Sem licença ambiental, Universidade Federal do Acre usa tratores do governo do Estado, derruba parte da floresta do Parque Zoobotânico e abre estrada de 300 metros no campus para servir ao futuro Centro de Excelência em Energia. É o retorno da razão cínica do "desenvolvimento" e do "avanço" para lugar nenhum.
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“Começamos a viver mais um capítulo na história da conquista definitiva da Amazônia. No setentrião do Brasil, o presidente Médici assiste ao início da construção da Estrada Perimetral Norte. Após o hasteamento da bandeira nacional e o descerramento da placa foi derrubada uma imensa árvore, símbolo do desbravamento da terra”.
Com aquelas palavras o locutor oficial do programa de propaganda “Brasil Hoje”, edição 36, em 29 de julho de 1973, anunciava o início de um dos mais drásticos processos de violências contra os diferentes grupos humanos e ecossistemas da região amazônica. A Perimetral Norte tinha como ponto de partida as “encostas do Tumucumaque”, nas margens do Atlântico, atravessando “todo o vasto setentrião do Brasil”, até os limites da insanidade “modernizante e desenvolvimentista” dos militares que sabotaram o estado de direito no Brasil por mais de 20 anos.
A obsessão pelo desbravamento estava sempre acompanhada da retórica da “melhoria da qualidade de vida” e do “progresso” para a Amazônia e seus habitantes. “Acelera Brasil”, “Avança Brasil”, “Este é um país que vai pra frente”, “Integração nacional”, entre outros, sempre foram os slogans instilados no imaginário de todos pela propaganda oficial.
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Passados 37 anos, somos conhecedores dos drásticos resultados de tal “desbravamento”, “modernização”, “integração”, “progresso”, “avanço”. No plano estratégico, os discursos governamentais, empresariais e “científicos” situavam a Amazônia como a “última fronteira agrícola”, o “celeiro do Brasil”, para justificar a “integração do pulmão do mundo”. Margeando esse palavrório, o Acre, no alvo da “frente de expansão da pecuária”, aparecia como a “terra prometida do desenvolvimento”, um “nordeste sem secas”, um “sul sem geadas”. Depois vieram outras pérolas do tipo “Acre: filé mignon da Amazônia” e, mais recentemente, com as miríades do “manejo madeireiro”, esse Estado passou a ser tecido - pela linguagem dos que detém o controle da máquina pública e da mídia - como “predestinado” a garantir seu “desenvolvimento” tendo como base a “exploração racional” de suas florestas e a exportação de madeira para o mercado nacional e internacional.
Todo esse “passado morto e enterrado”, como dizem os que gostam de ocultar o sol com a peneira, me veio à mente ao visitar os estragos e a verdadeira devassa implementada pela administração superior da Universidade Federal do Acre, com a abertura de uma estrada em parte significativa do Parque Zoobotânico (PZ) dessa instituição. A finalidade dessa devastação foi o “lançamento da pedra fundamental”, em 17 de agosto último, do “Centro de Excelência em Energia do Acre (CEEAC)”.
Não me parece coincidência que esse “centro” que, antes de nascer, já é de “excelência”, tenha tido seu lançamento marcado pela tradicional pompa do descerramento de uma “placa inaugural” e pela velha megalomania dos projetos e políticas gestadas em gabinetes externos à Ufac para “potencializar o desenvolvimento regional”. No entanto, as manifestações públicas da reitora, Olinda Batista, e do seu vice-reitor, Pascoal Muniz, não poderiam ter deixado de pontuar que a participação da universidade que dirigem, na criação desse centro, sequer foi discutida no âmbito do Conselho Universitário, colegiado máximo de deliberação e responsável pela definição das políticas institucionais.
O CEEAC é fruto de um Acordo de Cooperação Técnica entre a Eletrobrás, a Ufac e um grupo de outros consórcios e empresas, dentre os quais é preciso destacar a Santo Antonio Energia S.A. que está à frente do Complexo Hidrelétrico do Madeira, responsável por danos incalculáveis à diversidade biológica e sociocultural de um dos mais importantes afluentes do rio Amazonas; a Siemens, Alstom, Andritz Hidro, e Voith Hydro, empresas multinacionais que faturam bilhões de euros no controle dos mercados mundiais de produtos e serviços com eletrônicos, telecomunicações, material elétrico e infra-estrutura do setor energético, equipamentos para usinas hidrelétricas, entre outros.
A lógica que preside esses conglomerados financeiros é o lucro máximo e o total descompromisso com o bem estar das pessoas e com o meio ambiente das áreas e regiões de interesses para seus negócios. O acordo assinado pela reitoria da Ufac, sem a anuência do Conselho Universitário e sem nenhuma reflexão sobre os seus significados com a comunidade acadêmica e toda a sociedade local, revelam não apenas desapego às normas que regem essa instituição pública, mas uma total “ingenuidade” e inabilidade para lidar com questões dessa natureza, bem como sobre o papel da universidade. Papel esse que jamais pode ser de submissão a projetos megalomaníacos e aos interesses de empresas particulares ou mesmo “estatais”, como a Eletrobrás e suas subsidiárias que todos conhecemos pelos altos custos e a péssima qualidade dos serviços que presta em nossa região.
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Por trás do acordo que cria o “Centro de Excelência em Energia do Acre está o engodo da Pareceria Público Privado (PPP), inventada pelo governo federal para dissimular o deslocamento de verbas públicas para a iniciativa privada, sob a cínica alegação de alavancar o “desenvolvimento” ou sanar déficits educacionais. Exemplo disso é o Programa Universidade para Todos (Prouni) que destina para universidade particulares milhões de reais que poderiam ser investidos na melhoria das condições de oferta, infra-estrutura e contratação de profissionais para a criação de novos cursos e ampliação de vagas nas universidades públicas.
Em conversa com o Professor Luis Fernando Novoa Garzon (Unir), um dos grandes estudiosos dos projetos de construção de barragens e usinas hidrelétricas na região do rio Madeira, o mesmo fez questão de ressaltar que iniciativas como essas, da criação desse “centro de excelência”, fazem parte do suporte que o Ministério das Minas e Energias em conjunto com suas estatais e o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) vem dando para promover uma cobertura técnico-científica ao criminoso avanço de consórcios econômicos internacionais sobre a “fronteira elétrica na Amazônia”.
Com esse “Centro de Excelência em Energia do Acre” o que está em “operação é o espraiar de empresas que atuam no Complexo Rio Madeira”, saindo na dianteira para ficar em posição de “se apropriarem das quinze novas Usinas Hidrelétricas (UHEs) a serem construídas na Amazônia peruana. Nucleadas pela Santo Antônio Energia (SAESA) que é concessionária da UHE de Santo Antonio e pela Energia Sustentável do Brasil (ESBR) que é concessionária da UHE de Jirau, as demais empresas que estão associadas à Ufac para a construção do ‘centro de excelência’ são algumas das responsáveis pela logística (linha de transmissão: Norte Brasil e Interligação) e suprimentos (turbinas e demais equipamentos), Siemens-Voith com SAESA e Alstom com ESBR. Esse centro na universidade demonstra bem a excelência da espoliação que buscam tais empresas, reproduzindo em micro-escala a forma como vêm lidando com as populações do Madeira e seu meio ambiente”.
A devassa proporcionada pela ação dos tratores e máquinas para a abertura da estrada na área do Parque Zoobotânico, jogando por terra toda a discussão e debates acadêmicos acerca da preservação, conservação e estudos sobre a diversidade da flora e fauna daquele local, simbolizam o cenário de palavras de efeito, dos discursos ufanistas e do “rolo compressor” que acompanham o germe da criação de tal “centro” nessa universidade. Frente aos interesses de mercado não existe diálogo possível. A alternativa é fazer e fazer, não importando seus desdobramentos ou nada do que se disse antes.
O site da Ufac informa que o Parque Zoobotânico, “criado em 1979, compreende uma área de 100 ha, representada por formações vegetais secundárias em diferentes estágios de regeneração e por um remanescente de mata primária pouco perturbada”. Sua atuação é pautada em três eixos: biodiversidade, ecologia e manejo de ecossistemas, e educação. A ampliação das atividades do parque, ao longo dos últimos vinte anos, possibilitou-lhe gerar “autonomia científica, didática e administrativa, agilizando o cumprimento dos seus objetivos primordiais: contribuir com o desenvolvimento regional na geração de produtos relacionados à pesquisa, conhecimento florístico da região, preservação, educação ambiental envolvendo importantes aspectos da flora e fauna amazônica, bem como capacitando recursos humanos em diferentes campos de atuação”.
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Pelo visto, nada disso foi levado em consideração pela administração superior da Ufac, pois a mesma, até a presente data, não fez nenhum comunicado oficial sobre as razões que a levaram a autorizar a abertura da estrada, iniciando o preparo do local para a implantação do referido “centro de excelência” e para a solenidade inaugural – espetáculo midiático – do “novo” empreendimento. Porém, é preciso dizer que interessa a todos nós saber o teor do laudo dos estudos sobre os impactos ambientais na área devastada pela estrada. Também interessa-nos conhecer o teor da licença ambiental concedida pelos órgãos responsáveis por tais licenciamentos. Os atos da gestão pública precisam ser divulgados para terem a devida legalidade: “registre-se, publique-se, cumpra-se” são os ditames legais obrigatórios para tudo o que tem a ver com a gestão da coisa pública.
Mais que isso, a comunidade universitária e a sociedade local precisam ser informadas sobre as razões que justificam a parceria firmada pela administração – em nome de todos nós – com empresas que têm como única finalidade a conquista dos mercados, a expansão de seus negócios e empreendimentos e a draconiana mercantilização de serviços essenciais para a população, de um modo em geral, como é o caso do fornecimento de energia elétrica. Uma concessão de tamanha envergadura a consórcios de grupos econômicos nacionais e internacionais geram graves consequências para a autonomia e para as finalidades últimas da universidade, sobre as quais compete ao Conselho Universitário dar a última palavra: o ensino, a pesquisa e a extensão.
As agências de notícias, jornais e a própria assessoria de imprensa da universidade divulgaram, em febril estado de congraçamento e júbilo, a construção do “centro de excelência” para o qual serão destinados recursos na ordem de “36 milhões de reais em estrutura física e aquisição de equipamentos”, somente na primeira fase de implantação. Sendo previstos outros “10 milhões de dólares, captados junto a agências internacionais para formação de recursos humanos”. Tudo isso numa universidade que vive graves colapsos com a falta de professores e técnicos administrativos, laboratórios, acervos bibliográficos, publicação e circulação de resultados de pesquisas e projetos/programas de extensão, condições de permanência dos estudantes na instituição e a total precariedade das estruturas físicas que abrigam os cursos de graduação e pós-graduação existentes.
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No tocante a autonomia o que se anuncia publicamente é algo por demais preocupante, especialmente, porque o “centro de excelência” será gerenciado por uma “Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip)”, tendo à frente um “conselho deliberativo composto por nove pessoas indicadas pela Eletrobras, Ufac e empresas ou consórcios associados”, tais como: “Energia Sustentável do Brasil, Santo Antônio Energia, Interligação Elétrica do Madeira e Norte Brasil Transmissora de Energia e as empresas Alstom, Siemens, Voith Hydro, Impsa e Andritz Hydro”. Esse “estranho” conselho é quem vai deliberar não apenas sobre os investimentos para a geração e transmissão de energia, mas, também, sobre “qualificação de mão-de-obra especializada, capacitação de profissionais em engenharia e tecnologia da informação em níveis de graduação, mestrado e doutorado”. Tudo isso, “naturalmente” em um “centro de excelência” abrigado no interior do campus da Universidade Federal do Acre e sob os generosos auspícios de sua atual administração.
Envaidecidos com o “grandioso futuro” desse centro, seus signatários anunciam o “boom” da nova frente de desenvolvimento regional: a da energia elétrica, com o aproveitamento dos “recursos hidráulicos”, “recursos florestais”, potencializando os “recursos humanos”, ampliando a circulação dos “recursos de capitais”, entre outros adjetivos do mundo do mercado que, sob o invólucro da “sustentabilidade e do uso de recursos dentro dos preceitos de conservação ambiental”, evidenciam a razão cínica que nos anuncia o “avançar mais” dos “novos tempos” de “progresso”, “desenvolvimento” e “bem estar para a Amazônia”. Razão essa, cunhada pelos fascistas da ditadura militar e perpetuada nos dias de hoje por seus herdeiros e viúvas.
Por fim, encerro fazendo minhas as palavras e interrogações de Luis Novoa, ao saber do lançamento do “Centro de Excelência em Energia do Acre: que papel público pode ter esse “cavalo de tróia”? Essa “cabeça de ponte”? O que justifica concessões dessa natureza por parte da reitoria de uma Instituição Pública de Ensino Superior?
Gerson Rodrigues de Albuquerque é doutor em História e professor vinculado ao Centro de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre
Fotos: Altino Machado
Atualização às 12 horas: o procurador da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes disse ao blog que o Ministério Público Federal vai apurar a denúncia.
6 comentários:
O compartilhamento do seu blog com os leitores é uma obrigação, Altino; uma leitura vertical das suas postagens permite avaliar a intensidade do seu comprometimento ético com a a nossa região. O registro dos desmandos destruidores, a acolhida dos textos pugentes em defesa da Amazônia, além da amostra das peculiaridades locais fazem da página uma leitura obrigatória.
Receba o meu abraço, cumprimentos e a certeza da leitura regular.
A excelência tem pressa...
Vai entender esse povo.
Pergunto-me diariamente se o acre precisa ser essa excelência em energia se outros temas tem urgência em receber tal nomenclatura, como é o caso da saúde. Em todo caso a reitoria enche o peito para dizer que o projeto eé magnífico entre outros adjetivos, mas lembro muito bem quando ela falou a mesma coisa do curso de nutrição, esse projeto pode cair no esquecimento dela, como, ela disse que não sabia que a universidade estava com falta de professores. Outro questionamento é, vale tudo para esse tal desenvolvimento? não é necessário preparar uma base para depois agregar degraus?
Registro perplexidade ao constatar o avanço dessas forças nos últimos 40 anos, em que pese a importância do estrago e atuação dos mediadores estabelecidos, patinando na visão quinhentista de exploração e desenvolvimento¨EXCElênCIA em ENERgia na UfAC¨ Soa como cidadela capturada pelo inimigo, nesses tempos de batalha pele preservação da Amazônia.
Mais um status necessitatis em ação na Amazônia ambientalida,,, tornar lícito o ílicito é a bola da vez...
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