terça-feira, 19 de junho de 2007

A BUROCRACIA NO MATO

José Carlos dos Reis Meirelles

Quem trabalha em regiões distantes dos grandes centros urbanos, adaptados às inovações burocráticas quase diárias, criadas por portarias, decretos, memorandos, considerandos, normas, bulas, dogmas e outras idiossincrasias, cada dia mais se encontra em uma situação, no mínimo, curiosa, para não dizer estapafúrdia. Recebemos os recursos e não podemos gastá-los.

Recebi recursos para pagamento de serviços de oficina mecânica para conserto de motores da Frente Envira, no valor de R$ 1 mil - serviços prestados em Feijó e Jordão. Para que tal altíssima quantia fosse gasta pelo erário era necessário que as oficinas possuíssem notas fiscais de serviço, conta bancária, e que fossem cadastradas no SICAF. Acontece que nenhuma oficina, nas duas cidades, possui nota fiscal, seus donos não têm conta bancária e quando falei em SICAF, alguns fizeram caras de espanto, outros não entenderam o que foi dito e o último quis botar pra briga, pensando que SICAF fosse um palavrão, dos mais ofensivos, assim como ser cadastrado num clube de cornos.

Liguei para a administração da Funai em Rio Branco tentando solucionar a questão. Sugeri que me fosse concedido um suprimento de fundos para pagar os donos de oficina, mediante um recibo. A resposta foi ainda mais complicada: a Funai não concedia mais suprimento de fundos à maneira antiga - só no tal cartão coorporativo, que nem o camarada do setor financeiro, e nem ninguém sabia como era e como funcionava.

Ainda pensei em pedir reprogramação dos recursos para material de consumo, tirar uma nota fria em um comerciante amigo, receber dele o dinheiro menos o imposto da nota e pagar as contas. Aí, o comerciante, por mais amigo seu, pensa: "Esse cabra tá roubando". Pior a emenda que o soneto, solicitei à administração que devolvesse o dinheiro para Brasília, pois não tinha como gastá-lo.

Fico aqui a pensar que teremos que despachar um motor Yanmar NSB18, que pesa 250 quilos, de avião para Rio Branco, para que ele seja consertado. O frete deste motor, ida e volta, sai por uns R$ 2,5 mil. Fora a mão-de-obra de despachos, mais papéis como memorandos, ordens de serviço, autorizações para transporte em carros da Funai, consulta de preço da oficina mais barata, orçamentos, empenhos, e o final pagamento, e, a contar com a eficácia do pessoal da administração, a demora será de, no mínimo, uns seis meses para devolver o motor, isso se tudo corresse bem e nenhum funcionário gripasse.

Ou o Governo Federal fecha todos os estabelecimentos que não possuem a papelada para poder receber seus recursos, principalmente na Amazônia, ou teremos que parar de trabalhar em campo. E me parece que a idéia é mesmo esta. Vai todo mundo para as capitais de estados, cada um se senta diante de um computador e se dana a escrever estórias irreais acerca dos poucos índios que ainda teimam em morar no mato, ou passa o dia jogando paciência, mandando e recebendo e-mails bobos ou vendo mulher pelada na internet, com a despesa paga pelo Estado.

Termino aqui plagiando o João Ubaldo Ribeiro em seu romance "O Feitiço da Ilha do Pavão", onde um de seus personagens, o índio Tatánhangá, mal entendido, a começar pelo nome, e chamado Totonhangá, batizado por Balduíno da Anunciação, apelidado Balduíno Galo Mau, em um discurso inflamado a seu amigo Nhô Pepeu, quando protestava contra a decisão dos mandatários da Assinalada Vila de São João do Esmoler do Mar do Pavão, que os índios de seu povo deveriam a voltar a morar, definitivamente, no mato.

- Pessoá quer que índio vá pro mato! Índio não vorta pra mato! Tem anzol no mato? Tem vrido no mato? Tem dinheirim no mato? Tem cachacinha no mato? Tem jogo de baráio no mato? Tem calçado, tem refrigerante, tem açuca, tem travessero, tem cochão, tem carro, bicicreta, água gelada, casa de muié-dama no mato? Tem loja de roupa na mato? Tem faca no mato? Tem posentadoria no mato? Branco mora na cidade! Se mato fosse bão branco morava no mato. No mato só tem pium, maruim, catuqui, carapanã, cobra e perreação. Índio não vorta pra mato! Não vorta! Só vai pra mato quando tem sodade de lavá cu no rio, enquanto branco não chuja água dele. E tem mais, se mato fosse bão, branco não derribava mato.

Desconfio que temos que, o mais rápido possível, fazer contato com os índios isolados, chamados brabos, aposentar os mais velhos, ensinar os mais novos a tomar cachaça e a andar com os tênis da moda e ir todo mundo pra cidade. Afinal eu já estou aposentado.

O sertanista José Carlos dos Reis Meirelles é chefe da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira, na fronteira do Acre com o Peru.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oh Meirelles, como eu gostaria de poder te conhecer. Pessoas como você sao jóias neste mundo de meu Deus.

E.F.

Anônimo disse...

Meireles
Você não deve lembrar de mim. Eu o conheço de priscas eras. Sempre soube de sua seriedade.
Entendo, perfeitamente, seu desapontamento com os entraves da burocracia que há muito assola este país. Um mundo tão diferente, se considerado que, a amazônia, mormente nas regiões mais distantes e/ou insalubres, como se quiser nomear, não tem nada a ver com as regras gerais. É tudo muito diferente dos centros urbanos. Grandes ou pequenas, como for.
Você deve lembrar perfeitamente da galera que, outrora, visitava aldeias e mais aldeias, tribos e mais tribos, apenas pelo fato de estarem credenciados por concurso público realizado aqui, ou em Brasília, ou seja lá onde tiver sido. Digo visitar, pela simples razão do pouco tempo que passavam por aqui. A expressão "mexer com índio" parecia profissão regulamentada por lei. Também há de lembrar dos que, apenas, por curiosidade, queriam viver as entranhas das matas e observar as culturas diversas. Nas rodas e rondas dos bares a pergunta identificadora: o que você faz? eu mexo com índio.
Demorei muito a assimilar esta expressão - mexer com índio. O que seria mexer com índio?
Posso contar um segredo?
Posso dizer como entendi a expressão?
Um dia, numa festa, lá estava um filho da selva, bonito, rude, simples e vestido com o seu melhor traje de cidade.
Uma moça muito bonita, vestida com o melhor das grandes cidades,muito sagaz, olha para aquele "espécime" e diz. em alto e bom tom: eu vou comer esse índio.
Sai, vai para um motel, junto com o "esquisito", come, paga a conta e volta para a mesma festa com os cabelos molhados. O/a "espécime" estava visivelmente mais desconfiado. Também de cabelos molhados, banhado, sem cheiro de esperma , senta num cantinho. Passa a noite ali, pensando assim: a branca pensa que me comeu, mas eu que tracei ela.
Voltei para minha casa e, durante a madrugada, fiquei pensando: My God, acho que descobri o verdadeiro significado do que é MEXER COM ÍNDIO.
Prezado, que bom ver você ainda trabalhando com e pelos índios, mesmo diante das dificuldades tipo essa que relata.
Um grande abraço.
Leila Jalul

Cartunista Braga disse...

Altino, esse negócio de mexer com índio é com meus amigos Terri Aquino e Marcelo Piedrafita Iglesias, não sei se da maneira que a dona Leila descreveu,aliás muito bem escrito, diga-se de passagem. Seus textos sempre me enlevam a alma. Espero tomar uma café com você e com ela quando estiver em Rio Branco.