segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

OUTROS PASSEIOS NORDESTINOS

POR JOSÉ AUGUSTO FONTES

Chegamos ao Ceará, depois de percorrer o Maranhão e o Piauí. A beleza dos Lençóis, as peculiaridades de Alcântara e os sons maranhenses nos embalaram; o Delta do Parnaíba, as paisagens de Piripiri, as garças em Campo Maior e as águas de Teresina navegaram nossos olhos. Arquivamos as imagens e tomamos outros rumos.  Nossa vista pousou lá e cá e quis seguir. Ancoramos em Fortaleza, sentimos o gosto do mel de Iracema, caminhamos nas areias do Futuro e fizemos nossos passeios urbanos, já fazendo novos planos.

Decidimos dar uma volta no interior e conhecer o projeto de assentamento do Coqueirinho, um lugar bem diferente e acolhedor. O Coqueirinho fica em Fortim/CE, perto de Aracati. Lá o turismo é ecológico, rural e cultural. Na pousada comandada pela dona Zildene e por sua filha Zilderlene, vimos como funciona a produção cooperativa e como a comunidade se esforça pelo bem comum, com dedicação e força de vontade. A comida é especial e deliciosa. Tudo o que comemos em dois dias que por lá estivemos é produzido no local. Vimos o artesanato e presenciamos apresentação de canto e dança de filhos dos assentados, num conjunto de graça, beleza e harmonia. Havia pessoas da Itália, interessadas naquele viver comunitário associado, que a nós também fascinou. O Coqueirinho merece um capítulo à parte, que fica para outro texto.

De lá nós seguimos para Canoa Quebrada, onde estivemos por dois dias. Ali vimos um show do Nando Reis, na pracinha, na ponta da Broadway nordestina. Tudo muito agradável, mas queríamos mais. E assim seguimos adiante, ingressando no Rio Grande do Norte, para de lá prosseguir. Ainda nem sabíamos que nesses passeios iríamos perambular por todos os nove estados do nordeste brasileiro. E foi assim que chegamos a Natal, depois de passar os olhos por Mossoró. A cidade de Natal é como a cantora Marina Elali, um encanto em cada cantinho faz a gente querer percorrer sem pressa, mas com volúpia, todos os seus suspiros. Encontrei amigos, belisquei umas tapiocas, admirei novamente a Baía dos Golfinhos, passei uma tarde no Pontal de Camurupi e dei partida dali. Beijos e tchau!

Nosso prazer pede passagem para o rio São Francisco. Queremos saciar a nossa sede de aventura e pretendemos ir direto à fonte. Traçamos nova rota e seguimos para Canindé do São Francisco, em Sergipe. Para chegar lá, o caminho é longo e quase cansativo, desde Natal, com uns mil quilômetros de novidades, mas nada nos aborrece. Cansaço? Pra quê, se tudo se veste de novidade!

Há cheiros, sabores e desenhos diversificados; o corpo dança a música que tocar. Circundamos Mamanguape, passamos na biqueira de João Pessoa, cruzamos o Recife e partimos para dentro, no rumo do sertão. Nesse ritmo, o rio Pajeú, cantado por Luís Gonzaga, atravessou pelo nosso caminho. Como estamos indo para o rio São Francisco, as estradas são os afluentes que navegamos, para desembocar no velho Chico. Quilômetros e horas depois, já nas proximidades de Caruaru, o riacho do Navio cruzou nossa estrada. O riacho do Navio corre para o Pajeú e o Pajeú vai despejar no São Francisco, que vai bater no meio do mar. Assim vamos nós, na nossa longa estrada da vida. Beijos e tchau para o mar, pois agora é sertão, com muita emoção.

Nossa trilha vai percorrendo Pernambuco e Alagoas, no rumo de Sergipe. Ainda nem sabíamos que iríamos almoçar na Bahia, dias depois. Enquanto isso não vem, vejo lateralmente Vitória de Santo Antão (cidade do seu Antão Manoel, pai dos meus amigos Lauro e Humberto) seguindo para fazer um lanche na bela Gravatá, com as delícias da serra, queijos, doces e biscoitos. Um café, um cigarro, bolinhos, e o vento frio me leva para adiante de cá. A fumaça do cigarro afastou minhas saudades. O rumo agora é Caruaru, onde vamos olhar a famosa feira. Lá esticamos as pernas, tomamos água gelada e fizemos umas comprinhas. Conversa comprida com um velho motorista, que agora é marreteiro e cascateiro, deu novos rumos para a minha velha prosa. Vamos seguir, enquanto a noite não vem. Mas veio, como sempre vem. Passamos por Garanhuns sob o manto da negritude, sem que a lua olhasse por nós. O carro passou ligeiro, pisei fundo e deitei os olhos na estrada, lembrando que enquanto percorremos Pernambuco ouvimos Gonzagão. E agora, adentrando Alagoas, vamos ouvir Djavan. Assim foi feito e a música nos acariciou o roteiro.

A liberdade foi na poesia e trouxe meu destino, para sair por aí e voar, onde o longe é pouco, cruzando os muros do além. Porém, além da poesia do Djavan, precisamos de pão, para a carne ficar sã. Só que não havia comida em Delmiro Gouveia/AL. Queríamos arroz com feijão, mas naquela hora, só encontramos pizza, após percorrer em vão, alguns restaurantes e uma pensão. Atravessei a praça e optei por uma tapioca de charque, pensando se ainda deveríamos seguir para Sergipe ou pernoitar em Alagoas. Tudo é viagem, lembram? Deliberamos e fomos adiante. Passamos Piranhas, em Alagoas, e seguimos para Canindé do São Francisco, em Sergipe. Há sempre algo novo na outra margem. O rio São Francisco nos recebeu na entrada, valorizando a viagem. Depois da ponte, vimos as turbinas de Xingó. Volteamos pra lá e pra cá, até encontrar o hotel. Dormimos de frente para o rio emblemático, já acertados para conhecer o Cânion, no dia seguinte. O sono foi um tiro só e o sol nascente me surrupiou o sonho. Olho para o rio e o vejo enfático, poético.

O Cânion do rio São Francisco é um espetáculo fascinante, ímpar e imponente. A paisagem formada com o acúmulo das águas pela barragem, uniu-se ao conjunto natural e tudo ficou magnífico. Como já disse Caetano (logo mais iremos à Bahia), no velho Chico, o oculto do mistério se escondeu. Navegamos o dia todo no Cânion, admirando as formações rochosas e o labirinto de águas esverdeadas (65 km de extensão, largura que vai até 300 metros e profundidade que pode ser de 170 metros)  perdendo a vista no esquecimento, como uma música em lamento de amor. Perto dali Lampião foi emboscado na grota de Angico, junto com Maria Bonita. Como num aluvião da emoção, a vida nos dita a partida, vamos para a Bahia. Como tudo tem fim, batemos as asas, imaginando como Lampião bateu as botas.

Seguimos o curso da nossa longa estrada e entramos na Bahia ouvindo Trem das Cores, do Caetano. Tomamos o rumo de Paulo Afonso, onde também fomos recebidos pelo São Francisco, dentro de um vale rochoso esplendoroso, como se aquelas águas verdes estivessem guardadas num cofre hipnotizante. Há também um tom de azul, que deve ser do céu. Como diz Caetano, “num tom de azul quase inexistente, azul que não há. Azul que é pura memória de algum lugar”.

Como essas cores também vão passar, precisamos continuar. Tanta beleza tem algo de ilusão, e eu até parei no vão da ponte, sem medo do caminhão grande que vinha sorrateiro, mas ele também se quedou por inteiro, diante daquela imensidão. Vão vir outras histórias pra contar, de tudo que se tem pra viver, mas o São Francisco invadiu meus registros, como os sem-terra que vimos na margem dos campos, perseguindo alguma possessão. Não vai ser possível esquecer.

Como tudo acaba, o caminho de volta precisa ser trilhado. Em obediência à religiosidade do sertão, vamos fazer a peregrinação da volta por um novo traçado, para fazer umas preces e agradecimentos em Juazeiro do Norte. Seguindo para o Cariri, passamos por Salgueiro/PE, pousando a vista nas obras de transposição do São Francisco e da ferrovia transnordestina. Tudo aqui é esperança, me disse um frentista. A brisa da tarde refaz toda a sensação, nos levando para Juazeiro, onde o monumento de Padre Cícero parece feito de oração. Entregamos nossas almas por algum momento, lá no alto do firmamento, mas o momento não nos despista, e vamos seguindo, pois há notícias para dar, palavras para escrever.

Umas olhadas nos monólitos, no trecho entre  Quixeramobim e Quixadá, para enganar a vontade de chegar, até que Fortaleza chegou e acomodou nosso jeito retórico. Nos entornos de mais uma viagem, plantamos uma flor na nossa passagem. Sem emoção, a constatação da ilusão não tem graça. Fortaleza nos abriu as páginas, feito um livro sem final, mas Rio Branco já nos reclama. É como diz Cecília Meireles, na voz do Fagner: tudo no mundo é frágil, tudo passa. E a nossa prosa pede final, pois as férias estão dando tchau. Vamos para mais um estágio e logo mais um cilindro de aço vai nos botar para voar e voltar pra casa. Nos consola saber que a flor plantada vai ficar e que tudo pode se renovar.

José Augusto Fontes é poeta, cronista e juiz de direito acreano

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