quarta-feira, 27 de setembro de 2006

A BOLÍVIA E OS BOLIVIANOS

De um leitor brasileiro que mora na França, mas trabalhou vários anos na Bolívia:

"Caro Altino


Conheço razoavelmente bem a forma como as coisas se passam na Bolívia e também como funciona a Justiça boliviana. Por conta disso, faço algumas observações pessoais que talvez possam servir como subsídio.

Em primeiro lugar, a suposição de que a Justiça na Bolívia possa funcionar de forma imparcial em nome e em respeito dos direitos dos cidadãos é uma enorme ficção. Justiça na Bolívia significa apenas uma batalha de posições e interesses onde vence aquele que tiver em melhor posição frente à lógica própria da máquina judicial boliviana, que é movida apenas por dois elementos: influências pessoais (de redes familiares) e corrupção de agentes do poder judiciário (juízes sobretudo). Vence uma batalha judicial na Bolívia quem dispõe de uma melhor rede de influências familiares ou quem tem mais dinheiro para subornar os juízes. É apenas isso mesmo! Princípios abstratos de justiça e direito não são mais que... uma abstração.

Por isso não é raro que a população faça justiça com as próprias mãos. Tem ocorrido isso com relativa frequência no caso de prefeitos corruptos, e, salvo se a nota de que a família da médica agredida queira efetivamente sugerir que a população local "deva" fazer justiça com as próprias mãos, creio que é bastante razoável que a população local realmente o faça, pois "justiça" não é exatamente algo que o judiciário boliviano pratique.

Em termos institucionais e processuais, se há algo que possa ser feito é tentar mobilizar toda a influência que seja possível em Santa Cruz, para fazer pressão sobre o Judiciário local. Isso não quer dizer necessariamente imprensa, porque na Bolívia não existe escândalo a longo prazo e nada se traduz necessariamente como iniciativa institucional ou perdura num curso institucionalizado de procedimentos objetivos. Quer dizer, muito pior que no Brasil, um escândalo hoje não produz absolutamente nada amanhã. Pelo contrário, esse médico vai acabar capitalizando uma imagem favorável de garanhão, principalmente numa selva distante de quaisquer modos civilizados como é aquilo por lá.

E mesmo mobilizando influência, os resultados são absolutamente imprevisíveis, porque as oligarquias locais sempre ajeitam suas eventuais discrepâncias em acordos fechados por baixo dos panos, "en petit comité". E mais cedo ou mais tarde, é isso que vai acontecer no caso dessa médica, porque é óbvio que o delinquente vai mobilizar todos os amigos e familiares que puder. Simplesmente é essa a lógica das coisas na Bolívia. Portanto, não acredite jamais em boliviano algum, porque se há uma unanimidade com relação aos estrangeiros que conhecem a Bolívia, é a do reconhecimento da prática absolutamente generalizada da mentira, para tudo e para todas as situações (isso foi motivo até de um artigo acadêmico).

E também desconfie de toda forma de "solidariedade" que algum boliviano possa prestar à vítima ou à sua família, porque por trás dela pode haver apenas um movimento diversionista. Sinto dizer, mas é assim que as coisas acontecem naquele país. Se o crime tivesse sido cometido por um campesino, não tenha dúvida de que ele seria exemplarmente punido, mas em se tratando de um profissional com inserção nas castas privilegiadas do país, aí a única logica que vigora é a da preservação do privilégio de casta. Essa simplesmente é a lógia social estrutural daquele país. E isso é uma questão de lógica, não é uma questão de desencanto moral.

Portanto, o máximo de "justiça" que se possa esperar nesse caso é produzir algum mal-estar momentâneo nesse médico agressor. Não mais que isso. Eu realmente não conheço ninguém suficientemente influente em Santa Cruz que possa fazer o caso ter algum desdobramento com um mínimo de "justiça". O provável é que, uma vez dentro dos intestinos do judiciário boliviano, o caso se arraste por alguns anos e depois seja "estrategicamente" esquecido.

Por isso, não deposite nenhuma esperança em qualquer esforço institucional que seja, mesmo que ele incida sobre (e faça uso) o quadro de disputa política mais ampla entre as autoridades de La Paz e seus oponentes da "meia-lua" - os departamentos do oriente boliviano. E saiba mais: o Departamento de Pando, que faz fronteira com o Acre, é o maior quartel-general da corrupção na América Latina, um verdadeiro bang-bang.

Falando sério, eu simplesmente sugeriria que se contratasse um cabra aí pelo Acre para fazer o serviço com relação a esse médico. É essa a linguagem que os bolivianos melhor entendem, e a única via onde não vigora a certeza da impunidade no mundo oligárquico daquele país.


Saudações".

O jornal El Mundo, de Santa Cruz, informa que o médico acusado de violação da médica segue em seu cargo. Leia.

5 comentários:

Anônimo disse...

Altino,
A declaração de seu leitor é bem detalhada e parece realmente ser de alguém que conhece bem a realidade da Bolívia. Isto me faz pensar se as duas amigas da médica que estavam com ela não são de fato cumprices do médico agressor. Porém, nunca deveremos achar que as coisas são assim mesmo e não lutar para que este médico seja de fato punido pela justica formal (não vou usar o termo justiça dos homens) – seja na Bolivia ou em qualquer outro lugar. A analise do leitor sobre o contexto na Bolivia e muito bem vinda, mas sua sugestão no paragrafo final deve ser sempre evitada e repugnada pela familia da médica ou por outros. Precisamos continuar acreditando que mudanças são possiveis sim...

Anônimo disse...

Alguém (não deu pra identificar o nome) deixou o seguinte comentário:

- Eu conheço um cabra lá de Cabrobó.

Anônimo disse...

Eu também morei algum tempo na Bolívia e sei que as coisas funcionam exatamente como descritas pelo autor do texto. A corrupção na Bolívia começa desde aqui na Fronteira, e é barata, testem se a lei lá funciona e tentem dar um jeitinho de comprar gasolina oferecendo 30 centavos a mais por litro... é fácil. Em Santa Cruz, entre os estudantes brasileiros corre uma anedota sobre o que fazer para se lvra da polícia boliviana, onde se lança mão "del articulo veinte de la consitución de la republica de Bolívia", na verdade dizem que a constituição boliviana só tem 19 artigos, o artigo vinte seriam 20 bolivianos (moeda local) para o policial e qualquer coisa estaria resolvida. Tenho casos e casos de pequenas encrencas resolvidas dessa forma, de passaportes sequestrados pela polícia e entregues com pagamento de resgate, entre outros. Não se deve mesmo esperar nenhum tipo de Justiça formal lá, a menos que esse médico fosse Colla, o que em Santa Cruz é condição inferior, se ele for Camba, estará protegido, e muito...

Anônimo disse...

Realmente es triste leer los comentarios de personas que vivieron en este pais, pero tambien reconosco que es asi.
Pero tengo mucha fé en Dios y se que este hecho de violacion con la medica brazileira no va a quedar impune, sé que se va a llegar hasta el fin del caso.
Solo le pido a la familia de la medica que no pierdan la fé y sobretodo que no se cansen, porque el proceso es largo y la lucha es dura, pero hay que seguir hasta el final.
Que Dios bendiga a esta familia y sobretodo a IDM

Anônimo disse...

Salut à tous !!

Dans ce cas là, de la jeune brésilenne violée, on peut voir que l’injustice c'est marquante et choquante. Il faut demander aux autorités que la justice se fasse, immédiatement. S’il vous plaît, c’est pas question de faire la justice violemment, avec ses mains, il faut croire – encore – à la justice des hommes, même dans des dites « République des Bananes ».

[pardon pour écrire en français, je comprends le portugais parlé, main mon écriture…]