quinta-feira, 31 de agosto de 2006

GEOGLIFOS PRA BOI PASTAR

Elson Martins

Há cerca de 20 anos, o paleontólogo Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre, clama num imenso deserto onde reina a ignorância e o descaso com as coisas da ciência que podem ajudar a entender e valorizar a Amazônia. Com uma mochila no ombro e alguns cadernos de anotações, ele tem saído pelas cabeceiras dos rios acreanos e penetrado algumas matas onde já encontrou fósseis que podem ter mais de 12 mil anos de existência. Por sugestão sua, a Ufac institucionalizou a pesquisa paleontológica e guarda hoje expressiva coleção de Crocodylia, na qual se encontra um crânio de Purussaurus, reconhecido como o maior jacaré do mundo. A coleção tem também fósseis de tartarugas descomunais e da preguiça gigante que o cientista americano e pesquisador do Museu Goeldi, David Oren, diz ser o nosso lendário "mapinguary", com cerca de três toneladas de peso. Atualmente, Ranzi se empenha em desvendar o mistério dos geoglifos que encontrou em 1977 em algumas fazendas próximas de Rio Branco.

Alceu lançou em 2000 o livro "Paleoecologia da Amazônia", em co-edição das universidades de Santa Catarina e do Acre, onde procura chamar atenção para a fauna pleistocênica (não encontrei a tradução disso aí nem no Aurélio) da Amazônia sul-ocidental. Há poucos dias ele apareceu com um segundo livro, publicado na Finlândia: "Western Amazônia", em parceria com os cientistas Martti Pärssinen e Antti Korpisaari, que valorizam seu trabalho e querem ampliar as pesquisas no Estado. Nesta segunda obra, o destaque é para os geoglifos que o paleontólogo catarinense-acreano descobriu quando viajava num Boeing no trecho Porto Velho-Rio Branco. Ao sobrevoar algumas fazendas próximas da capital, ele viu enormes figuras geométricas desenhadas nos pastos e ficou apressado em encontrar uma explicação. Convenceu o Governo do Estado a financiar duas horas de vôo sobre a região, em avião pequeno, e com a despesa de cinco mil reais colocou o Acre entre as regiões mais importantes do mundo em ternos de ocorrência desses registros.

Na semana passada, Ranzi foi convidado por um grupo de 15 pessoas (entre jornalistas, advogados, professores, funcionários públicos ligados ao turismo, entre outros) para explicar a importância dos geoglifos. Embora este seja um assunto dos arqueólogos, ele o descreveu com a propriedade de um especialista. E assim vai abrindo caminho na mídia para ver se surge alguma alma interessada em ampliar a pesquisa que iniciou por conta própria. A repercussão de sua descoberta tem sido maior nos Estados Unidos e na Finlândia, mas aqui no Brasil o programa "Fantástico", da TV Globo, registrou as primeiras imagens dos geoglifos na televisão em julho do ano passado. O apresentador descreveu o que viu:

— Em uma hora de sobrevôo, foi possível visualizar 17 formas diferentes, mas existem cerca de 50. São círculos, quadrados, quadrados com círculos internos, e até octógono, uma figura com oito faces iguais. A possibilidade de serem estruturas naturais, como fendas ou ondulações, está descartada devido a incrível precisão dos símbolos. Um dos maiores geoglifos encontrados é um retângulo perfeito. A figura tem 150 metros de comprimento, 10 metros de largura e 6 metros de profundidade.

Quando se refere à evolução da Amazônia, o paleontólogo assume a versão de que a América do Sul se despregou da África há 80 milhões de anos e na separação formou-se a Cordilheira dos Andes. Como sinais dessa erupção da terra, ele cita que na Serra do Moa, região pré-andina do Acre, foram encontrados dentes de tubarão e que nas arraias amazônicas vivem parasitas que são os mesmos das arraias do Oceano Pacífico. "Temos muitos fósseis de peixe de água salgada no Acre", diz. Ele argumenta que com a elevação da Cordilheira, que separa o Oceano Pacífico da Amazônia brasileira, esta nossa região viveu um bom tempo inundada e somente há 11 milhões de anos cresceu a floresta. Antes desta crescer, teriam existido populações antigas que - a ciência pode comprovar - construíram os geoglifos encontrados.

A versão leiga, entretanto mais corrente por aqui, de que os geoglifos seriam trincheiras erguidas no começo do século pelos exércitos de Plácido de Castro e da Bolívia na disputa das terras acreanas, é descartada pelo pesquisador. Até porque as formas geométricas são perfeitas, o que é impossível imaginar que tenham sido construídas numa imensa e irregular floresta tropical com árvores de troncos com mais de dois metros de diâmetro. Afinal, os geoglifos só apareceram com os desmatamentos feitos no Acre nas décadas de setenta e oitenta. Os fazendeiros que os encontraram ficaram curiosos num primeiro momento; depois, procuraram escondê-los para não chamar a atenção dos cientistas e da mídia para sua propriedade. Alguns parecem ter recorrido ao seguinte e criminoso artifício: encheram d'água para que pareçam açude para criação de peixe.

Na opinião de Alceu Ranzi, eles ganhariam muito se transformassem os geoglifos numa atração turística como a que existe na região de Talca, no Peru, que ocupa uma planície no deserto de Palpa há 400 quilômetros de Lima. Lá, os turistas fazem fila e pagam 50 dólares por um sobrevôo de meia hora para ver os desenhos gigantes na forma de animais (aranha, macaco, beija-flor). Os desenhos são tão grandes que só podem ser vistos de uma altitude de mais de 300 metros. Sobre os geoglifos do Acre, Alceu faz muitas perguntas ao mundo científico: uma delas, "se há algum simbolismo estético, religioso, espiritual, teológico, climático, astronômico ou bélico que justifique sua construção pelos nossos ancestrais amazônicos"?

Elson Martins é jornalista acreano. O artigo foi publicado originalmente no jornal Folha do Amapá, em novembro de 2003.

Nenhum comentário: