► Denise Schaan
Como arqueóloga dedicada ao estudo da história pré-colonial da Amazônia há cerca de dez anos, preocupo-me seriamente com a proteção e preservação do patrimônio arqueológico, que vem sendo sistematicamente dilapidado, seja por pessoas inescrupulosas e que agem de má-fé, seja pela ignorância (no sentido de desconhecimento) muitas vezes dos próprios órgãos governamentais, que constroem rodovias e toda sorte de obras por cima de sítios arqueológicos. Por isso devo dizer que o esforço que o cientista Prof. Dr. Alceu Ranzi vêm demonstrando já há alguns anos no sentido de tornar conhecidos e proteger os geoglifos do Acre merece de todos nós apoio e reconhecimento.
Lamento que algumas pessoas tenham interpretado mal suas atitudes. Eu ainda estava terminando meu doutorado nos Estados Unidos quando fiquei sabendo que o Prof. Alceu tinha estado no Museu Goeldi, em Belém, à procura de arqueólogos que quisessem estudar os geoglifos do Acre, sem sucesso. Quando tomei conhecimento do material que ele havia deixado, só pelas fotos pude perceber que tratava-se de uma das descobertas mais fantásticas da arqueologia amazônica – ou sul-americana – dos últimos tempos.
Durante muitas décadas, etnólogos e arqueólogos trabalhando na Amazônia, polemizaram sobre as formas de organização social e nível de complexidade sociocultural alcançados pelas sociedades indígenas que foram aqui encontradas pelos europeus (e rapidamente dizimadas) a partir do século XVI. Por muito tempo perdurou a tese de que sociedades complexas e populosas teriam-se desenvolvido apenas na várzea amazônica, não em áreas de terra firme.
Debate necessário
O estudo dos geoglifos do Acre e o entendimento da razão pela qual foram construídos e como aquela população se organizava em termos sociais, econômicos e culturais têm o potencial de provocar uma verdadeira quebra de paradigma dentro da disciplina arqueológica e mudar para sempre o curso dos estudos sobre as sociedades pré-coloniais amazônicas. Apesar de não ser arqueólogo, o Prof. Ranzi sabia que estava lidando com algo muito especial. Mais do que isso, via a possibilidade de aquele achado tornar-se também uma forma de valorizar a cultura local e com isso atrair turismo e renda para o Estado.
Apesar de existirem arqueólogos e arqueologia no Brasil, de forma mais estabelecida desde a década de 1960, por muitos anos os arqueólogos negaram a necessidade de revelar e divulgar para a sociedade suas descobertas. Felizmente este quadro está mudando. Quando o Iphan concede autorização para pesquisa, solicita que o projeto de pesquisa possua um item chamado “divulgação dos resultados”, o que significa que o arqueólogo deve se preocupar necessariamente com isso. No entanto, o cumprimento dessa exigência não é cobrado depois, o que considero incorreto.
A arqueologia é a única ciência que sistematicamente destrói seu objeto de estudo. Por isso, o arqueólogo tem a obrigação moral, ética e profissional de publicar e publicizar os resultados da pesquisa, para demonstrar que a destruição do patrimônio cultural trouxe algum benefício em termos do conhecimento produzido. É lamentável que um dos geoglifos tenha sido estudado em 1994 e que os resultados desse trabalho nunca tenham chegado ao público e à comunidade acadêmica. Espero que, decorridos 12 anos, ainda o sejam, pois a produção do conhecimento científico depende do debate. Quanto mais pesquisadores estiverem trabalhando sobre uma mesma área ou temática melhor!
Divulgar mais
Hoje em dia os pacientes de AIDs têm sua expectativa de vida aumentada graças a medicamentos que foram produzidos por diversos cientistas diferentes. Se houvesse apenas um cientista trabalhando nisso, teríamos uma taxa de mortalidade por AIDs ainda mais assustadora. Talvez se os geoglifos tivessem sido divulgados antes na mídia, muitas estradas não teriam sido construídas, outras tantas obras não os teriam irremediavelmente destruído. Eu sugiro que deveríamos gastar nossas energias, daqui em diante, para divulgar ainda mais entre a população os sítios do tipo geoglifo e pressionar vereadores e deputados para protegê-los com leis e portarias, que podem e devem ser criadas, pois a lei federal é muito ampla.
Quando fui ao Acre fazer o trabalho de levantamento para a Eletronorte, tive o cuidado de entrar em contato com a Universidade Federal do Acre e com os profissionais que estavam envolvidos com o assunto. Foi quando fiquei sabendo que havia em andamento um projeto da Universidade de Helsinque e que precisavam de um arqueólogo brasileiro para se integrar à equipe, o que aceitei de imediato. Além da possibilidade de estudar os geoglifos, essa será uma boa oportunidade para começarmos a formar profissionais de arqueologia no Estado, levando estudantes para campo, dando cursos e palestras. A intenção não é a de “roubar” o patrimônio arqueológico do Acre, pelo contrário, a idéia é conhecer o patrimônio (o que só é possível através da pesquisa) para poder preservá-lo.
Não se pode preservar ou proteger aquilo que não se conhece. Pretendemos (e aqui tomo a liberdade de falar pelos pesquisadores finlandeses e pelo próprio prof. Alceu Ranzi) colaborar, na medida de nossas possibilidades, para criar as condições para que jovens estudantes interessem-se por arqueologia, para que a população se sensibilize para a importância de seu patrimônio arqueológico, para que se crie em um futro próximo na UFAC um curso superior em arqueologia e que os geoglifos transformem-se em atração turística, trazendo investimentos, emprego e renda para o Estado.
Acredito que isso só trará benefícios a toda a sociedade. De minha parte, como cientista, meu interesse é na produção do conhecimento científico. Mas não consigo ver como isso possa ser descolado da realidade social. Por isso meu desejo de que o resultado de nosso trabalho, de alguma forma, possa contribuir para melhorar a qualidade de vida da população, produzindo conhecimento que sirva para a elevação de sua auto-estima, formação de sua memória social e fortalecimento dos laços que a une ao seu território, para que seja possível um exercício pleno de sua cidadania.
► Convidei a arqueóloga Denise Schaan, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, a manifestar seu ponto de vista a respeito da polêmica em torno dos geoglifos. Ela estava disposta a não fazê-lo, mas achou positiva a resposta de Alceu Ranzi e mudou de idéia. "Caso você tenha chance de divulgar, preparei uma "resposta". Se você acha que devo modificar algo ou que está muito extenso, sinta-se à vontade para se manifestar. Novamente agradeço. Um abraço e parabéns pelo seu blog", respondeu a arqueóloga, cujo texto está reproduzido integralmente. Os leitores e eu agradecemos a valiosa contribuição, Denise. Clique aqui para saber mais a respeito do trabalho dela.
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