sábado, 20 de maio de 2006

MORATÓRIA ANTES DO FOGO

Mário Lima

Faz alguns anos, fui ao Acre a serviço. No segundo dia, após a minha chegada a Rio Branco, logo após o almoço, fiquei no quarto do hotel Pinheiro, terminando algumas anotações para fechar o relatório de viagem. Fechei as janelas e liguei o aparelho de ar condicionado. Quando saí, terminado o trabalho, assustei-me pelo que imaginei ter sido uma perda da noção do tempo. Assim fosse teria perdido um encontro de trabalho importante para minhas tarefas. A cidade estava às escuras, no saguão do hotel, algumas lâmpadas estavam acesas. Saindo do prédio do hotel, a minha apreensão transformou-se em espanto: a cidade estava coberta por fumaça e sobre as ruas despejava-se cinza. A visibilidade horizontal não se estendia a mais de uns cem – ou pouco mais – metros.

Caminhei até a rua central e em frente ao prédio da antiga Escola Normal Lourenço Filho, encontrei alguns conhecidos com quem comecei a conversar sobre a situação. Fui informado de que aquilo fazia parte do cotidiano da cidade há dias. Os hospitais estavam recebendo crianças, idosos e mesmo pessoas mais novas, com problemas respiratórios muito acima da média – conversei com alguns médicos conhecidos e confirmei a informação. A totalidade da população submetia-se a problemas nos olhos. Isso eu mesmo experimentei: fiquei com olhos vermelhos e uma tosse que só passou depois de mais de um mês. Na verdade, nesse momento, Rio Branco vivia uma crise na área da saúde.

No ano passado, ao lado da repetição dos problemas na área da saúde, vivemos um estado de alerta por conta da série de incêndios que pôs em risco a vida das pessoas, além da destruição de muitas áreas naturais, no Vale do Acre.

Acompanhando a crise, desde São Paulo, assisti a “construção” de uma versão absolutamente descolada da realidade. De uma forma generalizada falava-se que os incêndios resultariam do rigor da estiagem que secara a floresta. Num blog de Rio Branco, foram apresentados resultados das pesquisas de uma especialista em processos de renovação natural de florestas através de incêndios. Ou seja, passou-se a idéia para muita gente que os incêndios teria por base processos naturais. Quando não fosse isso, atribuiu-se como origem dos incêndios a ação criminosa de algum maluco ou o descaso por conta de “guimbas” de cigarros jogadas sobre a folhagem seca.

Chuva e estiagem
Além do processo de construção de um quadro de desinformação, assistíamos uma ação de governo operando, fundamentalmente, como bombeiro. Ouve, quanto a esse aspecto, realmente muito empenho no atendimento das diversas áreas e no combate aos muitos focos de incêndios. Terminado o período, ainda ouvimos falar dos rigores das estiagens, do aquecimento global, das mudanças climáticas pelas quais estaria passando o planeta e, aos poucos, o tema sumiu, voltou à condição de assunto para especialistas e de publicação de algum espaço restrito.

Vencemos o período das chuvas – é bom lembrar que na Amazônia a coisa se reduz a isso: chuva e estiagem – sem que avançássemos na formulação de uma nova postura diante da questão ambiental e seus efeitos. A coisa mais fácil de se conseguir, no Acre, é um mapa com indicações muito precisas sobre uso do solo. [O Altino Machado exibe, vez por outra, uma fotografia onde o Rio Acre aparece despido de todo tipo de floresta – não lhe sobraram sequer as “canaranas” que enfeitavam suas praias.] Também se sabe muito bem os estágios tecnológicos dos empreendimentos agropecuários na região, o que permitira a formulação de um bom mapeamento do que se poderá esperar na recuperação e ampliação de pastagem na região. Por outro lado, já caberia um bom diagnóstico da produção familiar, definindo sua distribuição espacial.

Enfim, o quadro é conhecido. Conhecemos suas origens e já experimentamos, há anos, os seus efeitos sobre o conjunto da população. Sabemos dos custos em termos sociais, humanos, financeiros – em termos de gastos públicos em saúde -, materiais, etc. É bom que fique muito claro que as queimadas são resultantes de uma decisão deliberada e não fruto de acidentes aleatórios. Sabe-se, também, que enquanto os custos são distribuídos entre a grande maioria da população, os benefícios são realizados privadamente por um grupo muito reduzido de pessoas.

Quadro emergencial
Existem barreiras a serem superadas. A questão ambiental não se enquadra de forma tranqüila nos limites da ação do município ou do estado federado. Ou seja, as bases da nossa organização administrativa não correspondem aos limites do alcance dos fenômenos naturais. Veja-se, por exemplo, a história do rio Acre, nos últimos quarenta anos. Impossível pensar que poderíamos ter enfrentado a destruição do rio através de ações municipais desconexas e fundadas em interesses locais. Por outro lado, a ação do governo estadual do Acre não poderia ter evitado a ação das empresas pesqueiras instaladas no vizinho estado do Amazonas que levaram a destruição dos processos migratórios fundamentais para a reprodução de algumas espécies. Evidentemente, hoje existem muitos processos desestruturadores que se desenvolvem no interior do território acreano – por exemplo, a destruição das florestas ciliares e a desconsideração das micro-bacias que alimentam o rio.

Teremos, portanto, que recorrer aos fundamentos da nossa organização administrativa e cobrar das instâncias da União medidas que definam posturas unificadas dos diversos níveis de governo e de práticas de ocupação e uso do solo de caráter geral. Hoje, no caso da Amazônia e, particularmente, do Acre, mas do que nunca, a ação do poder da União se torna uma necessidade: toda a fronteira brasileira com a República da Bolívia está submetida a um intenso e amplo processo de ocupação e de definição de processos de exploração. A ação diplomática é de exclusiva competência do poder central da União.

Esse quadro, mais amplo, entretanto, ainda terá muitas rodadas de ajustamento – se é que algum dia possa chegar a algum resultado positivo. Mas há espaços para medidas imediatas visando atender os interesses das comunidades regionais. Medidas que podem e devem ser assumidas pelos níveis de governo estadual e municipal. Acredito que, dado o quadro emergencial, nesse momento a ação do Ministério Público poderia se por ao serviço dos interesses populacionais, dado que a situação de risco está bem caracterizada. Daí, impondo um compasso de espera para a ação daqueles que se beneficiam com os lucros da destruição, quem sabe estaremos encaminhado a formulação de um novo quadro de referência para o uso do solo na Amazônia. No Acre, pelo menos.

O economista acreano Mário Lima é professor da PUC de São Paulo

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