domingo, 22 de maio de 2005

GOVERNO SOB PRESSÃO


Administração Lula não apresenta propostas "aglutinadoras" e é incapaz de pensar no longo prazo, afirma senador petista Cristovam Buarque

"Planalto sem projeto vende a alma pelo poder"

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE OPINIÃO

Para o senador Cristovam Buarque (PT-DF), o PT perdeu sua marca e o governo está vendendo a alma em troca do "poder pelo poder". Sem capacidade de apresentar projetos "aglutinadores", a administração petista preenche o vazio com uma idéia de coordenação política baseada na "compra de voto". Preocupado com o marketing e com a reeleição, o governo é incapaz de pensar no longo prazo. Os sonhos foram abandonados e o descrédito da população em relação à classe política e ao Estado aumenta. Como ocorreu na Argentina e em outros países latino-americanos, também no Brasil pode crescer o sentimento de rejeição expresso pelo slogan "qué se vayan todos!".
Ex-governador do Distrito Federal e ex-ministro da Educação do governo Lula, o senador acredita que a oposição do governo a uma CPI para investigar o escândalo dos Correios contribui ainda mais para erodir sua credibilidade. "Não estamos passando a confiança para o povo de que o nosso governo e os nossos políticos são de fato honestos", diz ele na entrevista que se segue.


Folha - Por que o governo tem encontrado tanta dificuldade na coordenação política?
Cristovam Buarque - Eu acho que é por que o problema não está na coordenação. Está numa coisa mais profunda, que é a incapacidade do governo de aglutinar. Se você não aglutina você não coordena, você compra votos.

Folha - E por que o governo não consegue aglutinar?
Buarque - Por que não definiu objetivos concretos, metas de mudanças do país que permitam trazer pessoas que queiram apoiá-las. Juscelino aglutinou em torno da industrialização, de Brasília, da infra-estrutura. O nosso governo não tem projetos aglutinadores.

Folha - Essa falta de projeto não vem desde o início do governo?
Buarque - Vem desde o início. Nunca houve projetos claros, a não ser alguns formulados por ministérios. Mas aquele projeto que sai da alma do líder Luiz Inácio Lula da Silva nós não vimos ainda. O governo ficou preocupado apenas com a opinião pública, com o marketing, com o imediato, com o presente.

Folha - Ou seja, com a reeleição.
Buarque - A reeleição está atrapalhando, como atrapalhou o Fernando Henrique Cardoso. Pensa-se na próxima eleição e não na próxima geração. O Lula disse que não quer vender a alma. Só que tem uma coisa pior do que vender a alma: é vendê-la sem ser em torno de um projeto de nação.

Folha - A impressão que se tem, na realidade, é que o grande projeto do governo é ficar no poder.
Buarque - Tudo dá essa impressão. Nos textos literários, a alma é vendida em nome de alguma coisa, o problema é que hoje está sendo vendida em nome de nada, só do poder pelo poder. Você não deve vender a alma, mas você pode fazer alianças para retomar radicalmente o crescimento ou para dar um salto na educação, na saúde, na luta contra a pobreza.
Como é o Brasil que desejamos no futuro? O que a gente sabe hoje é que o Lula deseja crescimento com estabilidade, que o país seja um grande exportador e que todo mundo coma três vezes ao dia. Mas é pouco. Crescimento econômico apenas, mesmo a taxas elevadas, o que não vai acontecer, não mudará o Brasil. O que vai mudar o Brasil é o uso eficiente e bem direcionado dos recursos.

Folha - Hoje, o grande capital político do governo é a capacidade de comunicação do presidente e alguns resultados na economia. Se vier a reeleição, não há risco de essa paralisia política continuar?
Buarque - O segundo mandato tende sempre a ser pior do que o primeiro. Mas poderia mudar se o presidente fizesse duas coisas: usasse sua capacidade de comunicação e liderança para transformar o país e convidasse a oposição para discutir propostas de Orçamento e de políticas capazes de promover mudanças. Em 2003, quando o Lula levou para o Congresso as propostas de reforma Tributária e da Previdência, eu estava junto e disse: presidente, faltou a terceira reforma, necessária ética e politicamente, que é a social. Essa reforma não veio. O Lula vem usando a liderança dele para vender o projeto de FHC.

Folha - Por que o PT não conseguiu nem formular nem implementar as mudanças que prometeu?
Buarque - É um problema de mentalidade. Eu não vou dizer de ideologia porque seria um salto de qualidade. O PT é um partido dos trabalhadores do setor moderno. Não é ainda o partido do povo, dos excluídos. É um partido que acredita que o Brasil muda através de mais indústrias, mais exportações, empregos e melhores salários. É um partido que ainda está prisioneiro de reivindicações corporativas. Não é um partido de proposições nacionais.

Folha - Mas o PT conseguiu se apresentar nas eleições como portador de um projeto nacional, não?
Buarque - Sim, mas era uma soma. Uma soma dos interesses de corporações: o PT aumentaria o salário do funcionário público, criaria dez milhões de empregos, etc. Mas os sonhos de que o partido era portador, embora viáveis, não foram levados a sério. O nosso governo está criando uma dívida muito grande com aqueles que sonhavam, especialmente com os jovens. E hoje virou uma geléia geral. Não há mais diferença entre os partidos. Não há razões específicas para votar no PT.

Folha - O PT perdeu a marca?
Buarque - Perdemos uma imensa parte da nossa marca e isso é trágico para o Brasil. Essa crise está fazendo o povo ficar impaciente com todos os políticos. Na Argentina e agora no Equador e na Bolívia temos visto o mesmo slogan: "qué se vayan todos!". E isso é perigoso, porque contamina todo o Estado.

Folha - O sr. ainda crê numa futura aproximação do PT com o PSDB?
Buarque - Eu continuo achando que o PT e o PSDB só não estão juntos porque são liderados a partir de São Paulo e disputam o mesmo espaço eleitoral. Eu digo que essa aliança é necessária para que o Brasil se renove, mas é impossível. Para que fosse viável seria preciso mais estadismo e menos eleitoralismo.

Folha - E a política parece estar cada vez mais focada na questão eleitoral e não em projetos.
Buarque - Exatamente. Criamos uma classe política que age não com base nos seus sonhos e propostas, mas com base em pesquisa de opinião pública. Os políticos dão prioridade ao marketing e não à verdade. Esse é o grande problema. E isso está gerando uma crise de credibilidade séria. Precisamos discutir a taxa de juros, mas precisamos elevar a nossa taxa de credibilidade. E de onde vem o descrédito? No que se refere ao governo, vem do fato de que não estamos nem cumprindo os compromissos de campanha, nem explicando convincentemente por que não os cumprimos. Não estamos fazendo as reformas sociais que o Brasil precisa e não estamos passando a confiança para o povo de que o nosso governo e os nossos políticos são de fato honestos. Eu não estou dizendo que não somos, mas não estamos passando essa imagem. Para mim, o mais grave de não apoiar a CPI do caso dos Correios é isso. Finalmente, o que dá credibilidade ao governo é a economia. Posso não gostar dessa política, mas não vejo outra. Só que ela não é mérito nosso.

Folha - Ou seja, naquilo que seria próprio do PT, o governo fracassa?
Buarque - Sim. E o mais grave é que não parece ser uma coisa circunstancial, mas intrínseca à alma do governo.

Folha - O sr. acredita que trocar Aldo Rebelo por José Dirceu iria mudar alguma coisa?
Buarque
- Eu acho que se trocar vai ser pior, porque o José Dirceu não tem bom diálogo. Pelo que eu ouço no Senado, de pessoas em posições muito altas, é que essa troca poderia até quebrar o diálogo. Mas o fundamental não é esse ou aquele nome, mas a falta de projeto. A gente veio para para dar assistência aos mais pobres, para administrar a economia com eficiência, para fazer uma política externa menos dependente, mas veio também para dobrar uma esquina, acenar noutra direção, construir um ciclo novo na história do Brasil. O Lula tinha que ser o primeiro presidente de um novo ciclo. Tinha que ser, mas não está sendo.


Folha - Até que ponto as divergências entre o PT e o governo prejudicam?
Buarque
- O PT é para ser permanente, o governo é outra coisa. Foi por isso que eu defendi sempre que o PT deve que fazer parte do governo, mas entender que o governo é de coalizão. Mas essa coalizão tem que ter um objetivo. Não é só a coalizão em troca de cargos e de emendas de parlamentares. Quem entrar no governo pelo PTB tem que saber que está entrando para botar as crianças em boas escolas e para melhorar a distribuição da renda.


Folha - Mas muitos se queixam de que o governo não sabe se comportar como coalizão.
Buarque
- Realmente, o que explica certos erros é que a equipe que dirige o governo, incluindo o Lula, trata os partidos da base de apoio como o presidente do PT trata as tendências do PT. O grande êxito e o grande mérito do Lula, que foi fazer esse partido crescer durante 20 anos, estiveram ligados ao fato de ele se comportar como o centro de uma esfera. O Lula nunca foi um líder de se colocar na frente do PT. Ele ouvia e dizia o que o PT queria ouvir. Mas agora ele é o centro de uma reta que vai da direita à esquerda, o que não é a mesma coisa.


Folha - O sr. é a favor da política econômica, mas ao mesmo tempo parece ter consciência de seus limites. Não há nada a mudar?

Buarque - Eu defendo a política econômica do governo, mas acho que o PT tem obrigação de começar a pensar alternativas.


Folha - O sr. não acha que essa política já se esgotou?
Buarque
- Ela tende a se esgotar, mas hoje qualquer outra seria arriscada. É preciso, primeiro, construir intelectualmente uma alternativa. E isso não é tarefa do governo. O governo não é lugar de intelectual, é lugar de pessoas pragmáticas. É tarefa do partido.

Fonte: Folha de S. Paulo

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