quarta-feira, 7 de março de 2007

E O EMPREGO, DOUTOR?

José Augusto Fontes

Tenho certeza, por exemplo, de que o filho da Delzuíte é do boto. Se não nasceu boto, foi por má-formação genética. Esses botos aqui do Acre também têm lá seus testas-de-ferro, seus ‘laranjas’.


Eu estava vendo a minissérie Amazônia na telinha, me distraí e li algumas notícias na Internet. Naveguei e vi uma mensagem de um homem desempregado. Do conjunto de informações da televisão, da internet e da mensagem eletrônica, nasceu o resumo a seguir, começando pelas notícias.

O PIB do Brasil, em 2006, cresceu apenas 2,9%. Em toda América Latina, esse crescimento só ganhou do modesto crescimento do singelo Haiti (2,5%). Países como a Venezuela e a Republica Dominicana cresceram 10%. A Argentina cresceu 8,5%, o Uruguai 7,3%. É o segundo ano seguido que o Brasil cresce menos de 3%. Nossa taxa de juros... Bem, vamos pular essa parte, precisamos deixar o homem trabalhar. Na mensagem eletrônica, o desempregado falou de suas impressões sobre política e economia e sobre a vontade frustrada dele de trabalhar. E daí, eu pensei em ficcionar.

Mais notícias. Li num jornal virtual que a carga tributária brasileira, em 2006, atingiu 38,80% do PIB e que o crescimento da arrecadação foi de R$-82,2 bilhões (federal, estadual e municipal), tendo sido pagos mais de R$-815 bilhões de tributos em 2006, sendo que cada brasileiro, em média, pagou R$-4.434,68 de impostos.

Traduzindo: Os brasileiros perderam, compulsoriamente, o poder de compra de seus salários; tiveram que encarar aumentos nos preços das mercadorias e dos serviços; de encarar quedas no consumo; de seguir, com olhos perplexos, a fuga de investimentos produtivos; e de, repetidamente, experimentar as dificuldades advindas dos juros excessivos para a criação de empregos formais. Isto parece ficção?

Resumindo: Nossa carga tributária é a pior do mundo, pagamos tributos para ter os melhores serviços europeus mas recebemos retorno de terceiro mundo favelado. E temos que encarar custos de planos de saúde privada, de vigilância alternativa, de estudo particular para os filhos, desde a escolinha até a faculdade, dentre outros. E assim, vamos levando um fusquinha cheio de bossa, pensando nas alturas de um MD-11. O Haiti é aqui. Mas faz pose para luzes de Paris, usa cabelos suecos, cheios de reflexos alemães, come sardinha enlatada e arrota bacalhau norueguês. A educação? É suíça, claro.

A mensagem do desempregado falava de políticos sisudos, com jeito imponente, aperreando a pessoa comum a crer em tanta representação. Em políticos com ar de preocupados, querendo mostrar que estão sempre pensando nos problemas daqueles que eles representam representar, digo, que eles representam que representam. Um jeito assim a dizer que ninguém encoste, pois eles têm mais o que fazer. Falava em uma imagem que eles estariam a transmitir, de que estão sempre trabalhando pelo bem-comum e pela felicidade geral. Ou de que a gente deveria mesmo era saber que ainda estamos ganhando um boi de alguns, com chifres e tudo. E que muitos deles têm boa imagem própria, e até a confirmam, intimamente, quando, vez ou outra, abraçam a gente comum, dão um ou dois tapinhas, meio sorriso, e pensam deixar satisfeita essa gente, quando saem desejando tudo de bom.

Como leitor quieto, procurei entender bem, mas não consegui alcançar tudo. Sou ruim com números e péssimo com mensagens cifradas. Nesses casos, minha imaginação é tímida demais. Mas ouço dizer que agora, com o PAC, tudo vai ser diferente e que daqui pra frente isso e aquilo vão dar certo, até demais. Ouço e faço força para entender, quase creio. Até que não sou tão ruim em ficção. Há coisas que dão, outras que não dão certo. O certo mesmo é que a cada quatro anos há eleição, copa do mundo, olimpíada, dentre outras coisas. O que não der certo, muda-se com a propaganda, com os clichês, com o circo de pão doce, sempre armado à sombra de frondosas árvores em que não nascem frutos proibidos. Daí, pode-se fazer marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo.

E na minissérie, para comprovar que creio em muitas coisas da ficção, vi uma moça desamparada entrar para um bordel, ou para uma companhia de dança, e entendi certas coisas: Tenho certeza, por exemplo, de que o filho da Delzuíte é do boto. Se não nasceu boto, foi por má-formação genética. Esses botos aqui do Acre também têm lá seus testas-de-ferro, seus ‘laranjas’. Logo, por isso mesmo, o menino veio disfarçado e faceiro. E mais. O Viriato só apareceu depois porque tinha um sacoleiro (ou um pasteiro) muito liso, que precisava penetrar nas brenhas úmidas e parir Mateus por ele. Deram até outro nome ao boto júnior. Mas depois ficou tudo certo, acertado, quitado, quando o Viriato passou a embalar o botinho.

O mais é fantasia, são adereços e alegorias que botaram no quengo dele. E a Delzuíte, na precisão de um emprego, abraçou a profissão que se lhe apresentou. Pelo que pude deduzir, ela também vai começar de novo, igual ao PAC, na certeza de que será tudo diferente, com a bênção do padre José. Essas coisas são assim mesmo, basta entrar no enredo e já se vira artista. Aliás, para bandido há muitas vagas, mas para mocinho ou marionete, nem pensar.

É preciso entender, ouvir bem o que a mídia nos informa, o que a trama da ficção nos revela, com as melhores intenções. E ter fé, muita fé, sempre. Afinal, para quem é da floresta, encantos e magias não são nada, diante da imensidão de uma castanheira parindo do alto e distribuindo frutos. Ou diante da manhosa seringueira, um pau que dá leite viçoso para mexer e endurecer, até virar borracha. É a mesma fé que sustenta as pessoas que esperam para ver o asfalto chegando no Juruá. É a crença que move o pessoal que recebe as bolsas de alimentação, esperando pelo emprego prometido e renovado, com certezas sacramentadas. São rios de esperança que movem os alagados, periodicamente. É do lixo que nascem os favelados. É a fé que faz nosso personagem esperar por um emprego, dizendo na mensagem, “e o emprego, doutor, quando será que consigo?”

Enquanto Seu Lobo não vem, não veio... o homem continuou: Como só se vive política, só se pensa em poder, o ato de amanhã será, outra vez, para manter e aumentar o poder de ontem. A ordem é investir na capacidade política para, se possível, beirar a eternidade. A idéia não é proporcionar, possibilitar, mas ir dando, aos poucos, em moedas, para ter certeza dos futuros dividendos. É dando que se recebe! Ou que se concebe. Quando lutou tanto, será que Plácido de Castro sonhou com isso? Ou será ainda temprano para la fiesta?

Talvez seja mais fácil entender os devaneios de Galvez, sobre ser independente e criativo. O sonho é sempre possível, e na mesma ocasião, sonha-se com impérios e com guerras, com virgens e com botos, o sonho faz tudo possível. Já o emprego... Quase no ocaso da mensagem havia uma frase da música cantada por Luiz Gonzaga: “Seu doutor, uma esmola, para o homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão”. Pensei que o desempregado poderia fazer versos. Depois deletei. Para trabalhar com versos é preciso adular homens, há uma fundação em cada esquina, mas seus frentistas apenas abastecem o carro, apenas seguram na mangueira do leão. Isso não é festa, é revolução. Mas o patrão não achou nenhuma graça.

E no fim ele insistiu em dizer que está desempregado, que tem boas idéias, mas que anda desiludido. Despediu-se, desejando uma boa felicidade e pedindo ajuda. Eu pensei: Ser pessoa é muito mais fácil do que ser cidadão. Para o cidadão, há direitos e deveres. Além do reivindicar, há o obedecer, o cumprir. E o pagar pra ver, mesmo que seja esperando, esperando, crendo em lendas e em tudo o mais. Ser pessoa é quase natural, é não pensar, é ir levando. Talvez por isso, a Delzuíte tenha esperado tanto pelo Tavinho, acreditando, crendo. Até que um dia... a carne é fraca, esperar cansa...

É dando que se concebe! Igual ao Viriato, que de tanto chorar, de tanto esperar boa sorte, gastou as lágrimas e agarrou-se com a Dinah. Em água de boto, jacaré não balança muito o rabo. Em terra de paca, tatu caminha dentro, disse o macaco-prego para o veado capoeiro. E cupuaçu abunda. Essas coisas, nem os ogros poderosos explicam. Quem sabe, discursando do púlpito, emocionado e sensibilizado, o padre José conseguiria abençoar. O padre José é outro expoente da fé. E é bom exemplo de ficção. Nessas brenhas, diria ele, a alegria desce de bubuia, já que em terra de cego, mapinguari é rei.

Para concluir, tentando crer na boa-vontade e nas boas ações, na magia e na ficção, com fé nos deuses e nos sacis, ergo meus olhos vacilantes para os duendes da floresta, em nome desse cidadão que escreveu a mensagem dizendo estar desempregado, vivendo do que lhe dão, e peço por ele, catando a melhor poesia entornada no chão: Deixem o homem trabalhar!

José Augusto Fontes é juiz, poeta e escritor, autor de "Páginas da Amazônia", à venda na Livraria Paim, ao preço de R$ 40,00. O livro reúne várias crônicas publicadas no jornal Página 20, ilustradas com fotos de locais do Acre e da floresta amazônica.

Um comentário:

Anônimo disse...

O desemprego galopante penetra nos varadouros abertos pela borracha e nos nivela à miséria. A minissérie que veio para nos orgulhar de sermos brasileiros só reafirma que o nordestino é mesmo um homem despatriado,triste destino.A fome nos bairros de Rio Branco é maior que nos tempos dos seringais,acabou-se as embiaras, o rio ficou poluído. Somente sobrevivendo bem os caçadores de votos e de almas, ou seja, os pastores e os politicalheiros,os demais estão todos miando de fome, pois acoisa tá tão feia que nem urrar se consegue mais. Triste pátria. Viva o Acre independente,viva Galvez ! A minissérie é nossa max miséria histórica.