quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

ALÉM-MAR

Por Margarida Caetano (*)

Impressionante: diria que o conflito é quase uma xerox, do outro lado do Oceano! Numa dessas manhãs, chegando no estacionamento do jornal, como em tantas outras manhãs, minha visão periférica de imediato registrou alguma anomalia. Tinha qualquer coisa de errado naquela manhã, sim. Completei a curva, terminei de estacionar o carro e o mesmo sentimento de estranheza, como se algo estivesse fora do lugar. Pensei que fosse a caneta fora do bolso, ou os cigarros esquecidos no carro, quem sabe as moedas para a máquina do café que sempre trago no bolso das calças que estivessem faltando...mas não!

Tranquei a porta, dei meia volta e fiquei de frente para o edifício. Subitamente, caiu diante dos meus olhos o que estava de tão profundamente errado naquela manhã: as grandes acácias que cresciam no gramado em torno do edifício, as mesmas que ladeavam a escadaria e roçavam as vidraças da janela, dia e noite, noite e dia, num assomo de verde tantas vezes vital no corre-corre da rotina de cortar o fôlego da redacção, não estavam mais lá. Visíveis ainda seus galhos desmembrados pelo chão, um amontoado mal arrebanhado, aos pés da entrada, um tapete fúnebre para brindar o começo do dia.


Entrei feito louca no gabinete da administração, perguntando se alguém estava se dando conta do que estava acontecendo lá fora, falando que esse condomínio empresarial de luxo tinha enlouquecido com o frio de novembro, clamando que alguém precisava ir segurar de imediato o braço das moto-serras. Inexplicavelmente, a calma permanece no mesmo lugar, ergue levemente o sobrolho na minha direção e responde:

- Tranquilo! Estamos ao corrente. Aliás, nós que demos a ordem. Lamentamos o incômodo do barulho, mas vão terminar rapidinho. Por favor, peça só um pouco mais de paciência para a equipe: estão terminando lá fora.

Porquê?? Porquê, isso? Porquê "a ordem"? O mesmo sobrolho franze mais, mais enjoado agora, mais irritado também, quem sabe se sentindo desafiado com o elementar da pergunta:

- Porque as árvores são uma praga, entende?! Aquilo desata a crescer e se não se toma uma atitude qualquer dia os prejuízos são enormes.

Que prejuízos?, pergunto, lá fora é um jardim! Jardins têm árvores, certo?!

- Não, lá fora é um espaço para estacionamento! Pode ter jardim, mas não precisa ter árvores. Não podemos permitir o tecto dos carros todo arranhado com esse inferno de ramos que não param de crescer.


Olho lá para fora. Vejo os troncos esquartejados, a folhagem espalhada por todos os cantos, as folhas empurradas pelo vento frio de Lisboa, sobre o gramado, depois o asfalto do arruamento, até passar pela vedação do condomínio e se entupir contra as sarjetas, no começo da estrada. E em seguida olho o parque-automóvel alinhado lá fora, BMW's, Audi's, Mercedes... linda e lustrosa fila se acotovelando nas boxes. E então eu entendo porque é que esse jornal luta com espaço de páginas de reformulação em reformulação, mas a rubrica automóvel nunca cai do alinhamento, enquanto a proposta de criação de uma secção ambiental rola de reunião em reunião faz meses, sem nunca ter lugar!!!

(*) O comentário foi deixado na nota "Tão Acre", abaixo, pela jornalista Margarida Caetano, editora do Destak, jornal distribuído gratuitamente em Lisboa e Porto, as duas maiores cidades portuguesas. Destak foi o diário com maior circulação total no segundo trimestre do ano passado, com uma média de 127 266 jornais distribuidos por dia, segundo a Associação Portuguesa de Controlo de Tiragens. O jornal possui um blog que pode ser acessado aqui. Margarida é dona do blog Da Pororoca ao Tejo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Desgraçadamente, natureza significa atraso pra muita gente. Destrói-se antes de pensar o q havia ali, porque... É mais fácil! Belo relato da colega portuguesa.