quinta-feira, 10 de agosto de 2006

ESTRANGEIRO ENTRE ASPAS

Elson Martins

O governador Jorge Viana empregou a palavra “estrangeiro” (isso mesmo, com aspas) domingo à noite, pelo menos três vezes durante a inauguração do novo Mercado Velho. Ele falou emocionado para cerca de três mil pessoas que o aplaudiram muito. A multidão, sentada ou de pé diante de um palco onde foi apresentada, no final, a ópera “Aquiry”, do maestro acreano Mário Brasil, parecia feliz com a reconstrução do mercado e a revitalização da rua Epaminondas Jácome.

Construído em 1929, por Hugo Carneiro, o Mercado do Rio Branco (nome original) foi a primeira grande obra de engenharia da cidade. Bela e imponente para a época e, como se vê após a reconstrução, para os dias de hoje. Mas não foi cuidada pelos governantes e nos últimos 50 anos transformara-se em um ambiente feio, sujo e perigoso. Virou o patinho feio da capital.

É preciso reconhecer que o que o manteve de pé (embora entre escombros) após 77 anos de sucessivos descasos da administração pública foi sua rica história e a identidade dos que o ocuparam resistindo com uma cultura tratada a pão e água. Na chegada dos anos 2000, o velho Mercado era um amontoado de coisas e gente ignoradas, porém um nicho de resistente acreanidade. Algo em ruínas que, entretanto, sobreviveu nas vielas de lata e amianto, nos bregueços que indicam serventia na floresta, nas armadilhas de caça e no tabaco migado.

Em 2005 o governo começou a obra de recuperação do espaço e foi um Deus nos acuda. Muitos, no começo, se sentiram ameaçados achando que o que viria de bom não seria para seu bico. Alguns se apressaram em fazer acordo e se acomodar em outra freguesia. Eu mesmo ouvi queixas e escrevi algo me solidarizando com eles. Temia que a alma daquele lugar fosse para o purgatório.

Aos poucos, percebi que a reforma tinha objetivo mais sensato, ou pelo menos era de um enorme interesse coletivo. De fato, não a restauração propriamente dita do mercado, mas a limpeza e embelezamento de seu entorno, incluindo as lojas da rua da frente (Epamonindas Jácome) e de trás (praticamente desmanchada pelas enchentes do rio Acre) criavam a nova atração da cidade, algo do que se orgulhar.

Foi o que se viu na noite de domingo: uma festa acreana por excelência, ainda que alguns emperiquitados quisessem dar “aquele” toque de colonizador, já identificado aqui e ali no olhar, na soberba, no zelo cerimonial... Prevaleceu, porém, a delicadeza e singeleza dos que amam sua terra e querem que prevaleça o sentimento de dignidade e florestania nas ações públicas.

Não se trata, pois, de resgatar a “belle époque” da borracha que privilegiava somente às elites, mas de dar valor ao que foi construído pelo povo apesar delas. Ou seja: uma identidade forte, uma cultura original, um espírito solidário moldado pelo homem colonizado que reinventou sua cultura para sobreviver.

E aí está o novo Mercado Velho com seus pioneiros e originais habitantes, um espaço bonito com jeito de shopping (arre!) aberto, popular, limpo, colorido, com o sabor e o cheiro de nossa culinária, com a quinquilharia que nos alegra a alma. Coisas que exprimem durabilidade, resistência, enfim, raça forte.

É preciso ser “estrangeiro” para não perceber e valorizar isso. Ou perceber mas misturar, tendenciosamente, com interesses políticos e pessoais virando as costas para o deslumbramento. É preciso ser “estrangeiro” para não cantar o Hino Acreano na beira do rio Acre depois de ouvir a ópera do nosso almático maestro Mário Brasil, menino sambudo da rua do Ipase que virou doutor em música com 6 anos de especialização em percussão no Japão.

“Estrangeiro”, portanto, não é propriamente o que chega, mas o que insiste em dominar com chiste de mau gosto. Tem o que nem chega porque nunca saiu: nasceu e se criou no Acre, mas não sente as dores do colonizado. Como ensina o jornalista, escritor e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto: “O colonizado que imita o colonizador: pensa, fala, age com a cabeça do colonizador” sem se dar conta disso.

Elson Martins é jornalista acreano, colaborador do blog. Na foto acima, de Daniel de Andrade, "seu" Silvino Filgueira mede tabaco.

2 comentários:

Anônimo disse...

Tenho um grande apreço pela história do Acre e do seu povo. Depois que descobri seu blog não deixo de passar por ele sempre que venho blogar.
No Aurélio que tenho no meu micro não consta a palavra FLORESTANIA. É cunhada por você? O que significa?
Só encontrei:
florestano1
Adj. 2 g.
1. De, ou pertencente ou relativo a Floresta (PE).
S. m.
2. O natural ou habitante de Floresta.

florestano2
Adj.
S. m.
1. Florestense1.

abraços.

Elifas Araujo-fjelifas@hotmail.com

Anônimo disse...

Elson, eu que sempre reivindiquei sua volta para o Amapá, começo a compreender sua permanência no Acre. Fique mesmo por aí, meu amigo, que sua terra é fogo que arde em coração sensível. A nossa, de cá, tem tudo pra ser, mas ainda vai levar um estirão pra se livrar das cabeças de ovo choco que a dominam. Beijos para você e para suas lindas mulheres, as amapaenses emprestadas para o Acre e as acreanas.