domingo, 21 de janeiro de 2007

NÃO APRESSE O RIO

Leila Jalul

Ela saiu do mar da Paraíba num navio caindo aos pedaços, na ala destinada aos sem classe. Chegou de pernas inchadas pelas horas passadas no porão. E aportou num desses seringais, com um marido que de pouco lhe valia, duas filhas pequenas, uns contados vestidos, alpercatas e fotos das pessoas queridas.

Mulher de têmpera, dessas que não fraqueja diante de qualquer pé de vento. Tiradas rápidas e certeiras para qualquer situação. Fossem alegres ou tristes os fatos ou os envolvidos, sempre uma sabedoria na ponta da língua. Nem era sumo de bondade e paciência, nem poço de maldades. Tinha lá seus dias de avesso.

Pouco afeito aos trabalhos pesados de seringais, Seu Mulato, como era chamado o esposo, logo deu as costas para a família. Sobrou para a mulher trabalhar que nem demente e agüentar firme e forte os abusos dos seringalistas.

E foi então que a mão divina lhe amortiza o peso. Vai-se a primeira filha, empestiada pela varíola. A segunda, que ainda lhe era onerosa, foi pro reino de Juramidan, recebida com festas. E Dona Otília continuou vivinha. Tinha contas para acertar, tinha tarefas para dar acabamento, tinha defeitos para endireitar.

De seringal em seringal, até chegar a ver as luzes da capital. Com o ofício de costureira, bate à porta de um comerciante próspero, libanês do Líbano (turco era a puta que pariu!).

O velho ainda fazia as vezes de regatão, junto com seu sócio, Manoel Julião. Prato feito para os sócios, pois, além de tabaco, mixira, fósforo, vela, quinado, vermute, querosene e outras coisas de primeira necessidade, levavam confecções do atelier montado pela nova empregada.

Não sei não, mas tenho a impressão que essas medidas intermediárias hoje usadas (PP, MM e GG), foram descobertas e nomeadas por ela. Os gabirus eram diferentes do padrão americano. Eram baixos e gordos ou baixos e magros. Pernas normalmente cambotas, barbas ralas e sorrisos largos quando esqueciam as mazelas.

Agora sim, as festas seriam mais bonitas. Calças de gabardine cáqui, camisas de risca de giz, muita seiva de alfazema garrão, um bom conhaque, e todos felizes. Os seringais Barro Vermelho, Pontão e Calafate tinham os arigós mais bem vestidos e mais sedutores da paróquia.

O sírio-libanês bem que sabia que aquela dona ia ser sua. Já separado da primeira mulher, com quatro filhos, de 11, 12, 13 e 15 anos, tinha que dividir com alguém a criação daqueles entes. A costureira não era de todo feia, porém infinitamente menos bonita que a primeira, com quem casou quando esta tinha, apenas, 12 anos e, com 13, lhe causou o infortúnio de ter uma filha mulher. Essa não vai me dar trabalho!

Do status de costureira, subiu muitos degraus. Agora tinha dono e sobrenome. E com ele viveu, feliz, pelo que parecia. Ele, com a exigência de bem ser servido; ela com a preocupação de bem servir. Aprendeu rudimentos de árabe e manejava um velho ábaco com habilidade de chinês. Coisa bonita de ver! Somar e multiplicar eram suas operações favoritas. Segundo a filosofia, dividir e subtrair, disso a vida se encarrega, repetia sempre.

Somou e multiplicou. Ajudou a todos, inclusive os indignos. Já anciã e muito doente, apenas a enteada mais velha tinha tempo para, todos os dias, passar para asseá-la e alimenta-la, não sem antes pedir:

- Sua bênção, madrinha.

Pediu para ouvir o trecho de uma música ("... e lá no outro mundo, em vez de inferno, encontre glória, e que apague de minha memória o quanto sofri"), tomou um copo de leite e dormiu.

Percorreu todo o rio da sua vida com paciência de monja budista.

11 comentários:

Anônimo disse...

Altino, boa tarde.
Aprendi a procurar aqui no blog os textos de Leila, encantadora de almas.
E este é especialmente emocionante.
Fiquei aqui lendo essa saga de uma mulher sem nome e sem classe, que "nem era sumo de bondade e paciência, nem poço de maldades".
Toda essa história dari aum livro, dois talvez, recheados de amarguras e algumas alegrias aqui e ali, curtinhas como as pernas que ela vestiu.

Que coisa mais bela! Como escreve bem essa menina Leila!

Eu sempre agradeço aos deuses, o dia em que conheci seu blog e você, porque depois, tudo foi como no natal: colorido, cheio de suspense e presentes.
Obrigada.

beijos e boa semana para você e para Leila.

Anônimo disse...

Saramar, só porque você desejou, com certeza, terei uma boa semana.
Mas vou dizer uma coisa que pode não lhe agradar: o seu exagero. Em relação ao Blog, isso não. Mas, no me que me toca, foi patente.
Numa outra coisa, porém, está coberta de razão. Falar de Dona Otília, numa crônica, incompleta, imperfeita e, por que não dizer injusta, é engrossar o rol dos que pouco a compreenderam.
De certa feita, um repórter de uma dessas emissoras de televisão, entrevistando o José Maria Midlin, em tom de quem conhece tudo de livro, pergunta-lhe se já havia lido Ulisses, do Joyce. Ora, pensei eu: isso é pergunta que se faça a um homem que só não tem nas suas estantes a Lei das Doze Tábuas no original? (agora o exagero é meu!). Seu José Maria, calmamente responde: li. E, estiloso como é, acrescentou um comentário que posso traduzir como sendo: li e não gostei.
Para não deixar o entrevistador sem graça, continuou falando de livros, de autores novos, outros não tão novos e cita, como sua mais recente leitura O EVANGELHO DA INCERTEZA, de Wanda Fabian - Editora Nova Fronteira.
Imediatamente procurei o livro indicado. Fiquei doida, comprei mais seis e presenteei a bons amigos mineiros. Se você ainda não leu, leia.
Toda essa fofoca para dizer que, realmente, falar de Dona Otília caberia em pelo menos dois romances desse naipe. Cheio de sentimentos e conflitos, de longas dores e de alegrias curtas como as calças dos "baixinhos".
Quem sabe um dia, eu, que não sabia sequer a diferença entre um conto e uma crônica, pesquise e estruture um romance, não com a minha visão, mas com a caneta que saiba escrever em linhas tortas a história de uma pessoa de muita retidão, meio santa, meio bruxa, avançada para seu tempo, que protegeu, criou, patrocinou banquetes e imprimiu respeito a gente que, mesmo sem uma gota de seu sangue, ela não se impôs limite para amar.
Particularmente não gostava dela. Ela adotou como filhas minhas duas primeiras irmãs, talvez em substituição as suas próprias. Fui renegada e eleita a ser a primeira da segunda ninhada, com grandes
responsabilidades. Na sua sabedoria, acho que ela previu que eu daria conta do recado. E dei!
Tenha uma boa semana. Agora vc será leitora do Blog do Altino e eu estarei pendurada nas janelas abertas!
Meu carinho para sua família.

Anônimo disse...

Leila, querida, bela cronica. Estah na hora de reunir e editar. Se precisar de uma grafica, contacte-me, posso pesquisar precos... enfim, ganhei o dia lendo voce.
Anotei o titulo do livro, comprarei hoje a noite. Aproveito e indico um: O cacador de pipas. Terminei tem uns 10 dias. Maravilhoso!

Anônimo disse...

Leila, uma curiosidade: onde você guardava todas essas informações antes de começar a escrever essas crônicas? Isso é que é um baú cultural.
Acho que depois da minissérie a Glóra vai ter que fazer uma série completa com os personagens do repertório da Leila. E olha que nem se falou ainda de figuras e feitos de nossa geração, os modernos Galvez, Plácidos e Chicos.

Anônimo disse...

Amado Duda, sei que posso contar com vc caso venha a pensar em editar. Sei o quanto vc gosta de gráfica, de artes e de literatura. Agora é tempo de escrever. Um projeto de edição, pelo menos por enquanto, me assusta.
Mas, o que importa, é que posso contar com você. Me importa ter amigos como os que tenho, sempre dispostos a entender essa releitura que faço do passado, e de mim mesma.
Como dizia o plantador de letras Manoel de Barros, ao me virar de cabeça para baixo, estou me deslendo.
Um beijo no seu coração. Outros para meu "Padrinho" Lourival e minha amiga poetisa e declamadora Edir. Você acaso lembra de sua mãe declamando O Moleque Bacurau? Eu lembro e choro. Que cena rara! Que impostação perfeita!
De só lembrar, posso pedir que ela copie e vc me manda por e-mail essa poesia? É linda, como linda é sua mãe.
Me queira bem.

Anônimo disse...

Keylah Diniz, coração é que nem porta-luvas de carro. É pequeno mas cabe muitas coisas. Cabe um livro de recordações, uma agenda de encontros, dois ou três absorventes higiênicos (mulher sangra!) um chaveiro de portas que nem sempre devem ser abertas, umas balas de menta para se pintar alguma eventualidade, um CD de Piaf e etc.
Respondi?

Anônimo disse...

Tá bom, mana velha, continue transbordando os açudes de suas represas, que estamos todos na espreita dos jacarés, cascudos, tucanarés e até de algumas aves do lamaçal. Explode, coração!

dilza disse...

Boa Noite, Altino. Há muito procuro o poema "moleque bacurau", e agora com o acesso à internet (Como tenho 71 anos, pode entender porque só agora entrei neste mundo )encontrei aqui um comentário a respeito. Na década de 50, uma colega de escola o declamava lindamente, o que me faz relembrá-lo até hoje. Mas gostaria imensamente de ter o texto inteiro, por completo, sabe como posso consegui-lo?

ALTINO MACHADO disse...

Não sei, Didoca, infelizmente

molequebacurau disse...


Caso ainda interesse, segue o poema Moleque Bacurau:
Moleque Bacurau
De Silvio Moreaux
 
O moleque bacurau mora no morro,
Num barraco pequeno maltratado
Onde a chuva penetra pelas frestas
Do misérrimo teto esburacado.
 
Não tem cama prá dormir, dorme no chão.
Seu almoço!  Seu jantar! Côdeas de pão.
E por fim usa sempre umas calças com remendos de mil cores,
Umas calças que parecem fantasias de arlequim.
 
O moleque Bacurau costuma ir à praça grande
Para ver as brincadeiras dos meninos de família;
Lá estão eles, os filhos dos doutores
Brincando de esconder.
 
Fiau, fiau, moleque Bacurau que estás vendo de longe a criançada tão feliz!
Os meninos são brancos e vieram numas cestas bonitas de Paris.
O moleque Bacurau, pobre beiçola,
Veio dormindo no sangue dos escravos dos cafundós de Angola.
 
Baleio, bala, chocolate, olha a cocada!
 
Os meninos compram doces;
Bacurau não compra nada, pois não tem nem um tostão!
 
Chi! Caiu do tabuleir!
Vamos ver!
É rapadura!
Záz! Apanha, leva à boca ...
Ai meu Deus! Que gostosura
A noite vem vindo
Bacurau sobe a ladeira com saudade dos meninos que nem sabem que ele existe.
 
Ai aquela estrelinha luzindo prateada no alto do céu!
Bacurau tinha vontade de morar naquela estrelinha! ...
Como é que ela fica presa?
Quem a vai acender de noite e apagar de dia?
Coitadinho do moleque Bacurau que ignora por completo a astronomia!
 
Já faz oito dias que ele não vai à praça ver a criançada brincar.
Que moleza no corpo!
Que tosse cacete!
Que mãos tão geladas!
Que frio meu Deus!
 
Xi! Lá vai o corpo do moleque Bacurau, descendo a ladeira numa caixa toda preta! ...
O moleque Bacurau está importante! Estão tirando o chapéu prá ele!
Ai lindo menino branquinho, branquinho! ...
Nós vamos lá embaixo?
Nós vamos à praça com os outros meninos branquinhos brincar?
Me sinto tão leve!
Não estou mais doente!
Menino branquinho de onde tu vens?
Que coisa engraçada! Não sou mais pretinho! ...
Ué minha gente, sou branco também!
Já sei! Já compreendo!
Meu corpo morreu! Sou a alma do pobre menino que tanto sofreu!
Menino branquinho!
Já sei quem tu és!
Vieste buscar-me pro Reino da Luz.
Oh! Graças, mil graças, me leva contigo,
Me leva contigo, Menino Jesus.

Valéria disse...

Didoca, minha mãe foi discípula de Silvio Moreaux no Rio de Janeiro, na década de 50. Ele até a levou para declamar uma poesia dele no Teatro Municipal. Eu tenho o "Moleque Bacurau". Se ainda for de seu interesse, entre em contato comigo: Valéria Brasileiro. E-mail: lelabrasileiro@hotmail.com Um abraço!