domingo, 21 de maio de 2006

JORNALISMO FURRECA



Vamos a mais um exemplo da influência do delirium tremens na "qualidade" do jornalismo praticado no Acre, tomando como referência as duas notas publicadas na abertura da coluna Poronga, do jornal Página 20:

"Arqueopirataria - Denúncia grave. Estão pirateando os sítios arqueológicos de Rio Branco e levando para o exterior. A arqueopirataria conta com a participação de um paleontólogo acreano que está enveredando indevidamente pela arqueologia. O cantor Álamo Kário já alertou: "Cuidado com os gringos".

Via Belém - Segundo informações apuradas pela coluna, o paleontólogo estaria se associando com uma arqueóloga de Belém do Pará para explorar os sítios arqueológicos do Acre. A confusão será grande e o Estado poderá sair perdendo caso não seja feito nada para conter as ações ilícitas".

Pois bem, o que o jornal faz não é denúncia - a atribuição para denunciar é do Ministério Público. Trata-se na verdade de uma acusação grave para tentar atingir a reputação de um paleontólogo e de uma arqueóloga reconhecidos internacionalmente pela comunidade científica.

O "paleontólogo acreano que está enveredando indevidamente pela arqueologia", ao qual o jornal se refere, é Alceu Ranzi, doutor em Wildlife Ecology pela Universidade da Flórida, professor associado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina e no Programa de Mestrado em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais da Universidade Federal do Acre. É autor dos livros "Paleoecologia da Amazônia" e "Geoglifos da Amazônia", que trata de um tema acreano, possivelmente similar aos mundialmente famosos geoglifos de Nasca-Peru.

Na semana passada, de modo entusiasmado, o prefeito de Rio Branco, Raimundo Angelim (PT), revelou neste blog que Ranzi aceitou o desafio de coordenar os esforços de sua equipe para elaborar o projeto de construção de um memorial ou museu de paleontologia do Acre. A reação do "fogo amigo" foi imediata e rasteira.

A "arqueóloga de Belém do Pará", cujo nome o jornal omite, é a gaúcha Denise Schaan, do Museu Paraense Emílio Goeldi, e também professora do curso de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. Ela é doutora em Antropologia Social na Universidade de Pittsburgh (EUA), onde defendeu a tese "O Cacicado dos Camutins: Emergência e Desenvolvimento de Complexidade Social na Ilha de Marajó". Integra a Sociedade de Arqueologia Brasileira e a Sociedade de Arqueologia Americana.




Novas descobertas
O jornal erra feio quando afirma que Alceu Ranzi e Denise Schaan "estariam" se associando para explorar os sítios arqueológicos do Acre. Eles estão associados desde fevereiro do ano passado, mediante um processo público e transparente, quando Alceu Ranzi deu um alerta e a Eletronorte solicitou ao Museu Paraense Emílio Goeldi a elaboração de um diagnóstico sobre a situação do patrimônio arqueológico na área de implantação de duas linhas de transmissão elétrica no Acre.

Uma das linhas, de Rio Branco a Epitaciolândia, com 210 Km de extensão, tem seu traçado planejado ao longo da BR-317, numa das áreas de maior incidência dos sítios arqueológicos que vêm sendo chamados de geoglifos. Entre março e maio de 2005, uma equipe coordenada por Denise Schaan, com a participação de Alceu Ranzi, realizou levantamento bibliográfico e visitas de inspeção aos locais afetados, produzindo um relatório que avalia o impacto do empreendimento sobre os sítios arqueológicos e propõe medidas que devem ser tomadas visando à proteção de um importante legado das sociedades pré-colombianas.

O relatório foi entregue ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e à Eletronorte, além de compor o Relatório de Controle Ambiental solicitado pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac).

Os geoglifos são definidos por Alceu Ranzi como um vestígio arqueológico representado por desenhos geométricos ou naturalistas, de grandes dimensões, elaborados sobre o solo. Um geoglifo só pode ser totalmente observado se visto do alto, em especial, através de sobrevôo.

Já se conhece a existência de pelo menos 70 geoglifos. Os primeiros foram descobertos, entre 1977 e 1990, graças ao trabalho do professor Ondemar Ferreira Dias Jr. e seus colegas do Instituto de Arqueologia Brasileira. Foram descobertos, mas ficaram sem merecer a devida atenção. Foi somente a percepção aérea de suas dimensões e a descoberta de que havia dezenas deles espalhados na parte oriental do Acre que lhes deu o destaque merecido, graças ao empenho do paleontólogo Alceu Ranzi.

Uma equipe de topografia da Eletronorte chegou a descobrir mais dois geoglifos até então inéditos, desviando o traçado da linha de energia para não prejudicar os sítios. Eles localizam-se próximo à rodovia, tendo um deles o formato circular, com 260 metros de diâmetro. Foram identificados seis geoglifos em áreas muito próximas à linha de transmissão Rio Branco/Epiaciolândia, dois deles já parcialmente destruídos.


Atração mundial
Alguns têm uma estrutura geométrica. São sítios compostos de estruturas de terra (valetas e trincheiras) de formatos diversos (círculo, elipse, quadrado, polígono). A maioria das valetas possui um vão de cerca de 11 metros, com profundidades que variam de 1 a 2 metros. Os diâmetros dessas estruturas variam entre 90 e 330 metros.


- Os sítios arqueológicos identificados na área são extremamente importantes para a compreensão da ocupação pretérita da Amazônia, tendo em vista o fato de locarizarem-se em área de interflúvio e terra firme, áreas que os pesquisadores consideravam inadequadas para o estabelecimento de sociedades densas, sedentárias e organizadas em nível regional, como parece ser o caso da ocupação humana em questão - afirma Denise Schaan.

Alceu Ranzi e Denise Schaan compartilham da idéia de que uma adequada caracterização daquelas sociedades pode vir a contribuir enormemente para a nossa compreensão do processo de colonização antiga da Amazônia, entender melhor as relações entre sociedades humanas e meio-ambiente e nos ajudar a melhor avaliar os impactos que a crescente exploração dos recursos biológicos da Amazônia pode ocasionar a médio e longo prazos.

As pesquisas que estão sendo conduzidas por Alceu Ranzi e Denise Schaan possibilitarão conhecermos a origem e função dos geoglifos para as sociedades do passado. Ambos acreditam que os geoglifos atrairão brevemente visitantes de todo o mundo, colocando definitivamente o Estado do Acre dentro de rotas turísticas internacionais.

De sua parte, o jornal Página 20 precisa avançar, sustentar a apuração feita para acusar Alceu Ranzi e Denise Shcaan do crime de "arqueopirataria", e exigir a entrada do Ministério Público Federal no caso.

É leviandade desmedida referir-se ao Alceu como "paleontólogo acreano que está enveredando indevidamente pela arqueologia" ou advertir os leitores com o xenofóbico "cuidado com os gringos", por causa dos sobrenomes Ranzi e Schaan.

Para tentar acompanhar o delirium tremens do redator da coluna Poronga, fico a imaginar o musculoso Alceu Ranzi e a franzina Denise Schaan surrupiando os geoglifos do Acre em sacos, canoas ou aviões.

Um pedido público de desculpas aos dois cientistas e aos leitores é o mínimo que se espera de quem opta por fazer jornalismo furreca.

Dê um clique sobre as fotos do Sérgio Valle para visualizar melhor os geoglifos.

8 comentários:

Anônimo disse...

Altino, bom dia.
Eu sou contra a censura, porém esse tipo de jornalismo irresponsável deveria ser banido. Se não for fruto da incompetência será da politicagem, o que é muito comum neste pobre país.
Agora, acusações assim tão graves merecem um processo judicial por calúnia e difamação, não acha?


Beijos e uma excelente semana para você.

Anônimo disse...

Caro Altino / a descoberta desses geoglifos são anteriores aos anos setenta. anteriormente se fala em "trincheiras" da época da "Revolução Acreana". A denominação atual - ou a caracterização como geoglifos - isso sim pode ser visto como algo recente. Não tenho certeza, mas é algo que deve ter surgido com os estudos do professor Ranzi.

Anônimo disse...

Mário, é verdade que a descoberta desses geoglifos são anteriores aos anos 70 e que muitos pensavam que fossem trincheiras da época da Revolução. Você sabe por que a América se chama América e não Colômbia ou Colombina? Cristóvão Colombo chegou por estas bandas achando que estava na Índias e os povos do lugar foram chamados de índios. Muitos anos depois apareceu Américo Vespúcio e reconheceu que estava em outro mundo. E o nome dele foi emprestado ao continente. Os geoglifos foram encontrados, mas apenas o Alceu Ranzi, com apoio de Raimundo Angelim (ex-secretário do Gabinete Civil do Acre) e Aníbal Diniz (ex-secretário de Comunicação) foi capaz de ter percepção suficiente para dar aos mesmos a merecida visibilidade. Foi ele também quem caracterizou como geoglifos. Um abraço.

Anônimo disse...

Altino, nem pensar em questionar a competência e o conhecimento do Professor Alceu. Se precisa ser estudado com profundidade e pesquisado o assunto qual o problema de outros estudiosos em conjunto com o Professor fazerem isso!!!
Professor Alceu é ilibado e é maravilhoso como pessoa e estudioso.
Pré-julgamento injusto!
Um abraço e estou na fila em defesa do Alceu Ranzi.

Anônimo disse...

Nada contra
Nada contra o Alceu, mas tenho uma preocupação quanto a exploração dos sítios arqueológicos como pontos turísticos. Precisamos de pesquisas bem fundamentadas, e objetivos bem definidos, pois corremos o risco de destruímos vestígios importantes da nossa história.
Tenho uma sugestão! Vamos pedir para o Alceu abrir os sítios de paleontologia para visitação públicas

Anônimo disse...

Será que a única utilidade destes geoglifos são servirem de atração para turistas visitarem o Acre? E onde fica toda a informação que está contida neles e que pode contar a história que verdadeiramente ainda não conhecemos, a história dos antepassados de nossos índios. Devemos então simplificar a compreensão destes sítios aos seus aspectos sensacionais e nos entregarmos a interpretações fáceis do tipo "eram os deuses astronautas?" Me parece que é isso que se está conseguindo ultimamente nesta questão e como estudante fico triste pelo patrimônio pré-histórico do Acre. Principalmente porque sei que muitos pesquisadores sérios lutam com dificuldades para realizarem suas pesquisas. É preciso olhar com mais profundidade essa questão antes de chegarmos a conclusões que podem no futuro significar a perda completa de nosso passado.

Anônimo disse...

Caro Altino

No seu texto, havia uma afirmação segundo a qual "Os primeiros (geoglifos) foram descobertos, entre 1977 e 1990...". A minha mensagem limitou-se apenas a sugerir a correção, dado que se ouve falar nessas marcas há muito mais tempo. Nada que possa ocorrer posteriormente modifica esse fato. Em nenhum momento fiz qualquer referência a participação dos professores Alceu e Angelim nas medidas de incentivo e apoio e ou desenvolvimento das pesquisas. Portanto, agradeceria que os seus comentários também se limitassem ao que eu falei para evitar mal entendidos. Recebi, hoje, uma mensagem que bem indica que isso pode acontecer.

grato Mário

PS - sobre a pretendida analogia a que você se refere, já li algumas coisas sobre a História da América e da Navegação e tenho particular interesse pela História da Tecnologia que tem na fase dos descobrimentos um momento muito significativo.

Anônimo disse...

Bom dia a tod@s,

É bem interessante ler o Blog do Altino e Página 20, pois faz relembrar o ano que eu vivia no Acre. Naquele tempo conheci todas as maravilhas que o estado têm, especialmente os valores diferentes representados pela população indígena.

Gostaria de comentar que o objetivo do projeto da Universidade de Helsinque é reconstruir a historia da Amazônia somando as outras iniciativas de pesquisa na Amazônia brasileira, o treinamento dos estudantes e professores, fornecer as informações sobre os valores culturais dos sítios arqueológicos para os moradores na área, e fortalecer políticas públicas de preservação.

Fiquei surpreendida pelas acusações contra os arqueólogos estrangeiros. Pelo menos aqui na Finlândia não se encontra o material arqueológico ilegalmente removido de sítios no Acre. Nem o material coletado legalmente, pois ele deveria ficar no Acre para divulgar o patrimônio histórico e humanidade da Amazônia. Mas isso ainda carece enormemente de recursos humanos e financeiros.

Falta esclarecer que ainda não foi feito nenhum tipo de escavação ou coleta, nem durante a primeira visita da equipe no Acre em 2000. Pois a missão era de tomar conhecimento dos sítios tendo em vista uma possível futura colaboração científica entre nossa universidade e a Universidade Federal do Acre em um projeto arqueológico. Uma amostra pequeníssima de carvão, que foi analizado no laboratório da Universidade de Helsinque, fez parte do projeto das ciências naturais entre a Universidade de Turku e UFAC.

Logo depois a primeira visita do Dr. Pärssinen no Acre ele observou que os sítios arqueológicos são parcialmente destruídos por causa da remoção de terra e construção de estradas. Por isso, ele informou Departamento de Patrimônio Cultural e UFAC que os sítios eram interessantes e que ele dispunha a tentar obter financiamento com o intuito de realizar uma pesquisa científica em cooperação entre os dois países - Brasil e Finlândia.

Tudo valeu a pena, se a alma não é pequena.

Grata,

Pirjo Kristiina Virtanen