domingo, 28 de janeiro de 2007

CHIQUINHA E CORALINA



Leila Jalul

(pra Glória Perez e Saramar Mendes)

Minha clientela, da outra esfera, não é fácil. Deixei-a de lado uns dias e já estão chegando as cobranças. Já apareceu aqui um sarará, vulgo Colorau.

- Falou do Camaleão, não é? Esqueceu de mim? - disse muito indignado.

- Acho ousadia você vir me tirar do sagrado direito de dormir. Não é assim, querido. O cavalo aqui tem outras obrigações, outros afazeres. Tenha paciência!

Fui meio indelicada com ele, eu sei, mas é outro que vou cozinhar em banho-maria. Ontem, sem ver nem pra quê, abri uma cristaleira mixuruca para achar um copo. Os de uso, de cristal pé duro, estavam todos na pia, e me deparo com uma xícara, sobrevivente única da espécie. Está velha, a faiança amarelou e está toda trincada em razão do tempo. Assim como eu. Não quebra, nem tem conserto. Tá virando papelim.

Foi esse o mote para lembrar da Dona Chiquinha Moreira, a benzedeira. Nunca esteve de todo esquecida. Cora Coralina e ela tinham semelhanças físicas e espirituais incríveis. Suas vozes pausadas e pastosas tinham sons de bondade, próprios das criaturas que nem só o tempo marcou.

Lá em Goiás Velho, na casinha da bica, tudo ficou mais claro. Tudo ficou mais acentuado. Cora e Chiquinha foram irmãs no tempo e ligadas pela ambição da simplicidade.

Cora de versos puros, em feitio de oração; Chiquinha de orações puras em feitio de poesia. Nos seus quintais as frutas do sobremesar. Em Goiás Velho, jaboticabeiras e pitangueiras, ali pertinho, era só descer a escada e apanhar. O da Chiquinha, era sortido de biribás, fruta do conde e gravioleiras. Docinhas, polpudas, daquelas que só têm graça comer se deixar a criatura se lambuzar.

Cora se projetou, encantou Drumond, conheceu outras terras e virou estrela, na melhor acepção da palavra. Minha Chiquinha, tinha cercas mais fechadas. Viveu sempre dedicada aos anjos e aos não tanto, minados pelos quebrantos, espinhelas caídas, fogos selvagens, landras, cobreiros e carnes trilhadas. Sem contar os mordidos de cobra e os pestilentos.

Galhos de vassourinha, folhas de pimenteira (se a doença fosse rebelde, usava as de malagueta), palmas de vim-de-cá, lavapés de crajirú, banhos de melão-caetano. Tudo do quintal, buscadas com cautela e oração para espantar o mal; fazer as jararacas morderem o próprio rabo e evitar o bote. Não importava o dia claro ou escurecido. Doente chegando na hora certa, lá se ia apanhar o verde apropriado, em voz alta rezando: "São Bento, água benta, Jesus Cristo no altar, o bicho que aqui tiver, afaste, eu quero passar".

De mim, reles assistente, às vezes necessitada, ela esperava o pensamento positivo, até o fechamento da cura. Me alegrava ver o menino que chegou de olho baixo, pescoço pendido, sair da reza esboçando um sorriso amarelinho, menos escangotado, deixando nas mãos enrugadas o ramo de vassourinha, murcho e quente, quase cozido. Quanto mais quente e murcho, mais valia teve a oração.

Rezas em adultos não me atraiam, por causa das pústulas, cheiros, caretas e gemidos altos. Era preciso esquentar compressas, procurar retalhos e linhas para costurar as carnes trilhadas. Pensamento positivo, tudo bem. Olhar, eram outros quinhentos. Ou virava de costas ou fechava os olhos e repetia mentalmente: "quê que eu curo? Cobreiro. Quê que eu corto? Landra". A oração da carne trilhada era bonitinha e tinha um ritual. Um pano era atado, e, ao ser costurado, ela dizia: "osso torcido, carne trilhada, agora eu coso, em nome de Deus e com a proteção de São Frutuoso".

Tinha gente que ia embora e não dizia nem um muito obrigada, que é de graça. Dinheiro, isso nunca! Rezadeira que cobra, a reza não faz efeito. E a xícara, onde entra a xícara? Bem, é que na pobreza francisquinha, casa coberta de cavaco, sem cama, copos de latas de Leite Condensado, havia, só para destoar, um completo dessa louça originária da dinastia Ming.

Cora nos legou a riqueza de seus poemas; Chiquinha, um rastro de luz. Juntas, a beleza do ser simples e a importância de um lenitivo.

Lígia Jezierski, irmã de Leila, tirou a foto da xícara.

6 comentários:

Saramar disse...

Obrigada, Leila, Altino.

Acredito sempre que há almas iluminadas ou anjos, como queiram, deixados por aí para encantar a vida. Cora e Chiquinha pertencem a essa colméia.
Sim, colméia porque, como abelhas, seus braços, seus olhos e palavras adoçam o mundo, curando-o de suas dores, com esses "versos puros, em feitio de oração" e essas "orações puras em feitio de poesia".
E Leila, doce, doce, nos vem adoçar todo dia, com a sabedoria da alma de abelhinha operária, plantando esses carinhos.

Obrigada, obrigada.

Duda Marques disse...

"Minha Chiquinha, tinha cercas mais fechadas." Leila, que beleza, lindo, faz gosto ler. Meu coracao fica mole, beijo minha mulher e filhos e fecho o meu domingo mais feliz podendo ler o que vc escreve.

Anônimo disse...

Uma pessoa que se diz leitor habitual do Blog do meu patrão, me manda um quase recado. Quer saber a razão de ter dedicado a crônica para a Glória Peres e para a Saramar.
Não me custa explicar, com a justificativa plausível, senão para todos, para mim claríssima.
A Glória, com seu trabalho, despertou no inconsciente coletivo maior gosto das pessoas pela sua terra. Colocou mais lenha na fogueira que o Jorge Viana já tinha acendido. Na minha cabeça, passam mais coisas. A análise que faço não passa apenas pela beleza do figurino, tampouco pela presença de um elenco do topo da emissora, ou que a Ritinha é acreana, ou que minha querida Carla Martins vai aparecer. Isso é pouco, muito pouco, perto do enredo, por trazer à superfície os usos e costumes da época, de ouro, para poucos, de inferno e sofrimento para muitos. Respeito, no entanto, os vários modos de enxergar,inclusive o meu.
Esta crônica, especificamente esta, me surgiu não somente por causa da xícara. Minhas crônicas estão prontas desde 1995, quando entrei em surto de saudades de pessoinhas que viveram por aqui, anônimas e jamais lembradas. Me chamou atenção um comentário, desses pouco inteligentes, em um jornal local, sobre a primeira aparição da jovem Brenda Hadad. Dizia, em resumo, ser a garota linda, mas, ser filha da Regina Casé, nada a ver. Mais ou menos isso.
A benzedeira Casé, foi talhada para o papel. As parteiras daqueles tempos, vindas do Ceará, tinham que fazer aquelas presepadas para vencer os obstáculos locais. Se a Glória não foi fiel ao extremo, isso é outro departamento. A minissérie não é história, é estória. Há permissão para o mirabolante.
O certo é não deixou de ser um bom gancho para falar de Dona Chiquinha Moreira. A xícara é uma desculpa, embora o fato seja verdadeiro.
Por fim, a Glória, antes de ser da Globo, era minha conhecida, filha do meu professor e da Dona Guta e irmão do Saulo. Ponto final.
Não fiz favor: dei o crédito.
A Saramar, quem é a Saramar? Não vou responder. No Blog tem uma indicação de blogs. Leia ABRINDO JANELAS.
O leitor verá. E amará.

Anônimo disse...

Querida Leila,
voce se meteu com a Cora, que de doce só tinha o das frutas do quintal e a poesia,e esta, quase sempre, dura de realidade. Pois que a pessoinha era brava até. Interna naquela cidade, muitas e muitas vezes, indo ou vindo da missa no Rosário, parava lá interessada mais nos doces que na poesia. A última vez que estive com ela fazia uma entrevista para um jornal de Goiania. Ela acabara de ganhar o prêmio Juca Pato.Da casa onde estava hospedada veio descendo as escadas. O fotógrafo, clic, clic, clic. Ela bradando e descendo .." moço, sempre fui muito bonita, não me faça feia agora" Em seguinda pra mim "cadê o gravador? Você acha que vai guardar tudo o que eu disser?" Engoli a bronca. Mas o editor fez uma das páginas mais bonitas da minha vida de repórter.
Depois, no segundo ano do FICA _ Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental- levamos pra Goiás a maravilhosa Helena Meireles. Uma das Tvs, entra ao vivo com uma entrevista dela na Casa de Cora, palco do show. O repórter começa..." a senhora sabia que a sua história tem muito em comum com a de Cora Coralina" - Coitado, referindo-se, somente, ao reconhecimento tardio das duas artistas..Mas Helena sapecou...""porquê? Ela também foi puta?" E foi um branco no coitado...E Helena se acabava de rir... Beijo.MaraMoreira

Anônimo disse...

Mara, deixa eu te contar, a Dona Chiquinha Moreira também não era tão mansinha assim como na crônica. Tinha um filho, o João que, por causa de um lábio leporino, bebia de cair nas poças de lama. Dava muito trabalho para a velhinha. Ela não alisava.
Não duvido que, diante dos flashs e gravadores, não devesse ela correr com um galho de goiabeira para atacar quem lhe perturbasse a paz. Na idade da Helena, da Cora e da Chiquinha tudo é perdoável, não é mesmo? Até se nos fizessem engolir um gravador!!!!

Um beijo grande. Quando chegas? Quero te conhecer.

Saramar disse...

Leila, só posso agradecer novamente!

Mara está certa. Cora era uma daquelas mulheres sertanejas fortes e bravas. A poesia enternurava seus dias.

beijos