quarta-feira, 16 de novembro de 2005

SEM DELETAR O PASSADO

Prezado Altino,

Tardei, mas volto à carga com esse assuntinho incômodo e exótico aos olhares contemporâneos. O tal I Encontro Internacional sobre Índios Isolados na Amazônia e Chaco (*) foi, a um só tempo, luxo e lixo ( e "eu sou o lixo da aldeia..."). Especialistas seríssimos, europeus e latino-americanos, debateram e se emocionaram percebendo-se entrelaçados pela grave e grande causa destes povos especiais.

Muito sentida, no entanto, a ausência de companheiros nacionais de longa trajetória, inclusive o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles, que atua aí no Acre. O jornalista Lúcio Flávio Pinto não conseguiu vir, enredado por seus tantos processos e pelo lançamento de seu novo livro, embora se tenha argumentado a intencionalidade(oficial) de "internacionalizar" mesmo a questão.

Tanto que o documento final, a tal "Carta de Belém", foi originalmente redigida em espanhol, respeitando-se a proporcionalidade numérica dos presentes de língua hispânica, motivo pelo qual só será divulgada a partir de quinta-feira, quando disporá das traduções adequadas, em português e inglês.

O lixo fica por conta das questiúnculas internas e politicagens cortesãs, quase inevitáveis no universo do indigenismo oficial. O que não desmerece a importância do momento, pois a causa dos isolados é muito mais séria e grave do que as disputas internas de poder de Funai, ONGs ou "Defensorías Del Pueblo".

Do Acre, vieram o antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias, do "Papo de Índio" e CPI-Acre e o Fernando Niemeyer, que trabalha na Frente de Proteção Etnoambiental Envira. Muy bom conhecê-los. A Coordenadoria de Índios Isolados trouxe o Encontro a nova geração - a garotada que foi para as "frentes" no ano passado.

Corretíssima opção pelo futuro. Espero que o passado não seja deletado. Logo que a "carta trilíngüe" estiver disponível, repasso a você. Por hora, mando uma discussão introdutória, caso queira inserir no blog.

No site da OIT tem disponível o documento preliminar ao Encontro (participei da elaboração da proposta, em 2003), caso você queira refletir um pouco mais sobre o tema.

To be or Tupi? Continuo por aqui. Grande abraço

Rosa Cartagenes
jornalista e indigenista


ISOLADOS, OCULTOS, AUTÔNOMOS...

Das pradarias gélidas da Mongólia às pequenas ínsulas da Oceania, das savanas ardentes da África às últimas manchas florestais do Chaco Paraguaio, existem povos, ou frações de povos, que travam uma batalha surda, cotidiana e milenar pela sobrevivência autônoma diante da fagocitose avassaladora da globalização. Nos recônditos ermos da Floresta Amazônica, a cada dia mais devassada e devastada, subsistem remanescentes dos primeiros povos ameríndios, aqueles aos quais a legislação brasileira categorizou como índios isolados – popularmente chamados “arredios” ou simplesmente “brabos”. Deles, geralmente pouco se sabe de concreto, sendo registrados pelos circunvizinhos apenas por sinais visíveis de suas passagens e andanças ou por rápidos avistamentos e freqüentes histórias de fugas e confrontos violentos.

Sobreviventes incontestes da saga secular de esbulho, escravização, genocídio, devastação e de todas as formas de violência que colonizadores e exploradores impuseram durante os sucessivos ciclos de expansão e exploração econômica nas Américas, estes povos, muitas vezes resumidos a poucos indivíduos (ou mesmo um único sobrevivente, como a trágica situação do chamado “Índio do Buraco”, em Rondônia, que foge de tudo e de todos há anos, cavando buracos onde se abriga temporariamente a cada novo ciclo de fugas e ocultação), deixam transparecer uma única certeza: têm medo, medo de nós, os “outros”, os “brancos”, os invasores, os “espíritos destruidores”, o lixo ocidental.

Vozes silentes porque ausentes dos fóruns, dos debates, da mídia e das múltiplas expressões e canais disponibilizados (em maior ou menor grau) aos diversos segmentos da cidadania organizada, estes povos ímpares são os párias ocultos de todas as causas, visto que sua invisibilidade política os coloca como entes subliminares de todos os processos em curso que continuamente reconfiguram o quadro geopolítico e o tecido social.

Contatá-los? Não contatá-los? Respeitar sua opção pelo isolamento? Envidar esforços para proteger seus territórios tradicionais, mesmo não os conhecendo plenamente? O Brasil é o único país da América Latina cuja legislação (Lei 6001-artigo 4º) caracteriza e dispõe sobre estes povos indígenas em situação específica. Isto permitiu a inclusão de alguns dispositivos de proteção especial à integridade destes povos em questões de saúde, restrições à pesquisa, controle fundiário e proteção territorial.

Mas é muito pouco, diante da enormidade e complexidade das pressões que eles têm enfrentado, vindas de toda parte e de todos os lados, principalmente em função da cobiça sempre crescente por seus territórios e recursos naturais nestes alocados. Por vezes, a pressão parte até mesmo de outros povos indígenas, organizados politicamente, os quais, talvez porque imersos na demanda vertiginosa de seus próprios problemas, não têm disposto de atenção ou solidariedade contundente para as questões críticas que oprimem estes seus irmãos por origem e matriz étnica.

A Coordenação Geral de Índios Isolados – instância específica da FUNAI para a questão, registra informes atuais de 44 “ocorrências” na Amazônia Legal, 22 das quais confirmadas. A CGII mantém 05 “Frentes de Proteção Etnoambientais”, que substituíram as antigas “frentes de atração”, cujo objetivo explícito era contatar índios e “trazê-los à comunhão nacional”. A História demonstrou inúmeras e dolorosas vezes que este objetivo integracionista resultou quase sempre em etnocídio e/ou genocídio de povos indígenas, jogados até o presente, desintegrados, aos extratos mais oprimidos e despossuídos da sociedade.

As atuais “Frentes de Proteção” preconizam a segurança e presença institucional do Estado no entorno dos territórios onde há certeza da presença de índios isolados ou em contato inicial, sem a promoção do contato em si. Contato, só em último caso, quando as pressões externas são tão incontroláveis e devastadoras que coloquem em risco imediato a sobrevivência destes povos ou frações de povos sem contato usual com a população envolvente. São estas as atuais “Frentes de Proteção Etnoambientais”: Vale do Javari (AM), Cuminapanema (PA), Envira (AC), Madeirinha (MT) e Guaporé (RO).

“Primeiros-últimos povos”, estes “sobreviventes à América” constituem-se em inestimável patrimônio cultural, biológico, imaterial e espiritual da humanidade. Detentores de saberes intangíveis e de modelos sui generis de existência humana e de usufruto auto-sustentável e de baixo impacto sobre os ecossistemas florestais, governos e sociedades civis têm assistido, inertes, à destruição sistemática não só destas populações como também de seus habitats, única via possível da sobrevivência e continuidade de suas existências. Quantos índios ocultos podem ter morrido hoje, agora, neste exato momento, no crepúsculo ou na aurora?

(*) O “I Encontro Internacional sobre Índios Isolados na Amazônia e Chaco”, realizado entre 8 e 11/11/05 em Belém (PA), reuniu mais de 70 profissionais ligados à questão, entre indigenistas, antropólogos, juristas, médicos, ambientalistas, documentaristas, consultores técnicos e outros, particularmente atuantes nos países latino-americanos. Pretende-se o reconhecimento legal da existência destes povos e a defesa de seus direitos inalienáveis, humanos e étnicos, inclusive o direito à opção pelo isolamento, com a devida salvaguarda dos Estados Nacionais. Na América do Sul, constata-se “povos ocultos” nos seguintes países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela. O I Encontro Internacional produziu e referendou a “Carta de Belém”, consubstanciando a urgência e gravidade da questão, a qual será entregue formalmente aos governos destes países e aos organismos internacionais comprometidos com direitos humanos, diversidade cultural e patrimônio ambiental e imaterial da humanidade.

2 comentários:

Anônimo disse...

Certamente as "questiúnculas internas e politicagens cortesãs" deixaram de fora o nosso José Carlos Meirelles. Depois de ter sido flechado lá no Xinane o Meirelles ainda deu razão aos "isolados". Grande Meirelles, vida longa e saúde. Talvez para o "Segundo Encontro" ele seja convidado.
Prezo a amizade do Meirelles, sua casa em Feijó é um porto seguro.

Anônimo disse...

é lamentável que não tenha sabido deste encontro antes de seu término, em que pese viver e trabalhar em Belém; Ligia Simonian (antropóloga, Ph. D./pós-doutora), NAEA-UFPA