segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Domingos Bernardo: morre jurista autor do parecer que liberou ayahuasca no Brasil

POR JAIR ARAÚJO FACUNDES



 

 

 

 

 

 

 

 

O jurista Domingos Bernardo Gialluisi da Silva Sá faleceu nesta segunda-feira (17), aos 79 anos, no Rio de Janeiro. Toda pessoa que toma ayahuasca no Brasil deve-lhe muito. Qualquer pessoa que se interesse pelos direitos fundamentais e, em especial, pela liberdade de religião, precisa conhecer sua obra e pareceres. Quem se interessa pelo tema Constituição enquanto consenso mínimo para uma sociedade caracterizada pela diferença ter alguma estabilidade e merecer adesão de seus cidadãos, deveria lê-lo.

A liberação da ayahuasca no Brasil (ainda) é um processo lento, com avanços e retrocessos, uma obra inacabada.  E essa obra teve de Domingos Bernardo uma contribuição inestimável e insuperável.

Há uma infinitude de pesquisas sobre ayahuasca em várias áreas do conhecimento humano, como antropologia, sociologia, farmacologia, psiquiatria, neuroquímica etc.

Mas o grande embate, a grande arena onde se decidiu e se decide acerca da liberação de seu uso nos vários países, deu-se e ainda se dá no coliseu do direito, justamente uma área com raras pesquisas. Muito raras.

Há um consenso sobre a liberdade de credo. Praticamente todos com ela concordam, em todos os países, até em algumas teocracias. Mas saber quando essa liberdade deve prevalecer mesmo contra a vontade da maioria de uma sociedade, mesmo contra a expressão jurídica dessa vontade (a lei) é tema que divide juristas consagrados e teóricos afamados.

 

Praticamente todos os países do mundo, mesmo as tiranias, tem algo a que chamam de constituição e/ou uma carta direitos fundamentais, além de inúmeros tratados internacionais. Mas essas cartas de direitos, por um lado, garantem o primado da lei aprovada pela maioria de sua população direta ou indiretamente, e simultaneamente, asseguram a liberdade de credo; por outro lado, não explicam como essas duas proposições primordiais devem ser harmonizadas quando colidem frontalmente.

Domingos Bernardo era um pensador. Um erudito. Um liberal no sentido mais excelso que essa palavra um dia teve e ainda tem, quando bem compreendida. Ele acreditava, e assim escreveu, que as liberdades, não importam quais, não podem ser reprimidas injustificadamente. Ele sustentava, com base nos grandes pensadores, que o Estado, que o Governo não deve intervir arbitrariamente na vida e convicções de um homem.

Domingos Bernardo professava a crença, urgente hoje, de que o Governo deve estar a serviço de seu povo, não o contrário. Como bom leitor de Stuart Mill, tinha especial atenção quando deliberava acerca dos limites da atuação do Estado frente ao cidadão, em especial, integrante das minorias.

Conheci Domingos em 1986, quando veio ao Acre colher elementos para decidir acerca da liberação da ayahuasca, questionada, seu uso, pela então Dimed (Ministério da Saúde), na primeira manifestação do Governo Federal sobre o uso da ayahuasca. Até então havia, em Rio Branco (AC) e Porto Velho (RO), pequenas escaramuças entre polícia e praticantes, entre judiciário e igrejas etc.

Tornei a reencontrá-lo em 2006, como colegas integrantes do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT) que elaborou os estudos que subsidiaram a Resolução 1/2006, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD): acresceu, às características da juventude, a sabedoria e a experiência da idade mais avançada.

Era um homem que reunia virtudes ímpares, como coragem, sabedoria e uma incrível humildade. A fala mansa, pausada era inversamente proporcional à força de seus argumentos e pensamentos bem elaborados e lastreados em fina bibliografia.

Há várias formas de compreender a liberdade de credo (concepções). Algumas melhores, outras nem tanto. Uma delas, muito corrente, diz que devemos “tolerar” os diferentes. Algo como permitir que uma idéia ou crença exista, desde que não incomode à maioria. Outra forma, bem diferente, sustenta que devemos respeitar as pessoas e suas idéias, tanto quanto possível, por serem detentoras de autonomia, dignidade e capacidade de pensar. Não é “tolerar”.

Todo ayahuasqueiro, em especial aqueles que se interessam pela história desta bebida, deveria ter uma cópia do parecer de Domingos, aprovado por unanimidade pelo Confen, em 1987 (parecer final). Um primor de cultura. Os vários ramos do conhecimento humano, como farmacologia, antropologia e filosofia desaguando no Amazonas do direito, inundando a todos com argumentos e persuasão.

Domingos vai fazer falta. Muita.


Jair Araújo Facundes é juiz federal no Acre

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