sexta-feira, 20 de junho de 2014

No Acre, uma fogueira de São João e o velho enredo da intolerância religiosa

POR JAIR ARAÚJO FACUNDES




Tive a grata honra de participar do processo de criação da Área de Proteção Ambiental e Cultural Raimundo Irineu Serra,  a primeira no Acre. E a oportunidade, da qual muito me orgulho, de integrar a primeira composição do Conselho Deliberativo dela.

Na exposição de motivos do decreto de criação discorreu-se sobre a dupla finalidade desta APA: a proteção do meio ambiente, e em particular, da bacia do igarapé São Francisco, e a proteção da manifestação cultural que ali se desenvolve há mais de 70 anos: a cultura ayahuasqueira.

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A criação da APA foi baseada numa ideia arrojada e muito ousada, embora não original: a firme crença de que cultura e meio ambiente não são valores antagônicos, mas indissociáveis, de modo que a cultura, o modo de vida que estabelecemos, determina nossa relação com o meio ambiente e que poderá ser de respeito e preservação ou mera exploração.

Surgiu, nesses dias, a curiosa notícia, em tom de “denúncia”, de que a fogueira de São João do Alto Santo é feita com árvores retiradas da APA, como se isso, por si só, caracterizasse violação às regras ambientais.

Curiosa porque essa prática data de mais de 70 anos. Todos os anos é  motivo de reportagens nas várias emissoras de TVs e jornais, até mesmo imprensa nacional, e tal como tacacá, cupuaçu ou “baixaria”, é a cara do Acre. A isso seguiram-se várias postagens de opiniões nos jornais e redes sociais, algumas contra, outras a favor.

A discussão tem um viés jurídico fundamental que deve ser enfatizado. E discussão jurídica não isola argumentos antropológicos ou históricos de argumentos jurídicos, como se o direito existisse em alguma dimensão não humana e atemporal.

Segundo uma interpretação que veio a público,  afirma-se que, se há uma norma proibindo a derrubada, então o ato de cortar árvores para fogueira é crime. Não importaria, para essa interpretação, se o corte é sustentável; ou mesmo que a APA tenha sido criada também para proteger justamente a prática religiosa ali nascida. Seria crime e ponto.

É uma interpretação literal de um só artigo de lei, como se não houvesse um sistema normativo em torno de cada dispositivo de lei, como se a interpretação, de modo válido e responsável, pudesse ser realizada de modo isolado.

A Constituição Federal ordena que o Estado proteja as manifestações das culturas populares (art. 215, §1º). A Constituição do Estado do Acre contém dispositivo semelhante (art. 201, §1º).

Agora já não temos uma lei dizendo ser infração o corte de madeira na APA, mas uma disposição normativa superior, de índole constitucional, ordenando a proteção de práticas culturais populares.

Num primeiro momento, essas disposições parecem conflitantes. Mas não são. Alguns apressadamente argumentaram que uma tradição cultural não pode se opor à lei, mas não explicaram, e deveriam, como uma lei pode se opor à Constituição: não se discorreu sobre como dois valores constitucionais concretamente devem ser sopesados e aplicados.

A colisão entre valores ou princípios constitucionais não é algo raro. É até mesmo recorrente. Liberdade de expressão versus privacidade; liberdade religiosa versus direito à vida (caso de algumas crenças que se recusam a transfusão de sangue), autodeterminação individual e o correlato direito de educar o filho a seu modo versus proteção integral  da criança e adolescente.

Esses conflitos devem ser resolvidos à luz da Constituição, com exame de todas as circunstâncias relevantes implicadas e, tanto quanto possível, com obediência e cumprimento de todas as normas. É possível, mas exige certa boa vontade, desprendimento e uma visão menos setorizada, menos voluntarista e mais sistêmica  da Constituição enquanto documento político destinado, entre outras coisas, a garantir direitos  de minorias em face da maioria.

O então governador do Acre Binho Marques no São João de 2009


No caso da APA e da fogueira, creio, nem sequer conflito entre as normas há. Há uma norma que determina a proteção de práticas culturais; e outra norma que proíbe o corte. O sentido e a finalidade desta norma é proteger o meio ambiente. E se o corte é feito de modo sustentável, não haveria lesão ao bem protegido pela norma (proteção ao meio ambiente). Isso precisa ser bem esclarecido, para que se possa dar opinião responsável sobre os fatos.

Foi feito um estudo, a pedido da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Rio Branco (Semeia), para se saber se o corte de árvores para construção de uma fogueira com aproximadamente 20m³ seria sustentável ou não. Por outras palavras, o estudo, realizado pelo professor Evandro Ferreira (professor da Universidade Federal do Acre e pesquisador do Instituto de Pesquisas da Amazônia) visava responder à seguinte questão: essa extração de madeira permite que a cobertura florestal se recupere em tempo hábil ou é uma prática predatória e conduzirá, a médio ou longo prazo, à destruição total da mata? A pesquisa realizada constatou que a madeira cortada é “branca”, de pouco valor comercial, abundante na região e com alto potencial de renovação (faveira), e, por fim, que a cobertura suportaria aquela retirada.

As duas normas coexistem sem conflito. A norma de proteção ambiental não existe por si mesma, mas se justifica e tem sua existência condicionada ao fim a que se destina: a proteção do bem jurídico, no caso, o meio ambiente. Viola-se essa norma quando se praticam atos sem sustentabilidade; não se a viola quando o ato não lesiona o bem jurídico que ela tutela.

A questão veio a público de modo errado. Como denúncia de uma prática clandestina.  E pior, como se os cidadãos fossem criminosos. O que não é. E com interpretações que divorciam bens jurídicos que podem e devem ser tratados de modo indissociável.

Devemos ter cuidado ao discutir temas constitucionais, e mais ainda ao fazer imputações com base em notícias de fatos não apurados. Do contrário, incorre-se no grave risco de i) se criminalizar práticas culturais de grupos minoritários; ii) interpretar a Constituição a partir da lei, e não o contrário: como é cediço, devemos interpretar a lei a partir da Constituição. E criminalizar-se apenas por criminalizar, sem maior fundamentação, com interpretações unilaterais de artigos ou disposições isoladas. No Brasil já criminalizamos as religiões afros e espíritas, além da capoeira. Não por acaso, práticas culturais de grupos minoritários.

Por certo que não se defende aqui que toda prática cultural deve ser respeitada, mesmo contrária à lei, como se fosse uma ordem em branco para tudo se tolerar, ou como se as pessoas de dada prática não estivessem, também, sob o império da lei, como se elas fossem especiais. Longe disso. Há práticas culturais que já foram permitidas e que devem sim ser proibidas, por discriminatórias, por degradantes. A “farra do boi” é o exemplo mais evidente e recente do que já foi permitido e hoje deve ser proibido.

O enfoque que se pretende oferecer é no interior da lei, no marco da legalidade a partir do princípio de que cada um quer para si aquilo que pode sustentar para os outros enquanto comunidade. É afirmar que a fogueira de São João, tal como construída e delimitada pela tradição religiosa, não atenta contra o meio ambiente, nem contra a finalidade da APA e realiza, concretiza uma das finalidades para as  quais a APA foi criada.

Seria um Estado (lato senso) esquizofrênico, desmerecedor de respeito, aquele que cria uma APA para explicitamente proteger uma prática cultural e posteriormente se utiliza desta mesma APA para ameaçar com multa e ações penais quem mantém aquela prática protegida.

A interpretação criminalizante, para ser aceita, deve se fazer acompanhar de um pouco mais de embasamento jurídico para afastar a forte suspeita de que mais se trata de preconceito contra uma tradição religiosa que sincero interesse em proteger o meio ambiente.

É de conhecimento público que a doutrina religiosa fundada no uso da Ayahuasca e nas tradições que a circundam, como o uso da fogueira de São João, por ser a prática de uma minoria, historicamente vem enfrentando fortes tentativas de repressão, ora fundada em pretensa ofensa à “moralidade pública”,  ora em pretensa ofensa à lei penal, e agora à lei ambiental. Ao longo do tempo, várias das razões para a repressão se mostraram apenas expressão de intolerância diante daquilo que é diferente.

O debate apressado, acobertado por aparentes gotas de juridicidade, pra outra coisa não serve senão reforçar a suspeita de que apenas estamos diante da releitura de um enredo já conhecido de intolerância. E sem graça alguma.

Jair Araújo Facundes é juiz federal

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