sexta-feira, 9 de setembro de 2005

SOBRE NOSSOS DIAS

Altino,

eis alguns comentários sobre nossos dias:

Estamos estarrecidos diante dos efeitos do furação que devastou uma ampla região dos Estado Unidos. A cidade de Nova Orleans é a imagem mais visível dos resultados da fúria natural.

Assombram a Casa Branca a contagem de mortos que, tudo indica, atingirá a marca de milhares de vidas ceifadas, ao lado da destruição de centenas de milhares de empregos.


Em muito do que li na net - listas, endereços de notícias, blogs etc. - existe o espanto que atinge a todos. Como poderia o governo estadunidense ter deixado tantos cidadãos à mercê de uma catástrofe anunciada por tantos dias? E as pesquisas de opinião falam de níveis muito baixos de aprovação das ações do governo.

Entretanto, se tomarmos a posição do governo naquilo que fez nos dias anteriores à chegada do furação, simplesmente identificaremos as questões de princípio que predominam nas posições de governo desde Ronald Reagan. Prevalecem nas ações de governo o princípio do livre mercado.

Segundo Adam Smith, de quem os liberais tomam questões de princípio, agindo em nome dos seus interesses, os indivíduos farão prevalecer o melhor para o bem-estar geral. Assim agiu Bush e seus assessores: todos foram avisados e caberia a cada um e por seus próprios meios buscar locais seguros.


O que saiu errado? Todos os milhares de pessoas não ficaram por escolha própria, como preconizado pelas teorias do livre mercado e nem como esperado pelas ações do Estado Liberal. Quem ficou nem contava com veículos motorizados nem saldos em caixa que custeasse suas viagens. Ficaram negros e alguns brancos pobres.

Os liberais estadunidenses esqueceram que deve-se contar, como um efeito da operação do mercado, a exclusão da fruição de bens e serviços de pessoas que não possuam renda. Esses pobres - a maioria negros - estão sujeitos a empregos miseráveis, salários de fome (por vezes mais de um emprego), a altos preços e aluguéis estratosféricos.

Agora Bush corre atrás do prejuízo, tentando recuperar o que acha que perdeu: a popularidade conseguida pela guerra que criou no Oriente Médio, segundo ele, para implantar aquilo que entende como a "democracia estadunidense".

Ao resto do mundo vem impondo a forma de Estado compatível com os princípios do livre mercado: reestruturação da base produtiva, abertura dos mercados nacionais, livre mobilidade de capitais, flexibilização dos mercados de trabalho e por ai vai.


Os governos no Brasil - principalmente FHC e Lula - são discípulos aplicados dessa visão de sociedade que orienta a ação do governo estadunidense, desde Reagan até Busch.

Quando encontrarem alguém vivendo nas ruas, saibam que é uma atitude apoiada pela escolha individual.


Mário Lima

Nota do blogueiro: o acreano Mário Lima é professor de economia na PUC de São Paulo.

3 comentários:

Anônimo disse...

Concordo, com reservas, com o professor. O individualismo é um dos traços psíquicos marcantes das sociedades pós-modernas. No entanto, esse traço deve o seu sucesso, ou parte dele, à falta do que os psiquiatras chamam de mecanismos de sublimação social (a autoridade paterna, os preconceitos, os regimes políticos de exceção etc). No passado, tais restrições criaram, pela via da sublimação, o ambiente da resistência coletiva, e, portanto, alguns receituários alternativos para a vida em sociedade. Daí surgiram as propostas (populares, não acadêmicas) de socialismo, comunismo, anarquismo, enfim, toda uma contracultura, que ofereceu caminhos à política propostas opostas ao capitalismo individualista. Infelizmente, as experiências fracassadas de comunismo, o macarthismo, a globalização com suas injeções maciças e bilionárias de propaganda "elegeram" este regime como o ideal para o planeta. Já na década de 80 percebia-se que não era bem assim, mas a sociedade, infelizmente, já se calara. Hoje, não há mais sublimação porque não há o que ser sublimado. Portanto, não há resistência nem novas propostas. O individualismo, base do capitalismo, tornou o homem pós-moderno introspectivo, perseguidor de gloríolas, amante do luxo e dependente de um ego doentio. Disto surge o abismo entre as classes sociais e a causa da infelicidade pessoal (em essência, ainda somos primatas que precisam viver em coletividade). Eis a minha reserva, Altino: cabe, e sempre coube aos governos, restringir as possibilidades de escolha do cidadão. É o superego coletivo. No entanto, o próprio cidadão se desorganizou, deixou-se afogar no pântano da auto-idolatria e não consegue mais reagir - salvo raras e esparsas exceções.

Anônimo disse...

Por favor, leiam a última frase da minha mensagem com toda a carga de "ironia declarada". Para os defensores do livre mercado a idéia do desemprego é, exatamente, o resultado de uma escola pessoal(essa explicação atende uma mensagem que me foi endereçada diretamente). Pelo que me foi possível entender do comentário, Josafá, em verdade, oferece uma explicação para o individualismo. Tenho discordâncias quanto a essas explicações de base psicológicas, mas a explicação oferece um ponto fundamental com o qual concordo: trata-se de uma situação historicamente datada. Isso já é muito, nesses termpos onde se considera "o fim da história".

Anônimo disse...

Tratamos de uma dialogia, professor. O fenômeno do liberalismo, e de seu sucesso enquanto proposta de organização coletiva, não pode ser explicado apenas individualmente, como fiz, ou apenas coletivamente, como o senhor fez. Mesmo nas sociedades tribais, por exemplo, a economia, a política e a história são explicadas pelas cosmovisões de mundo que têm seus líderes, por um lado, e pela aceitação de cada indivíduo, por outro. Quando essas percepções se opõem, os liderados, que têm menor poder, resistem sublimando suas necessidades e aptidões. É desta sublimação, como disse, que nasceu a contracultura. Nos anos 60, havia dezenas de propostas alternativas de política, economia e sociedade, criadas exatamente pela pressão autoritária dos governos (e algumas vezes da própria sociedade). Estas propostas morreram por dois motivos - e aqui entra o que chamo de dialogia: a primeira é que o fracasso da URSS, o nascimento de grandes corporações globais, a corrida armamentista e o turbulento Consenso de Washington cunharam a expressão american way of life no imaginário coletivo, minando os focos de resistência com uma negociação lenta "em nome do bem-estar comum" - algo muito parecido com o que Bush prometeu aos iraquianos. A segunda é que os indivíduos simplesmente não "sublimam mais". Com a derrota das ditaduras sul-americanas, a invenção da TV, o "aumento da competitividade no mercado de trabalho" (adoro esta expressão) as pessoas passaram a introjetar-se em seu mundinho, em suas necessidades pessoais, em seu individualismo. Não há o que ser sublimado, portanto, não há mais propostas alternativas de poder. E tome liberalismo! Os governos sabem disso. Nossa pós-modernidade apressa-se em oferecer o bem-estar pessoal, o gozo, o carpe diem, o deixa rolar a festa...rs. Ora, é a fome com a vontade de comer. Se o mundo pós-moderno ofereceu poder e liberdade, o cidadão pós-moderno embarcou na onda. E a utopia morreu. Só não acho que seja o "fim da história", como pregam os vassalos do deus cristão. Acredito que se trate de mais um ciclo socioeconômico. Como aconteceu do Mercantilismo para o Capitalismo. A economia está mudando. A sociedade também. O que virá depois eu não sei, mas certamente não será o fim.