quarta-feira, 13 de julho de 2016

Oi, Amazônia, muito prazer

POR MARIA FERNANDA RIBEIRO

Abdallah e o melhor biscoito de goma do Brasil.

Prometi a mim mesma que iniciaria o processo de me desconectar no momento em que pisasse na sala de embarque. E assim foi ontem no aeroporto de Congonhas. Encontrei um canto vazio e me acomodei. Tirei o Kindle da mochila e elegi um título para iniciar minha jornada. Fui de Eliane Brum e ‘Meus Desacontecimentos.’ Guardei o celular na bolsa e iniciei a leitura. Li. Li muito. Li até ouvir o meu nome ser anunciado lembrando que aquela era a última chamada para o embarque. E foi assim que quase perdi o voo que me trouxe até Cruzeiro do Sul, no Acre, porta de entrada para o início da minha jornada Amazônia adentro e a segunda maior cidade do Estado depois da capital Rio Branco.

Ao entrar no avião, já toda esbaforida, pensei que era preciso encontrar um ponto de equilíbrio para um dos principais conselhos que recebi: respeite o tempo da Amazônia, lá (agora aqui) é diferente. Eu já queria me preparar, mas decidi que o próprio tempo se encarregará disso, mas desconectar, ao menos um pouco, será obrigatório. Mesmo porque, se você reclama do seu 4G, é porque tem navegado pouco por aí.

Cheguei. Começou o que até então eram apenas planos e suposições. Cheguei, mas não sem antes chorar por três dias consecutivos. Choros compulsivos, convulsivos e impulsivos. Em alguns momentos o choro parecia riso e o riso parecia choro. O dilema de rir ou chorar. O final de semana que antecedeu o início da viagem foi uma mistura de sufoco com euforia, ambos em doses cavalares e igualitárias. Além dos últimos preparativos, uma dúvida me assombrava: Como minha vida iria se transformar a partir do momento em que eu embarcasse no primeiro avião? E quem seria a Maria que se olharia no espelho daqui um ano? E então o assombro cedia espaço para uma satisfação plena de ter a oportunidade de viver essa transformação. Saber que minha vida está resumida em uma mochila de 50 litros é de uma felicidade sem precedentes. Pois, uma coisa é certa: se dói partir, permanecer imóvel pode estraçalhar muito mais.

Teve também a mudança do Leandro para a minha casa. Ele vai ficar lá até eu voltar, zelando pelas minhas plantas e livros. Leandro levou na mudança 26 caixas de seus próprios livros e uma estante de 3m x 3m que ocupou uma parede inteira da sala e trouxe uma nova e cortante realidade: a casa aos poucos deixava de me pertencer e minha identidade vagava por ali, um pouco perdida entre os novos móveis e objetos. Minha identidade já era metade fantasma. E a outra metade se desfazia enquanto o tic-tac do relógio evidenciava que o dia se aproximava.

Tratei logo de aproveitar o momento para doar o que eu ainda nutria certo apego e jogar o que eu ainda teimava em acumular. Liberei gavetas da cozinha e do banheiro. Guardei os porta-retratos. Um com a foto da minha avó e o outro com uma imagem em que estou abraçada com o meu pai. Minha avó morreu. E meu pai também. E agora aquelas imagens permanecem em minha memória, junto com todas as outras cores e sons que a eles pertencem. Eu olhava para aquelas fotos todos os dias. E até cumprimentava os dois quando chegava da rua e dava de cara com eles. Bom dia, pai. Bom dia, vó. Mas o Leandro não conheceu o meu pai e nem mesmo a minha avó. Acho que ele não daria a eles a mesma atenção que eu. Pior, talvez até os ignorasse. Foi melhor deixá-los na companhia dos casacos de frio.

Agradeço ao Leandro. Pelo compromisso em regar as minhas plantas e por ter sido pivô, junto comigo, do meu processo de limpeza, que apesar de material, tem muito mais a ver com a alma do que com aquele saco de farinha de mandioca pela metade vencido desde janeiro que eu nem sabia que estava no fundo do armário. Chorei ao me despedir dele. Nem sei bem porquê. Assim como caí no choro ao falar com meus irmãos ao telefone, ler as mensagens carinhosas dos amigos que foram deixadas em todas as redes sociais e ao me despedir da minha mãe no aeroporto. Chorei de São Paulo a Brasília, cidade da primeira conexão, olhando o tempo todo pela janela do avião. Agora estou aqui, já de pranto encerrado, numa das cidades localizadas mais a Oeste do país, mais perto do Peru do que de São Paulo, num quarto de hotel que custa R$ 70 a diária. Setenta reais. É ou não é uma mãe esse Acre?

É piada recorrente dizer que o Acre não existe. Suponho que os acrianos não devem gostar nada disso. Já imaginaram eles duvidando da existência de algum estado do Sudeste? Que infâmia seria. É bem verdade que demora para chegar, mas cá estou. Saí de São Paulo às 18h30 e pousei em Cruzeiro do Sul às 0h30 no horário local, com conexão em Brasília e escala em Rio Branco. Aqui são duas horas a menos. Sendo assim, foram necessárias quase nove horas voando pelos céus brasileiros. Como é que dizem que o Acre não existe se aqui tem até fuso próprio? Eu nunca duvidei.

Mas agora preciso parar de escrever. Disseram que por essas bandas tem o melhor biscoito de goma do mundo – sim, do mundo – e uma farinha de macaxeira de tirar o chapéu. E um igarapé bom para tomar banho depois de suar em bicas pelas ladeiras que te fazem perder o ar antes mesmo de dar o primeiro passo. Sem contar as variedades extraordinárias de feijão que só Cruzeiro do Sul tem. Mas o Jean, o taxista, já me adiantou que por aqui o produto também anda caro e a tendência é piorar. De cinco para dezesseis reais o quilo, vejam só. Mas eu, que sou dessas viajantes obedientes e repórteres inquietas, vou sair para andar por aí e checar mesmo se é tudo verdade.

Maria Fernanda Ribeiro escreve no blog Eu na floresta, do Estadão. Veio passar uma temporada na Amazônia, chegou nesta terça-feira a Cruzeiro do Sul e deve perambular na região cerca de um mês.

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