domingo, 20 de março de 2005

JORGE VIANA EM ÉPOCA

Autocrítica petista

Amigo de Lula e também de FHC, o governador do Acre cobra compromisso do PT com o governo e sobriedade do ex-presidente

RONALD FREITAS

Em novembro do ano passado, quando a reforma ministerial começou a ser desenhada, o presidente Lula mandou sondar se o petista Jorge Viana estaria interessado em assumir a Coordenação Política do governo. Viana achou mais prudente permanecer na cadeira de governador do Acre. Caso trocasse Rio Branco por Brasília, estaria condenado à agenda fisiológica imposta pelos aliados e à defesa dos ''gols contra que o PT insiste em marcar''. Até agora, a conseqüência mais grave do fogo amigo foi a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara. Mas Viana teme que seu partido ponha a perder o projeto de poder que levou duas décadas construindo. ''É preciso errar muito para que o presidente Lula não se reeleja. Mas o PT não se cansa de testar o melhor ativo que nós temos, o presidente Lula.''

É essa disputa interna que alimenta o discurso da oposição tucana liderada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Além de sempre ter mantido excelentes relações com FHC, o que lhe custou críticas de petistas que o achavam tucano demais, Viana é grato ao ex-presidente por ele não ter economizado demonstrações públicas de apoio quando Viana vivia sob ameaça de ser assassinado por adversários políticos.

O petista, porém, critica a postura ''de militante da oposição'' que tem identificado no ex-presidente. ''Ele (FHC) deveria se ater aos grandes temas.'' Em entrevista a ÉPOCA, o governador condena ainda a hegemonia paulista nos núcleos de decisão do governo Lula e defende a política econômica.



JORGE VIANA

Dados pessoais
Acreano, 46 anos, tem duas filhas

Carreira
Engenheiro florestal, foi prefeito de Rio Branco e governa o Acre desde 1999

História
Sua posse marca o fim dos escândalos envolvendo políticos do Acre, como o do assassinato do governador Edmundo Pinto, em 1992, e acelera a derrocada do ex-deputado Hildebrando Pascoal


ÉPOCA - Por que o PT cria tanta dificuldade para o governo Lula?
Jorge Viana - Às vezes eu tenho a impressão de que existe uma necessidade de nós, os petistas, nos auto-afirmarmos continuamente. Nós estamos legitimamente no poder, mas parecemos pouco à vontade numa função que sempre tinha sido desempenhada pela elite. É um sentimento que não me parece afetar o presidente Lula, muito à vontade com a vida palaciana e com a tomada de decisões.

ÉPOCA - Então por que tanta dificuldade para fazer a reforma ministerial?
Viana - Em parte, por instinto. Em parte, pelas complicações políticas. As bancadas dos partidos no Congresso sofrem uma espécie de peemedebização. O PMDB há anos é um partido com vários líderes que não se entendem. Isso se espalha como um vírus, contaminando todo mundo. O PFL foi o primeiro. Hoje, o PTB vive essa síndrome, o PP idem. O PL menos, mas também vive. Até o PCdoB e o PT. Esse desarranjo não tem ideologia. Numa situação dessas, o presidente fala com quem nesses partidos de lideranças fragilizadas?

ÉPOCA - Essa crise não ocorreu, em parte, por causa do PT, que para se manter puro começou a inchar os partidos aliados?
Viana - É claro que nosso jeito de atuar pode até ter colaborado para isso, mas não somos o ponto de origem.

ÉPOCA - Então qual é a origem?
Viana - É o momento da política brasileira. Mais que nunca é necessária uma reforma que inclua a fidelidade partidária e o financiamento público de campanha. Se não fizermos isso, pagaremos um preço cada vez mais alto. Como ninguém lidera, hoje, de uma reunião de líderes participam 60, 70 parlamentares.


'' Se Lula exagerou ou escorregou numa declaração, ele (FHC) não tinha o direito, com uma agenda mais tranqüila, de fazer isso. Tem hora que vejo nele um papel de provocar o presidente Lula ''


ÉPOCA - O senhor tem atribuído boa parte dos problemas que o governo enfrentou nos últimos tempos à excessiva influência dos paulistas na política. Oque, exatamente, o incomoda?
Viana -
No governo Fernando Henrique, sem nenhum preconceito, a elite paulista se expressou plenamente. Havia uma grande proximidade entre a visão do presidente e a do núcleo que dominava as decisões no Palácio do Planalto. Agora, a gente tem um grande aliado contra essa hegemonia, o próprio presidente Lula, o brasileiro mais cosmopolita do país.

ÉPOCA - Mas a presença dos paulistas não é menor hoje que no governo anterior.
Viana -
É fato, a gente não pode se desviar dele, que as disputas de São Paulo estão contaminando decisões e discussões do governo. É absolutamente natural que valorosos companheiros que ajudaram a construir o PT, que fizeram essa engenharia política que levou Lula à Presidência da República, fiquem no núcleo do poder. Mas será que na Câmara dos Deputados não dava para ter outro pensamento que se completasse? Quando se chega ao governo, não se tem necessariamente de procurar pessoas iguais à gente. É possível cercar-se de quem pense diferente, mas tenha o mesmo propósito. A concentração gera reações surdas, como o fato de hoje não haver nenhum paulista nas mesas da Câmara e do Senado. Deve haver algum recado nesse fato.

ÉPOCA - Que avaliação o senhor faz do comportamento do ex-presidente Fernando Henrique?
Viana -
Tenho uma relação de respeito e amizade com o ex-presidente, de gratidão, mas acho que ele faz um papel diferente do que eu imaginava que lhe caberia depois de oito anos governando o Brasil.

ÉPOCA - O que o senhor esperava?
Viana -
O (ministro) Sérgio Motta uma vez falou: ''Presidente, não se apequene''. Ele está se apequenando, já se apequenou. Primeiro, ele assume um papel de militante do PSDB, da oposição, quando o PSDB tem um quadro maravilhoso nessa função, o (senador) Arthur Virgílio. Nesse papel o Arthur é imbatível. O presidente Fernando Henrique vai ter de ser o segundo ou terceiro. Em segundo lugar, o PSDB não tem tradição de militância de oposição. É um partido de quadros, que deu uma grande contribuição ao país e tem de fazer uma política de alto nível.

ÉPOCA - Mas o PT também não tinha tradição de governo.
Viana -
O PSDB, por já ter sido governo, não poderia tomar algumas atitudes. O presidente Fernando Henrique é um dos brasileiros mais preparados por sua biografia, por ter vivido oito anos na Presidência. Ele não tem o direito de entrar num debate menor.

ÉPOCA - Mas ele não tem de se defender quando o presidente Lula diz que acobertou corrupção no governo dele?
Viana -
Ele pode fazer tudo, desde que sejam temas grandes, que envolvem….

ÉPOCA - Nesse caso específico da acusação de corrupção?
Viana
- Ele sabe muito bem o que o presidente Lula estava falando, a dimensão que o presidente Lula estava dando. O presidente Fernando Henrique fez da transição um exemplo, de uma forma que nós nem acreditávamos que seria possível no país. Se o presidente Lula exagerou ou escorregou numa declaração, ele não tinha o direito, com a cabeça fria, com uma agenda mais tranqüila, de fazer isso. Mas tem hora que eu vejo nele um papel quase que de provocar o presidente Lula. Aquela pode ter sido uma fala não apropriada do presidente Lula, mas o presidente é uma pessoa sincera, comete erros e falhas como a gente comete. Poderia estar embutida ali uma resposta ao que o presidente Fernando Henrique tem feito.

ÉPOCA - Mas, quando o governo do PSDB errava, o PT cobrava.
Viana -
Eu acho péssimo o PSDB ficar cobrando eficiência do nosso governo, dizendo que nosso governo gasta muito. Talvez essa reação equivocada do PSDB, um partido com o qual nós devemos sempre buscar estabelecer um diálogo pelo que representa para o país, seja ciúme do nosso governo. A agenda que o Lula tem cumprido fora do país já chama mais atenção do que a dos oito anos do governo Fernando Henrique. Lula se firmou no plano internacional. Os dados da macroeconomia, agora as mexidas na microeconomia, nosso governo não deixa nada a desejar se comparado ao do PSDB, com uma diferença.

ÉPOCA - Qual?
Viana -
O PSDB ficou oito anos, nós estamos com dois anos de governo. O PSDB tem de diminuir a tinta, porque tem responsabilidades pelo que está acontecendo. Administra Estados importantes e a cidade de São Paulo. Se o PT cometeu exageros, foi quando ainda não tinha encarado a posição de governo. Duvido que o PT, quando voltar a ficar na oposição, vá fazer do mesmo jeito. Fará com mais eficiência. Por isso eu acredito que possa haver um ajuste na posição do PSDB, eles entenderem que não podem cobrar determinadas coisas, não porque lhes falte legitimidade, mas porque não têm autoridade.

'' O PT é o que nós temos de melhor. Um partido que deu uma contribuição tão grande à democracia (...) não pode se arvorar de achar que, porque ganhou, vai ficar muito tempo no poder ''

ÉPOCA - O senhor acha que o PT exagerou nas críticas ao modelo econômico do governo passado, um dos trunfos do governo Lula?
Viana -
Eu não diria que é a mesma política.

ÉPOCA - Elas são diferentes em quê?
Viana -
O PSDB adotou como remédio contra a inflação juros altos, arrocho fiscal, mas isso ficava meio dissimulado. Deixava-se para mudar os juros e a política cambial depois da eleição. O PT chegou e disse: não fomos nós que receitamos esse tratamento para a doença do Brasil, mas nós vamos ter coragem de implementá-lo na dose certa. Isso ficou claro na Carta ao Povo Brasileiro, reafirmado pelas ações firmes e serenas do ministro (Antônio) Palocci. Isso é mais verdadeiro.

ÉPOCA - Mas é a mesma política.
Viana -
Hoje, a execução orçamentária está mais próxima da realidade, mesmo com o corte de R$ 15 bilhões. No governo passado, às vezes não havia corte, mas também não havia execução. Era a pior das situações. O aumento do FPE e do FPM (o repasse constitucional de verbas para os Estados e municípios) foi de 27% em janeiro, comparado a janeiro de 2004. Isso sem receita extra, sem privatizações. Todo mundo recebeu mais dinheiro e ficou caladinho. O crescimento do FPE e do FPM em 2004 foi de mais de 10%. A previsão era de 7%. Isso é o espetáculo do crescimento. Nós precisamos resgatar essa expressão usada pelo presidente Lula e à qual se deu pouco crédito. Passar de US$ 100 bilhões de exportações era meta para 2006. O crescimento do PIB ultrapassou os 5%. Não seria exagero falarmos em espetáculo do crescimento. Podem dizer que não temos garantia de que não seja um vôo de galinha. Mas os números mostram que nós vamos crescer acima das previsões.

ÉPOCA - Por que esse desempenho não se repete na política?
Viana -
A política está muito mal- arranjada no cenário atual, não por um erro do governo. Talvez seja por uma coisa mal resolvida dentro do PT. Às vezes eu digo, em tom de brincadeira, que em algumas cidades nós estamos fazendo um vôo mais curto que o de tucano, que já voa curto. A cada quatro anos, caímos fora. Não adianta a gente achar que só porque estamos fazendo certo o povo vai reconhecer. Por que nós perdemos o governo do Distrito Federal depois de quatro anos? Como é que duas vezes nos foi dada a oportunidade de governar São Paulo e quatro anos depois fomos tirados? Existe um componente que começou a fazer parte do nosso cenário: o fogo amigo. Em Porto Alegre, onde já estávamos consolidados, não houve uma reação ao modo petista de governar. Perdemos pelos problemas que nós mesmos do PT criamos desde 2002.

ÉPOCA - Seguindo seu raciocínio, o presidente Lula pode não se reeleger?
Viana -
De jeito nenhum. Nós teremos de errar demais para que isso aconteça. O presidente Lula e o governo são maiores que as crises que o país vive e as que nós do PT criamos. Nós do PT, que introduzimos conceitos de gestão pública, princípios na gestão pública, não temos o direito de gerenciar uma cidade ou um Estado só por quatro anos. Nesse período não se consolidam conceitos. Como é que se explica a Marta (Suplicy) ter tido um governo bem avaliado e ter perdido a eleição? Nós erramos na relação com outros partidos e com a sociedade. Oque explica termos ganho a eleição com a (Luiza) Erundina para a prefeitura de São Paulo, em 1988, termos montado um secretariado com peso de ministério, de Paulo Freire a Marilena Chauí, e só termos ficado quatro anos no governo? Depois da (Luiza) Erundina (1989-1992), São Paulo teve um Pitta. Nós não temos esse direito. O PT é o que temos de melhor.

ÉPOCA - Esse discurso não é muito arrogante? O PT não pode se dar ao luxo de deixar o adversário derrotá-lo depois de quatro anos?
Viana -
Não. O PT é o que nós temos de melhor. É por meio dele que Lula teve a oportunidade de chegar à Presidência da República. O que eu quero dizer com isso: em alguns aspectos, nós do PT temos a síndrome de ser oposição. Um partido que deu uma contribuição tão grande à democracia, que contestou as organizações tradicionais da esquerda, que teve a vocação natural para ser governo, que introduziu conceitos, modelo de gestão, não pode se arvorar de achar que, porque ganhou, vai ficar muito tempo no poder. Temos de ter a grandeza de ser humildes, que às vezes não temos, e termos a responsabilidade de não ficar dois anos, três anos. Se fizermos isso, sozinhos, excluindo os outros partidos, isso é arrogância. Se for feito admitindo nossa incapacidade de promover parte das mudanças porque não temos maioria, não é arrogante.

Fonte: Revista Época

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