quinta-feira, 23 de novembro de 2006

THE NEW YORK TIMES

Há muito negligenciados, os 'soldados da borracha' do Brasil buscam recompensa

Larry Rohter
em Rio Branco, Brasil

Em certa manhã de 1942, Alcidino dos Santos estava a caminho do mercado para comprar legumes para sua mãe quando foi parado por um oficial do exército, que lhe disse que estava sendo convocado como "soldado da borracha". Homens eram necessários na Amazônia, a 4.800 quilômetros de distância, para extrair borracha para o esforço de guerra aliado, lhe foi dito, e que era seu dever patriótico servir.


Alcidino dos Santos, 'soldado da borracha', diz que
foi levado à Amazônia contra a vontade


Alcidino, na época um auxiliar de pedreiro de 19 anos, protestou que sua mãe era uma viúva que dependia dele, mas sem sucesso. Ele receberia um salário de 50 centavos por dia, ele lembra de lhe terem dito, e receberia transporte gratuito para casa assim que o conflito terminasse, mas que tinha que partir naquele dia.

Mais de 60 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, Alcidino e centenas de outros brasileiros pobres que foram arrastados para o serviço como soldados da borracha ainda estão na Amazônia, aguardando que as promessas sejam cumpridas. Idosos e frágeis, eles estão lutando contra o tempo e a indiferença para obter o reconhecimento e a compensação que acreditam merecer.

"Nós fomos enganados e depois abandonados e esquecidos", disse Alcidino, que nunca mais viu sua mãe, em uma entrevista em sua casa simples de madeira aqui no Acre, um Estado no extremo oeste da Amazônia brasileira e que conta com a maior concentração de antigos soldados da borracha. "Nós fomos trazidos aqui contra nossa vontade", ele disse, "e jogados na selva, onde sofremos terrivelmente. Eu estou perto do fim da minha vida, mas meu país deveria me tratar bem."

O programa surgiu de um acordo entre os Estados Unidos e o Brasil. O ataque japonês a Pearl Harbor cortou os Estados Unidos de sua principal fonte de borracha, a Malásia, e o presidente Roosevelt procurou o ditador do Brasil, Getúlio Vargas, para preencher esta lacuna estratégica em troca de milhões de dólares em empréstimos, créditos e equipamento.

Segundo documentos do governo brasileiro, mais de 55 mil pessoas, quase todas do Nordeste assolado pela pobreza e pela seca, foram enviados para a Amazônia para extrair borracha para o esforço de guerra. Não há números oficiais de quantos sucumbiram a doenças ou ataques de animais, mas historiadores estimam que quase metade pereceu antes da rendição do Japão, em setembro de 1945.

"Alguns morreram de malária, febre amarela, beribéri e hepatite, mas outros foram mortos por cobras, arraias e até panteras", lembrou Lupércio Freire Maia, 86 anos. "Eles não tinham medicamentos apropriados para doenças ou picadas de cobra aqui nos campos, de forma que quando alguém morria, você enterrava do lado do barraco e continuava trabalhando."

O trabalho era exaustivo, perigoso e insalubre: os soldados da borracha levantavam pouco depois da meia-noite, atravessavam a selva no escuro para cortar sulcos nas seringueiras e voltavam mais tarde para recolher o látex que pingava em vasilhas.

Eles então defumavam o líquido branco em bolas sólidas pesando até 60 quilos, um processo que gera tanta fumaça que muitos ficaram cegos ou com problemas de visão.

Apesar de muitos soldados da borracha terem sido forçados a servir, alguns poucos se alistaram, na esperança de aventura e riqueza. José Araújo Braga, 82 anos, descreveu a si mesmo como "um garoto rebelde que queria ver o mundo" e assim foi facilmente atraído pela propaganda do governo, que falava da Amazônia como um Eldorado, onde o esforço "Borracha para a Vitória" poderia render ao trabalhador esforçado uma fortuna.

"Eu poderia ter ingressado no Exército e ido para a Europa", onde soldados brasileiros lutaram ao lado das forças americanas na Itália e atualmente são tratados como heróis, ele disse. "Mas eu escolhi a Amazônia porque, tolo, achei que podia ganhar muito dinheiro." Mas assim que os homens chegavam à Amazônia seus salários cessavam e eram aquartelados, sem a permissão de visitas.

"Eles nos tratavam como mulas em um mercado", disse Jacó Sá de Queiroz, 89 anos, um dono de propriedade rural que ainda vive na floresta perto daqui. "Nós fazíamos fila e os chefes dos seringais escolhiam os trabalhadores que queriam, dando preferência aos mais fortes, como se fôssemos animais de carga."

Quando a guerra e o interesse americano acabaram, as pessoas que lucravam com o arranjo não se mostraram dispostas a perder sua mão-de-obra gratuita. Os chefes dos seringais "temiam um êxodo caso a notícia se espalhasse, de forma que muitos soldados da borracha ainda ficaram na selva por anos, sem ter conhecimento", disse Marcos Vinícius Neves, um historiador que é diretor de uma fundação do governo para preservação histórica daqui.

Lupércio disse: "Foi só em 1946 que eu soube que a guerra tinha acabado. Nós não tínhamos rádio e estávamos completamente isolados do mundo exterior".

Mas aqueles que souberam imediatamente da notícia também encontraram problemas para partir e receber seus salários. Muitos foram informados que deviam dinheiro aos chefes dos seringais por alimentos, roupas ou equipamentos, e que teriam que continuar trabalhando até que suas dívidas fossem quitadas.

"Eu fiquei tão feliz no dia em que a guerra acabou, porque pensei, 'agora finalmente vou poder ir para casa'", lembrou Alcidino. "Mas quando fui falar com o chefe sobre ir embora, ele disse: 'Você está brincando?' e me mandou voltar ao trabalho."

Sem dinheiro e sem transporte, a maioria dos soldados da borracha se resignaram em permanecer na Amazônia. Eles se casaram, tiveram famílias e continuaram trabalhando nos seringais ou se tornaram donos de propriedades rurais, ignorados e anônimos.

"Como você acha que Brasília foi construída?" disse José Paulino da Costa, diretor do Sindicato dos Soldados da Borracha e Aposentados do Acre. "Os Estados Unidos pagaram ao Brasil, mas o dinheiro foi para outros projetos em vez dos soldados da borracha, o que foi uma injustiça terrível."

Mas em 1988 o Brasil aprovou uma nova Constituição com um artigo que pedia que os soldados da borracha recebessem uma pensão no valor do dobro do salário mínimo, ou R$ 700 atualmente. Mas muitos dos que serviram se viram impossibilitados de receber pois não podiam apresentar os documentos necessários. Seus contratos originais foram perdidos, destruídos pela chuva ou entregues aos chefes dos seringais e nunca devolvidos.

Aqueles que conseguiram comprovar recebem uma pensão que mal chega a um décimo do valor pago aos soldados brasileiros que lutaram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Em 2002, um membro do Congresso pelo Estado do Amazonas apresentou um projeto de lei para que os soldados da borracha, "que estão vivendo na miséria", recebessem o mesmo valor, mas o projeto continua parado em um comissão.

"Quando eu assisto as cerimônias do Dia da Independência na televisão, e vejo os soldados que lutaram na Europa desfilando em seus uniformes, eu sinto tristeza e desânimo", disse Lupércio. "Nós também fomos combatentes. Todos nos devem um grande favor, inclusive os americanos, porque aquela guerra não poderia ter sido vencida sem a borracha e sem nós, os soldados da borracha."

A tradução é de George El Khouri Andolfato, do UOL.

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