quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

A PONTE DO RIO CORAÇÃO

Leila Jalul

Em 93, de forma absolutamente inexplicável, quebrei uma perna em oito lugares. Até hoje ainda creio num empurrão vindo de algum invisível despeitado. Cansada de tanto amassar a cama, resolvi ir para Boca do Acre (AM) e amassar a cama dos outros.

E lá me fui com minhas muletas e dois amigos à tiracolo, para qualquer eventualidade. A última vez que lá estive foi em 54, quando, à bordo do Navio Benjamim, fui para o internato em Sena Madureira. Situações bem diferentes. Na primeira, fui na marra. Na última, fui por gosto, apesar de estar sem perna.

Boca do Acre me surpreendeu. Da cidade velha, pouco restava. O que vi foi uma estrutura urbana interessante, construída na parte alta, e que se chama Pequiá.

Logo avisto no porto um aviãozinho dentro d’água, novinho em folha. Fui logo perguntando o que estava fazendo ali aquele troço que pensei nem existisse mais. E um recepcionista do hotel me disse que era da Rede Globo e que estava transportando uma moçada para o Céu do Mapiá. Era a febre desse tempo.

E foi assim que decidi, de pronto, não ficar naquele hotel onde entrava e saía gente barulhenta, sem contar a multidão que se aglomerava na porta para ver o fulano de tal que trabalhava na novela das seis, na das sete e na das oito. Um bafafá!

Pronto. Decidido. Vou para o São Paulo, que é terra firme. Vou para a casa do meu colega França. Contratei um estivador parrudo, que subia e descia com botijas de gás para que me transportasse barranco abaixo. E assim fui para o segundo distrito de Boca do Acre. O apoio logístico que recebi do pessoal da balsa da Petrobrás e da turma da catraia, foi perfeito. Nada a reclamar.

Fui recebida com uma cervejada. No trajeto, caras curiosas apareciam. Todos sabiam que o França ia hospedar uma velha, de perna quebrada. Me acomodei. França armou uma rede na varanda. Tomei mais cerveja. Nunca tomei tanta cerveja de graça na minha vida. E foi dessa rede que avistei Coração.

Coração. 85 nos costados, andando sem auxílio de nada. E Coração, já sabendo da novidade, também parou para cumprimentar a hóspede de seu vizinho.

Sabe aquela paixão à primeira vista? Coisa de pele? Fomos, segundo afirmam, feitas uma para a outra. Meus fins de tarde estavam garantidos. Conversar com Coração.

- Coração, me diga, nega, o que que você aprontou nessa vida? Conta tudo!

- Leilinha (lá se vem a intimidade), eu fiz de tudo. Até meus trinta e poucos, fui parteira. Depois cansei. Fui ser embarcadiça.

- Me conta! Em navio?

- Primeiro em navio. À medida que o tempo foi passando, a tonelagem também diminuía. Passei por batelões, baleeiras, por todo tipo de tripulação!

- Cozinhando?

- Sim. Sim.

- Todo tempo na cozinha?

- Sim. Era assim: eu servia o café da manhã e eu era a merenda. Fazia o almoço e eu era a sobremesa. Fazia o jantar e eu era a ceia. Depois de tudo a gente ia dançar um pouco. Ninguém vive só de trabalho!

- Era assim mesmo?

De repente, Coração olha para o Purus e me diz, com cara de saudade:

- Ta vendo esse rio? Se eu tivesse que construir uma ponte, juntando os meninos que peguei e os homens que me pegaram, dava pra construir uma ponte que ia e outra que vinha.

- Coração, que coisa!

E rimos juntas. E tomamos mais cerveja juntas. E outras tardes juntas, eu e minha Coração, a quem nunca perguntei o nome. Se ela se chamasse Matilde, não teria a menor graça.

Já morreu, mas deixou uma lembrança que não me é possível arrancar. Toda vez que vejo uma água que corre, me ocorre perguntar de qual tamanho seria minha ponte. Já tive a resposta: nem do tamanho da ponte Rio-Niterói, nem do tamanho da pinguela do Igarapé Canela Fina.

Haja coração!

3 comentários:

Anônimo disse...

Querido Altino,

Eu sei que o coração dos Acreanos param na hora da "novela do Acre". Mas o meu coração para é com o texto, ai que inveja, da Leila. Ô meu Deus!Conserva essa mulher aí lúcida e com saúde. Beijo. Estou com saudades de voces todos dessa terra. Da Ana, da Golby, da Katia, das minhas meninas lindas, Samuel, Dam, Madrinha, Toinho (eu beijei anteontem pra inveja das mortais hahaha)e outros ainda... Pia só, que eu já tenho quase uma comunidade aí. Bjo. Mara Moreira

Anônimo disse...

Mara, hoje amanheci com sorte: telefonei pra Leila convidando-a pra sair de casa pela manhã. Ela aceitou e eu perguntou se podia ir buscá-la. "Venha agora enquanto visto as calças". Quando cheguei na casa dela, do lado interno do portão ouvi a secretária dela dizer: "Esse é forte pra conseguir fazer a senhora sair de casa". Antes eu já havia telefonado pro Elson Martins, pedindo pra ele vir a pé pro meu escritório. Menos de meia hora depois estávamos os três na maior prosa. Chegou a hora de almoçar e telefonei perguntando onde o Toinho estava. "Estou caminhando no ramal, saindo da terra". E lá fomos os três resgatar o Toinho e indo almoçar no restaurante do aeroporto. Leila nos contou que não almoçava fora de casa há quatro anos. Claro, Mara, que várias vezes você foi citada durante nossa prosa. Leila é muito querida, realmente. Espero que em breve vocês possam brigar pra ver quem fala mais. Vão se dar bemn, acredite. Um beijo.

Anônimo disse...

Caríssima Mara, veja, eu só peço pro menino Deus me conservar com saúde. Lúcida, nunca! O dia que eu tiver na posse plena de minhas faculdades, não sai uma linha. Fiz de tudo para esconder de meu filho estes textos que o Altino chama crônicas. Medo de que ele me interditasse judicialmente só para ficar com meus poucos bens. Não teve jeito, mas, até agora, nenhum oficial de justiça apareceu por aqui. Até quando?
E assim, conforme o cacique Pena Branca me ensinou, vou tentando escrever textos enxutos. Porém quero te contar sobre a cervejada de graça que tomei lá no São Paulo. Era cerveja demais da conta! Mal eu abria uma lata e lá se vinha um marmanjo oferecendo mais duas... Cabreira, como aprendi convivendo com um mineiro, não deixei de ficar me perguntando quem bancava aquela orgia... Seis dias de cerveja de graça.
Pois bem, te conto. Dois dos moradores do bairro fizeram um assalto cinematográfico a um banco, levando o malote com o pagamento do funcionalismo público local. Fugiram para Manaus, mas deixaram a cerveja da comemoração paga. Só soube disso quando já havia retornado e só hoje conto que comi e bebi do produto dos meliantes do "trem pagador". Como vês, sempre é o povo que paga!
Mas a Coração era o meu tesouro, com ou sem cerveja.
Um abraço