quinta-feira, 15 de março de 2007

PAIXÃO À PRIMEIRA VISTA

Cora Rónai

Cidades limpas e cuidadas, casinhas humildes mas tinindo de arrumadas: sorria, você está no Acre

Hoje de tarde fui à Bolívia, que fica logo ali. Encontrei Lima Duarte e Cássio Gabus Mendes bebendo umas Paceñas no boteco da esquina, enquanto, na praça em frente, centenas de maritacas fofocavam antes de se recolherem às palmeiras onde dormem. Conversamos e rimos muito; na volta, parei na beira do rio para me despedir de três jovens capivaras que avistei ontem.

Não, não estou de pileque. Estou na cidade de Brasiléia, a poucos quilômetros de Xapuri. Vim de enxerida, ver as gravações da segunda fase de “Amazônia”, a fantástica minissérie de Glória Perez — e estou totalmente apaixonada pelo Acre.

A exuberância da natureza na região Norte nunca deixa de me surpreender, mas no Acre há bem mais do que isso — há um amor pela terra que se manifesta nas centenas de bandeiras do estado que tremulam em mastros oficiais, que se mostram nas lojas e nas casas, e que percorrem as ruas como adesivos de automóveis, motos e bicicletas. Isso quando não vão coladas ao próprio peito dos acreanos, como estampas de camisetas.

Em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo na Nova York dos tempos da campanha “I love New York”, vi tanta gente usando camisetas com símbolos locais.

Faz um bem danado à alma da gente ver isso.

Depois há, por toda parte, paredes pintadas nas cores mais alegres. No começo achei que isso fosse coisa da capital, privilegiada por administrações de matar qualquer carioca de inveja; mas não. Percorrendo os mais de 200 quilômetros que levam de Rio Branco à fronteira com a Bolívia, onde quer que se pare há uma janela vermelha, uma porta azul, uma fachada verde.

Esse gosto pelo colorido se vê igualmente nas roupas estendidas para secar. Qualquer varal humilde perdido pelo interior parece adereço cenográfico. Isso, aliás, criou um interessante paradoxo para a equipe que faz “Amazônia”, e que acabou deixando de lado muitas locações importantes, porque pareceriam bonitas demais, limpas demais para serem verdadeiras.

O grau de limpeza surpreende, mesmo. Em Rio Branco, cheguei a pensar que as ruas tão bem tratadas fossem apenas o resultado de um esforço ocasional para transmitir uma boa imagem, aproveitando a visibilidade proporcionada pela minissérie; mas em Brasiléia e em Epitaciolândia, onde encontra-se a equipe da Globo, há cuidado igual com os espaços públicos. As cidades não são ricas, em alguns lugares o asfalto está esburacado por causa das chuvas, mas quase não se
vê lixo nas ruas ou pixações nas paredes.

Confesso que, diante dessa pobreza digna e asseada, me envergonhei pelo estado lastimável em que se encontra o Rio. Como todo carioca, estou cansada de saber que não há turista americano ou europeu que não fique chocado diante de tanta sujeira e falta de manutenção; agora sei, por constatação própria que, neste quesito, fazemos feio também diante dos acreanos.

Percorrer este interior, que o pessoal gosta de definir como “Brasil profundo”, sempre me comove. Entra-se em outra dimensão do tempo, num mundo mais simples, menos consumista, mais apegado aos valores da terra.

Vejo as casinhas modestas de madeira, de um ou dois cômodos, limpas e aconchegantes, onde as pessoas vivem com tão pouco, e me assusta o contraste com as cidades grandes, onde cada vez juntamos mais coisas inúteis à nossa volta.

É claro que há também o reverso da medalha.

Tenho uma tendência natural a buscar o lado bom do que me cerca, mas é impossível ignorar a devastação pela qual passou este estado ao sobrevoá-o, ou a atravessar quilômetros e quilômetros de pastos e mais pastos.

A paisagem é linda e bucólica, com certeza — mas ali, onde pasta o gado, houve, um dia, uma floresta inteira que veio abaixo. Isso corta o coração.

Passeando por Rio Branco de bicicleta com Jorge Viana, ex-prefeito e ex-governador, também era impossível ignorar a presença ultradiscreta dos guarda-costas, que não estavam lá como símbolos de um eventual poder, mas como necessidade fundamental de sobrevivência de um homem que teve coragem de desafiar os bandidos que controlavam a região.

Quem lê jornal sabe que este é um lugar onde as desavenças continuam a ser resolvidas a bala.

O Acre não é um destino turístico como Manaus ou Belém, mas deveria ser. Não tem teatros mirabolantes plantados na selva (quase não tem mais selva, a bem da verdade) mas, entre seus defeitos e qualidades, entre as tragédias do passado e o gigantesco esforço de recuperação da auto-estima do presente, reúne uma quantidade única de lições de Brasil.

Cheguei há três dias, vou embora logo, mas tenho, desde já, duas certezas: a de que esta foi uma das mais extraordinárias viagens da minha vida, e a de que este é um recanto do meu país que levarei para sempre no coração.

O artigo de Cora Ronai foi publicado no Segundo Caderno da edição de hoje do jornal O Globo.

15 comentários:

Anônimo disse...

Anagrama interessante. Cora<=>Arco. Ronai<=>Raoni. Simples coincidência. Ou não.
Grande Cora Rónai.

Anônimo disse...

Pelo carinho que ela demonstra ter pela floresta e pelas coisas simples, esse nome pode ter aparecido por atavismo. Quem sabe a Corinha já não andou pelas plagas acreanas em outros tempos? Veio apenas matar as saudades...

Anônimo disse...

Cora ser apaixonou ela vai volta em breve.
Que bom que nosso Acre faz bonito alias os acreanos, nós perecemos um parabéns bem gradão do tamanho do Acre.
Viva nos na tela da globo, em jornais em cada cidade deste Brasil sil

Anônimo disse...

Cora,minha cara,
Obrigado pelas palavras carinhosas.
Meu CORAção carmim está nas alturas.
Valeu maninha!!!

Anônimo disse...

Meu colega anônimo, gostou tanto da Cora que já tá mirando com ela em outras épocas,pode ser também efeito da minissérie, pois todos vamos ficar com a sensação de participação direta na epopéia acreana, esse grande poema histórico de ficcionismo fantástico da grande estrela da ficção brasileira, a acreana Glória Perez.

Anônimo disse...

Tudo bem, Cora é Cora.
Gostei dela muito antes de muitos gostarem. Muito mais pelo que sabe sobre o uso de tecnologias. O texto de hoje apenas reforça. Assisti uma entrevista dela num desses canais pagos e, confesso, senti inveja. A mulher é fera! Sabe de tudo, arre égua! Não é uma anta, que nem eu, que só usa apenas 000,02 por cento da minha cabeça animal.
Cora viu muito em poucos dias. A bem da verdade, não viu nada.
Não conheceu Santa Rosa, Rodrigues Alves, Freijó (como carinhosamente apelidei Feijó). Não sabe onde fica a Foz do Jurupari. Tudo bem, dependendo da companhia, no problem, ela gostaria. Gente como a Rónai vai se adaptando e sabe estabelecer defeitos e perfeições, sem pruridos. Entre um Cristo Redentor e uma Cachoeira do Ar-condicionado, valerá sempre o prazer de estar feliz. Nenhum sintoma de bairrismo, sentimentos menores. O bom da vida é viver.
Cora só tem um defeito, grave, a meu ver: gosta de gatos!
Um carinho especial para ela.

Anônimo disse...

eita saudade maldita! Beijos para o Acre e os acreanos!

Anônimo disse...

CORA, teu artigo teria outro conteúdo se tu: a)com a consciência crítica que tens, morasse no Acre; b)discordasse do governador (seria caçada por isto) e, d) se conhecesse a periferia.
Como não, tudo são flores aos olhos de quem passa.

Anônimo disse...

Se ela gosta de gatos, com
certesa irá gostar de mim!

Cora disse...

Amigos, muito obrigada pelo carinho. Todo ele: tanto o que me deram aí quanto o que manifestam agora. É mútuo, acreditem.

De fato, morar num estado ou andar de passagem, como andei, são duas coisas completamente diferentes; mas a única crônica que posso escrever é a das coisas que vi como viajante.

Adorei o Acre que vi e os acreanos que encontrei; bem que a Glória Perez me disse que o estado era completamente diferente do resto da Amazônia, mas eu achava que era bairrismo. Pois não é não.

Beijos para todos, e até a volta!

Ah, sim -- Leila: todo poder aos gatos!!! =^..^=

Anônimo disse...

Cora aproveita para visitar entre outros José Assem - Epitaciolandia, Lenonardo Barbosa e Samauma - Brasiléia, Taquari, Sobral - Rio Branco.

Anônimo disse...

Há uma década Camile Paglia produziu um capítulo fantástico sobre as preferencias egípcias pelo gato e gregas pelo cavalo.Vale a pena ler in "Personas Sexuais". Os acreanos são incondicionalmente apaixonados por sua terra. Mas, como indios, são movidos a guerras tribais, passam o ano inteiro de inverno a verão se hostilizando, vale tudo até encher a bola de forasteiros para causar irritação. Ciumentas cada tribo reivindica para si o monopólio da acreanidade.Quando uma tribo toma o poder então é uma desgraça, vira absolutismo monárquico ou despotismo esclarecido, como queiram.A educação ainda é jesuitica e a saúde é uma espera por milagres.A beleza do Acre é o seu místicismo, é a sua mística que captura as almas das pessoas que por aqui passam. É a sensação de que o Acre ainda pode ser salvo.

Anônimo disse...

"De certo ela (Cora) se encantou com a “Amazônia” que eles não têm. Mas a realidade do dia-a-dia é outra. O texto é bonito. Seria até bom para ilustrar um romance, mas... Antes tivéssemos todo esse lirismo para não ficarmos apenas esperando, com anseios por oportunidades iguais (e a todos), sejam elas quais forem, pois ir atrás delas já não dá mais resultado!"

Anônimo disse...

Cada pessoa fala o que quer, mas temos que concordar que muito foi feito pelo Acre, quantas dificuldades já passamos, quantas notícias ruins já saíram nos jornais sobre essa terra... Não se pode mudar tudo como num passe de mágica. Tô com a Cora e não abro.

Anônimo disse...

Parabéns Cora, pelo belo artigo, concordo em tudo o que diz, exceto o trecho "quase não tem mais selva, a bem da verdade" pois o Acre ainda possui menos de 20% do seu território desmatado. Você sobrevoou apenas a região do Baixo Acre (sentido Rio Branco - Brasiléia) que dos anos 80 pra cá sofreu intensa atividade exploratória dos imigrantes do Centro-sul do Brasil que diziam estar trazendo novas tecnologias pra o Acre e na verdade estavam expandindo o território da devastação de suas regiões de origem, a exemplo do destino mórbido e sombrio da Mata Atlântica ou o que restou dela. Cora, da próxima vez que vieres ao Acre não deixe de visitar as regiões do Alto Acre e Juruá, verás o quão belo e exuberante é nosso Estado, nossas florestas, as cachoeiras da Cerra do Moa, vale a pena visitar! O Acre precisa de pessoas como você, que divulguem as maravilhas da região com o ar da verdade, e não sensacionalismos distorcidos.