quinta-feira, 2 de março de 2006

JURUÁ: UM OUTRO MUNDO



Por Elson Martins (*)

Beleza e força são expressões de um rio largo e cheio como o Juruá no período das chuvas. Suas águas revoltas invadem a floresta nas várzeas, arrastando balseiro e espuma branca dos lagos e igarapés. Mas esse tom ameaçador que assusta os iniciantes é abrandado pelos variados tons verdes da vegetação das margens; e pelos barrancos limpos onde vivem comunidades ribeirinhas curiosas e solidárias. Os viajantes entristecidos pelas pressões urbanas respiram aliviados diante da paisagem. E acabam reconhecendo que é “privilégio” poder encontrar-se naquele meio.

É mesmo um privilégio subir o rio Juruá de Cruzeiro do Sul à Foz do Breu com entradas em alguns de seus afluentes. Em grupo de oito pessoas fizemos a viagem em 2003, à qual apelidamos de Expedição à Foz do Breu, e a repetimos em 2006 antes do carnaval. Nas duas ocasiões, utilizamos um barco de porte médio pilotado pelo experiente comandante Elival Pinheiro, um ser humano indispensável nessas aventuras amazônicas..

No verão o quadro é outro. O comandante Elival reduz o roteiro de seus barcos à metade colocando o ponto final em Marechal Thaumaturgo, junto à foz do rio Amônia. E olhe lá! Quem ousar ir mais acima terá que atravessar corredeiras em ubás e enfrentar as arraias do leito raso do rio, enquanto empurra as embarcações no braço com os pés fincados na lama fina.

O idealizador das expedições I e II é o desembargador e corregedor de Justiça Arquilau de Castro Melo. Nascido num seringal do Tamboriaco, nas cabeceiras do Juruá Mirim, é descendente do pioneiro Francisco Melo que lutou contra forças peruanas no início do século vinte.

Ele até chama atenção pela quantidade de parentes que encontra em toda extensão do vale, genealogia que se manifesta em solidariedade de mão dupla: os parentes emprestam barcos (voadeiras) abastecidos, freezer, peixes e farinha facilitando a vida na embarcação maior; enquanto o desembargador anota e desembaraça pequenos problemas burocráticos relacionados à sua função de jurista..


Não é comum, convenhamos, mesmo na Amazônia ver um desembargador despido do cargo indo ao encontro do homem da floresta, com o objetivo de conhece-lo melhor, de aprender com ele sobre os segredos da natureza, e depois tentar influir para que pequenas soluções esperadas pelas populações extrativistas aconteçam.

Mas isso tem explicação histórica. Arquilau cultiva identidades com o mundo dos seringais que ajudou a criar. Além de filho desse mundo, foi advogado de Wilson Pinheiro e Chico Mendes nos anos setenta e oitenta, trabalhou (a baixo soldo) para o Centro de Defesa dos Direitos Humanos, em Rio Branco, representou e defendeu centenas de famílias que expulsas das terras migraram para a capital tendo que invadir terrenos urbanos - o que atraiu para si a ira da polícia, dos agentes da Justiça e dos políticos de rabo preso com as elites locais da época. Ah, ele foi também fundador do PT!

Será que as novas gerações da floresta sabem disso?

A julgar pela conversa recente que mantive com uma petista jovem e urbana, não. Mas o assunto entrou aqui, confesso, atravessado. O que quero destacar é que viajamos Juruá acima na companhia de gente que se oferece para ajudar a construir uma sociedade sustentável no Acre. Gente que demonstra boa vontade e identidade com um povo fantástico que vive à margem do poder.

Esse povo, formado por homens, mulheres e crianças com os quais conversamos e apertamos a mão, tem histórias incríveis. É uma raça forte, temperada na relação com o meio ambiente expressa em riscos cotidianos. Na floresta, nos rios e lagos, nos barrancos escorregadios, nas nuvens que alteram a paisagem com trovões e relâmpagos., nos gritos assombrosos da escuridão da mata...o tom é de desafio, aceito e contornado. E o que sobra é extremamente belo, solidário, esperançoso.

Nas duas margens do Juruá e de seus afluentes, Tejo, Bagé, Juruá-Mirim, Amônea e Breu, para citar os principais, crescem comunidades alegres com enorme proporção de mulheres e crianças resistentes. Quando um barco como o nosso se aproxima, elas se amontoam nas janelas e barrancos. Sorriem, acenam, se oferecem para falar de seu isolado mundo, supostamente, na esperança de que os estranhos o reconheçam.

Nesta série de crônicas ou relatos que pretendo escrever aqui sobre a recente viagem que fizemos à região, tentarei sugerir aos que planejam ações públicas para os povos da floresta que se aproximem mais deles, de verdade, para enxergar melhor seus anseios. Do contato breve que tivemos, saímos com a impressão de que esses anseios parecem pequenos para quem tem o dever de atende-los; mas, de valor imensurável para quem os coloca com uma crença humana quase ingênua.

Ao governo e seus técnicos, aos políticos, aos intelectuais, aos acadêmicos em começo, meio e fim de carreira recomendo:

- Peguem um batelão em Cruzeiro do Sul e subam o rio Juruá. Esqueçam o Jornal Nacional, as manchetes do eixo São Paulo-Rio Brasília e também a mídia local, quando esta parecer descomprometida e rancorosa. Passem uns 10 dias escalando barrancos para fazer correta leitura de rostos desarmados e limpos. Façam anotações e planejem a partir do que vêem e ouvem. Sem pressa e sem hipocrisia!

A realidade que esse povo mostra e oferece consta, certamente, das teses de doutorado e de alguns relatórios oficiais; mesmo assim, ainda irá surpreender com alguma novidade. E melhorar o compromisso público, a ideologia e a alma de quem a visitar..

(*) Elson Martins é jornalista acreano. O grupo da expedição I contou com Arquilau de Castro Melo (desembargador), Alceu Ranzi (paleontólogo), Guilherme Andrade (engenheiro florestal), Julio Eduardo (médico), Edson Caetano (fotógrafo), Maria Maia (escritora e jornalista), Marqueson Pereira da Silva (especialista em marcheteria) e Elson Martins (jornalista). Na expedição II houve desfalque e troca de nomes: Maria Maia, Edson Caetano, Guilherme e dr. Julinho não puderam ir. As ausências foram preenchidas pelo biólogo Tiago Juruá, filho de Alceu; pelo procurador do Estado e documentarista, Rodrigo Neves; e pelo cinegrafista Neovan Negreiros.

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