pessoais. A sua luta é a luta contra os senhores da terra e contra o preconceito e a miséria na qual fora lançado, desde sempre, o trabalhador nos seringais. Lutou, desde sempre, contra os que afirmam o sistema e as suas bases reprodutivas. Tivera de enfrentar a mais dura, fria e mesmo cruel oposição para alçar vôo numa exitosa caminhada política. Marina quebrou a trajetória histórica de uma escolha de representantes na classe média ou dos "ricos" e ilustrados da região. Marina emerge da primeira expressão do operariado regional, os seringueiros e traz para a Câmara Alta da Nação a voz do Povo humilde e pobre da Amazônia, em geral, e do Acre, particularmente.

Que se conserve assim.

Anônimo disse...

A primeira foto do post, é de uma grandeza que me emociona.
Vê-la marchando, com a postura de uma
guerreira que usa a palavra como quem usa a espada,
só me encanta e me enche de brio.

"Quem é do amor não engana
Ama mesmo a duras penas.
Quem é do amor é mais quente
Viaja contra corrente.
Quem é do amor é mais simples
Tem uma cara de nuvem
E não permite que sujem
O verde da sua selva".

Anônimo disse...

Mário, acho que ela fala com a voz dos anjos. Não aqueles loirinhos de olhos azuis das gravuras, mas aqueles que vêm à luta na Terra pra fazer a gente enxergar que a humanidade pode ser muito mais e melhor do que tem conseguido ser.

Anônimo disse...

Márcia, minha amiga, tenho concordado sempre com suas intervenções, agora, tenho de diverjir: Marina fala com a voz do Povo Humilde da minha terra, o Acre, da sua terra, da Amazônia por inteiro. Espero que ela entenda que pode e fala em nome de todos os brasileiros que buscam justiça social.