POR FERNANDO GABEIRA
Apesar da leveza do domingo, não consigo deixar de falar deles, os
náufragos do Mediterrâneo, africanos, árabes, católicos e muçulmanos que
buscam uma nova vida e morrem no fundo do mar. Às vezes, tratamos essas
notícias como sombras que passam. Mas elas se repetem, dramaticamente,
sobretudo a partir do Oriente Médio esfacelado pela guerra. Os
traficantes de gente preparam suas cargas humanas de tal maneira que
afundá-las é um movimento de dispersão, que permite a fuga e a renovação
do seu negócio letal.
Que importância tem deixá-los morrer acorrentados nos porões, se já
pagaram pela viagem ao além? Tenho lido sobre a crise mundial. Não sei
se existe uma saída durável nem lá fora nem aqui dentro do Brasil.
Constato apenas que o capitalismo não consegue cumprir sua promessa de
livre trânsito para mercadorias e pessoas.
Seus produtos circulam, mas exércitos estão a postos para evitar que
os trabalhadores busquem livremente suas condições de trabalho. E há
muros por toda parte. Precisamente nessa semana de terríveis naufrágios
no Mediterrâneo, recebo mensagens do Acre lembrando que a tragédia se
desloca também para o Brasil. O governo de lá, depois de receber 35 mil
pessoas e esgotar seus recursos, jogou a toalha. Não tem como amparar os
refugiados que chegam pela Bolívia e o Peru. No princípio eram apenas
haitianos. Começam a chegar os africanos.
Dirigido por traficantes e entrando por terra, o fluxo no norte do
Brasil não tem a mesma dose letal dos barcos no Mediterrâneo. Mas é tão
subestimado, nacionalmente, que pode tornar um trauma no futuro. Segundo
os dados que tenho, chegam apenas 70 clandestinos por dia. O governo do
Acre resolveu ampará-los desde o princípio. Quando não conseguiu mais,
exportou um contingente para São Paulo.
Todos se lembram, houve até divergências públicas entre Acre e São
Paulo. Elas escondem o aspecto essencial: a incapacidade do governo de
Brasília de buscar soluções negociadas.
No momento, estamos brigando contra desvio de verbas, pedaladas
fiscais, o governo tentando se manter, a oposição buscando derrubá-lo.
Apertam os cintos da sociedade, enriquecem os partidos.
Mas a natureza
do problema migratório exige um novo enfoque. É um tema de todos nós.
Demanda alguém que busque a cooperação da Bolívia e do Peru, exige que,
através de um trabalho de inteligência, apontem-se as principais
quadrilhas que exploram essa rota amazônica. De que adiantaria isso, se
os europeus, mais fortes e organizados, estão perdendo a batalha no
Mediterrâneo?
As condições tanto na Síria como na África são cada mais graves. As
mortes são o resultado da crueldade dos traficantes, mas também de um
aumento da vigilância na área.
Aqui no Brasil, o Acre aguentou enquanto pôde. Talvez tenha sido
voluntarista, aguentando mais do que, realmente, poderia. Como as coisas
acontecem muito ao norte e os naufrágios no Mediterrâneo parecem
acontecer num outro mundo, há um silêncio sepulcral em Brasília. Será
que os políticos, tanto do governo como da oposição, acreditam mesmo que
essas grandes comoções mundiais não nos dizem respeito?
Quando os haitianos começaram a chegar a Brasileia estive lá
conversando com eles. Ficou bastante claro que era um movimento no seu
início. As famílias e os amigos esperavam a hora de vir também. Visitei
os sírios numa mesquita em São Paulo, e também ficou bastante claro que,
para muitos, o Brasil era o ponto final na sua rota de fuga.
Com a notícia de que os africanos começam, lentamente, a substituir
os caribenhos na rota que passa por Peru e Bolívia, desaguando no Acre,
torna-se evidente que o Brasil é o ponto final na rota amazônica. Se me
perguntarem, de repente, o que fazer diante disso tudo, responderia: não
sei. Mas pelo menos converso, pergunto, me interrogo.
O que impressiona é o mundo oficial caminhar como se nada estivesse
acontecendo. Setenta clandestinos por dia é um número que não
impressiona. Mas foi o bastante para exaurir o Acre.
Uma das piores consequências da decadência política brasileira foi
termos sido forçados a discutir a roubalheira, a derrubar álibis e
imposturas, enquanto o mundo segue seu curso perigosamente. A crise
brasileira não é produto direto da crise mundial, como diziam as
mentiras eleitorais. Supor que essas crises não se entrelacem, por outro
lado, é uma forma de enterrar a cabeça na areia.
É natural que todos queiram saber se Dilma cai ou não cai.
Infelizmente, inúmeras outras desgraças se anunciam nas nuvens. No tempo
em que a esquerda se dizia marxista, pelo menos era possível discutir o
mundo. A passagem ao bolivarianismo estreitou seus horizontes ao nível
mental de tiranetes sul-americanos, tão bem descritos pelo próprio Marx.
Ainda por cima, inventaram uma presidente que não gosta de política
externa.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 26/04/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário