quarta-feira, 26 de outubro de 2005

ACREANO EM NOVIORQUE

Por Evandro Ferreira (*)

Durante seis anos tive a oportunidade de viver em Nova York, EUA, realizando meus estudos de pós-graduação (Mestrado e Doutorado). Foi uma experiência interessante poder viver por um breve período de tempo o "sonho americano". São tantas coisas que vi e que experimentei, boas e más lembranças.


Entre as boas, vi a solidariedade "fria" dos americanos, os verões ensolarados com o povo feliz nas ruas e parques, os desfiles freqüentes ao longo da 5th Avenida, a eficiência da polícia, corpo de bombeiros, o respeito às regras básicas de convivência. Por muitos anos não tive a oportunidades de ver alguém tentando dar o famoso jeitinho brasileiro para levar vantagem.

Entre as piores estão os invernos que passei em NY. Saído dos trópicos, era estranho ter que usar "sem trégua" roupas de frio, iniciando com as blusas de manga longa ou as capas (iguais as que a gente usa no Acre durante as friagens) a partir de meados de setembro. Entre dezembro e fevereiro, sair de casa só com capas grossas e, durante certos dias e semanas, com luvas, gorros e protetores de orelha. O frio só aliviava em meados de abril.

Para não ser injusto com o inverno nova-iorquino, temos que excluir o período de natal. Conheço muito poucas cidades pelo mundo afora, mas acho que natal como em NY não tem igual. A maioria de vocês já viu pela televisão. Ao vivo é mil vezes mais emocionante. Você vai para Manhatan e sente verdadeiramente o espírito natalino lhe empurrando lojas a dentro para comprar qualquer coisa. É impressionante. Milhares de turistas, todos comprando e fotografando, parando em frente a vitrines meticulosamente preparadas. Na 5th Avenida, entre a rua 42 e a 34 mal dá para andar nas largas calçadas.

Uma das coisas que nunca entendi durante o inverno nova-iorquino, é o fato que a população de NY, não importa a origem, fica extremamente deprimida e mal fala. Quando fala, o faz de tal forma que te deixa mal. Os novaiorquinos tem a fama de mal humorados nos EUA. Imaginem vocês um brasileiro, vindo de uma terra onde todo mundo fala demais, se toca demais e se beija socialmente a toda hora, ter que viver em meio a "mudos invernais". É duro, você também fica deprimido. Aliás, sendo um lugar tão diverso, com gente de todo o mundo, a cidade é o último lugar para se visitar, se alguém planeja "conhecer" os EUA.

Fauna humana
Para conhecer o povo de Nova Yorque, a melhor coisa a fazer é andar de metrô. Se algum dia você tiver a oportunidade de visitar a cidade, sugiro fazer um trajeto que fiz muitas vezes: pegar a linha D do metrô no Bronx (Bedford Park) e ir até o Village, nas proximidades da NYU. A "fauna humana" se inicia no Bronx com uma maioria de negros e latinos. Os negros são a maioria até a estação 125, no Harlem.

A partir daí o trem só vai parar no American Museum of Natural History, no coração do Upper West Side, onde o aluguel de um apartamento com 3 quartos nas proximidades pode custar mais de U$5 mil/mês. Inicia o domínio dos brancos americanos, as mulheres e cavalheiros com roupas e acessórios caríssimos. Até a estação da rua 34 é um entra e sai de gente bem vestida, indo e vindo para o trabalho. Dai para a frente, a fauna humana começa a mudar novamente.

Aparecem alguns orientais, indianos e paquistaneses. Os negros e latinos praticamente desapareceram. Quanto mais o trêm avança em direção ao Village, mais brancos "alternativos" ocupam espaço no trem. A partir do Village aparecem os imigrantes judeus e europeus orientais, que são a maioria no final da linha, em Coney Island no Brooklyn.

O racismo é outra marca que está em todo lugar e que me trás más lembranças. Tudo se inicia ainda dentro do avião, quando você tem que preencher o folheto da imigração. Nele você tem que se "classificar" racialmente. Nós, brasileiros, somos considerados hispânicos. Não tem alternativa no formulário. Você pode ser galego dos olhos azuis ou brasileiro filho de japoneses imigrantes. Não tem jeito. Você é hispânico. Lembro de um colega do Rio Grando do Sul que chegou no balcão da imigração e tentava explicar que ele era brasileiro, mas gaúcho. Não era hispânico.

Não sei por que os americanos dão tanto valor à raça. Talvez por que os brancos queiram deixar claro para você quem você realmente é. Branco, só se for puro. Nem mesmo os brancos da europa oriental são considerados brancos, são eslavos. Branco de verdade só se for inglês, alemão, holandês, francês. Italiano não é branco, é latino por causa da língua.

Depois que você desembarca e tenta levar a vida normal de um residente temporário, tendo que lidar com a burocracia, a coisa só piora. Até para abrir conta em banco você tem que deixar claro sua raça. Até o meu último dia, como estudante, tive que conviver a contragosto com a "pecha" de hispânico e não brasileiro. Não que eu seja branco, aliás nunca fui identificado "a olho" por futuros colegas ou estranhos como brasileiro. Para quem me via a primeira vez eu era um indiano sem tirar nem por nada. As pessoas só tinham a certeza que eu não era dessa raça quando eu falava. Não dava para imitar o sotaque carregado dos indianos.

Segregação
A última má lembrança que carrego de NY aconteceu no dia em que fui depositar as cópias da minha tese de Doutorado na CUNY (City University of New York), que fica na 5th Avenida, em frente ao Empire State Building, um lugar extremamente agradável de se ir. Havia um formulário a ser preenchido. E lá estava, mais uma vez, a pergunta que eu tanto odiava: Marque qual raça melhor se aplica para você. Para mim, acreano, brasileiro, latino americano, só tinha uma opção: hispanic.

Não dava nem para colocar outra por que não havia espaço. Criei coragem e perguntei para a educada senhora de meia idade - loira de olhos azuis - que me atendia: "Porque que tenho que fazer isso?" Ela olhou para mim, como que entendendo o meu drama e disse:

- Esta pesquisa é para o seu bem. Precisamos saber quem você realmente é, de onde veio. Além disso, a lei exige, ela apenas quer dar oportunidade igual para todos.

Saí de lá pouco convencido com a explicação que ouvi. Fora do prédio, parei na calçada para admirar o Empire State e observar as pessoas passando. Comecei a caminhar lentamente e cheguei à conclusão que ela estava certa. O único problema é que ela era branca. Se eu estivesse sido atendido por um negro ou hispânico, teria me sentido mais confortável e compreendido de imediato a mensagem por trás da explicação. Teria encarado a classificação racial como "a união que faz a força" e não "a segregação que divide para a manutenção do status quo".

(*) Evandro Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Herbário do Parque Zoobotânico da Universidade Federal do Acre, além de dono do
blog Ambiente Acreano

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