quarta-feira, 9 de junho de 2010

VOLTEI CHEIO DE HISTÓRIAS

Lysias Ênio de Oliveira

O telefone tocou. Atendi.

– Aí, professor - Era o mano João Donato.

– Diga lá major.

– Vamos pro Acre?

A idéia foi ótima. Queria mesmo sumir do passo e da pressa, dos raios, das retas, dos marcos, das metas e das setas indicando contramão. Precisava esquecer o assunto e a explicação. Andar no meio do mato, pés descalços, beira do rio, um pito pra espantar os mosquitos, uma pinga pra molhar a goela e enxugar as mágoas, soltar a palavra, contar vantagem, tomar coragem e berrar pro silêncio um palavrão daqueles que a gente cospe feito quando engole mosca, medida do meu índice de inteligência, grau de cultura e aptidão, além de tradução literal da minha saúde psicológica.

Logo já estava de prontidão esperando pelo pássaro de ferro. Mochila às costas, se bem que aparentemente vazia, pensava, vai voltar cheia de tucupi congelado, doce de cupuaçu, castanha, arco, flecha e rede caxinauá e, se der, um pirarucu inteiro, daqueles que pra comer tem que vestir a casaca. Como excesso de bagagem, documentos, anotações de pesquisa que pretendia realizar em arquivos acrianos (vôte!), pra saber um pouco mais do meu avô e do seu papel na conquista do Acre. Um soldado da borracha.

Certo dia de agosto ou dezembro, não me lembro o ano, chegou por aqueles recantos meu avô cearense, náufrago dos sete mares do agreste. Fugindo da fome ou da seca, bem pensado dá na mesma. Tentando escapar das duas ou da polícia, segundo ouvidos de memória que se avivam na lembrança. Não sei o que o levou a dar com os burros n’água onde Judas perdeu as botas. Tierras non descubiertas por Deus, mas por todo mundo, portanto, até prova em contrário, de ninguém, principalmente depois da confusão em capítulos espanhóis escritos por Pizarro e Almagro.

Enquanto Peru e Bolívia reclamavam o direito real exibindo papéis e velhos tratados, documentos amarelecidos retitrados do fundo dos baús e de séculos passados, os americanos, bandeirantes dos limites indefinidos, seguiam as pegadas deixadas pelos caballeros em fuga. No estilo faroeste, alcançam Sierra Madre e descobrem ouro, descem o rio Bravo e encontram prata, sempre na direção do Golfo do México, com a winchester na mão, até as Antilhas. Tomam terras, modificam leis a fim de legitimar seus títulos e propriedades.

Daí para botar um pé na Amazônia foi um pulo. A doutrina Monroe, com todas as luzes e câmeras em ação. A América para os americanos. Com esta filosofia desfecharam uma ofensiva de intercâmbio comercial, encobrindo o objetivo de meter o bedelho no entrevero peru-boliviano, que já ia pelas quintas. Criaram o Bolivian Syndicate, que lhes concedia de papel passado o direito de exercer a função de polícia nos rios amazônicos. Arregimentaram forças terrestres, equiparam navios de guerra, intitularam-se defensores dos rios de água doce, mais férteis do mundo.

Do lado brasileiro, o silêncio era sabedoria. Boca fechada para não entrar mosquito. Eram levas e mais levas de visonários, degredados pela fome que torna indômita e efêmera a coragem. Vinham dos confins do mundo, desagregados e desnudos, uma combinação de todos os traços, jagunços, tabaréus, mercenários, debandados de Canudos, em busca do El Dorado. Sem protocolo, foram chegando e se apossando do sudeste amazônico, além fronteiras. Ocupam afluentes. Purus, Juruá, Iacó, Iquiri, Tarauacá. Exploram nascentes. Então se viram distantes, diante de um dos mais imponentes banquetes que acidenta a Natureza. O Paraiso no Inferno Verde.

Bom, era isso o que eu tinha em mente – sentar a bunda numa biblioteca e cutucar histórias, mas deu tudo errado. Saí de Rrecife, com escala em Belo Horizonte, pra me juntar a troupe em Brasília. Na conexão, cadê meus irmãos? João tinha perdido o embarque no Rio de Janeiro por razões que ele não sabia e, como tal, não aceitas pelo funcionário da companhia aérea, que também não levou em conta as figuras e artifícios de retórica da Eneyda, dignas de Virgilio.

No aeroporto Plácido de Castro, a figura presidencial do Juscelino esperava pelo Afonso. Eu e Tetê pegamos a carona até o Hotel Guapinguaia, centro, onde era a casa de meus pais, bem em frente à praça do herói. Chegamos a tempo de tomar o tacacá das 5, na Dora. Depois foi descer o rio na correnteza. Uma correria só: usina, filmagens, almoços, TV, Kennedy, Carlos, Karla, Jorge, Tião, Altino. E não deu tempo de trazer nada do que eu queria. Em compensação o matulão voltou cheio de histórias pra contar no livro.

Lysias Ênio de Oliveira é poeta

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