quinta-feira, 14 de junho de 2007

CARTA AO ZÉ

Flamínio Araripe

Caro Altino:

Segue a carta que fiz pro repórter José Alencar. O conheci em Fortaleza, o suficiente para a pegada afetiva mútua deixar rastros. Um foi com a cara do outro. De São Paulo, nos falávamos por telefone e pouco e-mail, pois por um período não esteve bom da vista. Em maio, Miguel Macedo, jornalista em Fortaleza, o encontrou no Congresso da Associação de Jornalismo Investigativo (Abraji) e voltou com um recado do Zé: queria saber o meu e-mail, queria me falar. Quando escrevi, o destinatário foi pro hospital tratar o seu grande coração que expandiu a aorta e mexeu com o sentimento de muitos que gostavam dele.


Prezado Zé:

Escrevo de Rio Branco, Acre. Revejo a cidade onde morei há 18 anos. No ano passado vim pela primeira vez para cá depois de mudar para Fortaleza. No período houve uma transformação no perfil urbanística em vista do que era, com reflexos também nas pessoas. Depois de cearense, minha segunda nacionalidade é acreana. Vivi seis anos esta terra, um tempo denso em experiências profissionais e de vida, fecundas para nossa família.

Recebi o recado da sua grata lembrança no Congresso da Abraji. Não quis escrever em meio à correria em Fortaleza. Sempre associei esse
momento de escrever a um amigo como um exercício de libertação dos laços do dia-a-dia no exercício do papel social predominante, o trabalho. Rotinas que tiram de nós, dando às vezes tão pouco mas o suficiente, enquanto a atividade de falar a um amigo somente repõe.

Aguardo o vôo para Cruzeiro do Sul, para participar da cobertura da II Reunião Regional da SBPC com o tema Universidade da Floresta, para o Jornal da Ciência. Uma proposta que reúne pesquisadores ligados ao estudo da região e com ela comprometidos para aprofundar com índios, seringueiros e ribeirinhos a discussão do projeto de uma instituição de ensino superior, pesquisa e extensão.

Norteia o encontro uma intenção de aproximar o saber científico do conhecimento tradicional e gerar riquezas para os moradores locais com a perspectiva de manter a floresta em pé. Um bom sonho para transformar em realidade. Vim à Reunião do ano passado, que gostei
muito pela oportunidade de rever o Acre e o desafio sempre presente que experimentei de aplicar o jornalismo a uma necessidade social
objetiva.

Dizem os cientistas que a Serra do Divisor, área de proteção ambientalde Cruzeiro do Sul até a divisa com o Peru, concentra importantes e únicos registros de biodiversidades, onde foram descritas as maiores quantidades de borboletas e de seres da família dos sapos e rãs (anuros, né?) do planeta. Em meio a uma flora preservada, um maciço da floresta amazônica cortado pelo rio Moa, de águas transparentes. Os pesquisadores falavam dessa riqueza quando um seringueiro disse que vivia sobre um tesouro de recursos naturais mas não tinha sapatos para a família nem condições de comprar um vestido para a mulher.

Em Fortaleza, exceto por este vínculo com o Jornal da Ciência, tenho trabalhado fora das redações com assessoria de imprensa. Atendo cinco ou seis clientes, todos na área de ciência e tecnologia (um deles não paga desde janeiro - nem sei se posso mencionar). Gosto do tema mas às vezes tende a ficar uma coisa muito institucional onde o vínculo com o sabor da notícia neste contexto é uma construção solitária. Em alguns momentos meio agoniada pela falta da plataforma que temos quando estamos em redação.

E você, o que anda fazendo? O projeto de publicar livros teve continuidade? Projetos na agulha? E a família? Quando você vem de novo a Fortaleza?

Sinto-me meio consumido pelo trabalho, o que não é novidade. O desafio é saber trabalhar consigo mesmo para não fazer do que trabalha em nós, em que nós trabalhamos, apenas a única referência. Preciso encontrar um jeito de não ficar brigando com os afazeres diários, pois fazê-los já é suficiente.

O lado bom é que em casa todos estão bem. Chu voltou a estudar num curso noturno de Teologia e trato de chegar cedo em casa para cuidar do jantar do David, o filho de 11 anos. Ana, agora com 23 anos, está em Brasília num estágio em escritório de arquitetura, e Rodrigo, com 26, trabalha no Instituto Atlântico, que faz P&D em tecnologia da informação e telecomunicações.

Um grande abraço

O jornalista Flamínio Araripe trabalhou nos jornais do Acre e foi correspondente da Folha de S. Paulo.

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