Marina Silva
Na parte do sonho, todos concordam: queremos cidades com ar puro, com menos violência e acidentes, onde as pessoas tenham mais saúde e possam circular em ruas tranqüilas e acolhedoras e, se possível, até mesmo bonitas, apreciáveis.
Na parte da realidade, temos cidades cujo espaço, em sua maior parte, é o território da poluição, das relações humanas estressantes, do agravamento de problemas que parecem não ter solução, a começar pelo tráfego caótico que piora a cada dia.
Para colocar em discussão esses impasses, surgiu na França, em 1997, a idéia de, por um dia, todos deixarem em casa seus carros particulares, com o objetivo de chamar atenção para as conseqüências ambientais e de saúde pública da centralidade do automóvel nas cidades e para estimular o uso de transporte coletivo e o investimento em soluções alternativas para a mobilidade urbana.
Neste ano a tradição se repetiu, no último dia 22. No Brasil, embora várias cidades tenham aderido, ficou uma impressão de fracasso, de algo que não pegou por aqui, sobretudo pelas imagens de São Paulo com um congestionamento recorde. Será que esta é uma avaliação justa?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar o propósito desta ação demonstrativa, que é de conscientização para o fato de que a encrenca na qual nossas cidades estão metidas só terá solução se for muito reduzida sua dependência dos carros particulares, pelas razões conhecidas, que começam na poluição e vão até o impacto no equilíbrio psicológico e na saúde geral de boa parte da população, diariamente refém do tráfego lento ou parado, durante horas. O tempo disponível para o convívio familiar, o lazer, o descanso esvai-se na rotina da prisão dentro dos ônibus e carros.
O protesto simbólico da recusa radical a esta rotina durante um dia tem o papel de lembrar a todos que tal situação não pode ser vista como condenação coletiva perpétua. Que é possível ter transporte coletivo decente e acolhimento, por parte da cidade, àqueles que se dispõem a andar a pé ou fazer uso de bicicletas e transporte solidário. Que é possível desentulhar as ruas e fazê-las reassumir seu papel de vias de escoamento, de trânsito propriamente dito.
Porém, se esse protesto passa a ser apenas um evento sem conseqüências, por que as pessoas se engajariam nele? Uma idéia correta e generosa como a do dia sem carro precisa ser potencializada por um movimento de pressão que garanta a continuidade do momento simbólico e sua transformação em força política para a mudança de uma situação intolerável.
Se não for assim, no começo as pessoas vão, se entusiasmam, as autoridades andam de bicicleta, organizam-se inúmeras atividades, mas com fôlego curto. Acaba se esvaziando algo de grande significado, mas que depende de ações institucionais, empresariais, comunitárias e individuais para seguir em frente e recriar as cidades segundo um padrão de vida sustentável.
O momento histórico é este, quando o planeta enfrenta uma crise ambiental de grandes proporções. Do ponto de vista da oportunidade, o dia sem carro está no caminho certo; é preciso que as pessoas comecem a reagir a esta provocação virtuosa, o que requer consciência dos enormes complicadores para se fazer a verdadeira revolução ambiental que as cidades merecem.
Em primeiro lugar, as medidas de larga escala, que implicam ações institucionais e políticas públicas, só terão efeito se envolverem, ao mesmo tempo, todos os níveis de poder público, com forte participação, fiscalização e cobrança por parte da sociedade. É inútil pensar em autoria política exclusiva num caso desses, que só se resolve com solidariedade institucional e políticas sociais, econômicas e ambientais simultâneas.
Mas há margem para uma racionalização pura e simples da realidade de cada cidade. E aí surge novamente o carro como o nó da questão. Imbatível como objeto de desejo de consumo, ele dá às pessoas aparente segurança e uma tentação quase irresistível a um tipo de individualismo que entra em simbiose com a máquina. Ela está à disposição do seu dono na mesma medida em que o coloca em permanente disposição.
O dia sem carro pode ser também uma espécie de treinamento para o desmame dessa relação, o que significa a pessoa fazer algum tipo de investimento para além de si mesma ou daquele núcleo que lhe é muito próximo. Interagir com a cidade de um modo não pré-estabelecido, procurando deixar de lado o carro em percursos curtos ou nos quais seja possível usar transporte coletivo com algum conforto. Sair com o carro da garagem é diferente de sair do ponto de ônibus, de metrô ou de trem. Dá uma sensação ilusória de domínio da situação, de auto-governabilidade, que acaba se esfumaçando no primeiro congestionamento, quando toda a onipotência se vai, junto com a anulação da potência de todos.
Assim, começar a desenrolar o fio da meada urbana passa também pelo entendimento de que esse apego ao carro é uma armadilha e precisa ser desconstituído pela consciência. Para essa finalidade, um dia sem carro pode ser o detonador de uma inflexão positiva para o desmame e para a reconstituição de cada um como cidadão atuante para transformar sua cidade. Não é fácil. Pode ser necessário um enorme esforço para cortar uma rotina estabelecida há tanto tempo e da qual quem tem não abre mão e quem não tem sonha em poder ter
◙ Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre, ex-ministra do Meio Ambiente e colunista da Terra Magazine.
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