POR LUIS FERNANDO NOVOA GARZON
O documentário “Entre a Cheia e o Vazio” é um recorte de uma batalha
de sentidos em torno dos efeitos de larga escala produzidos pelas Usinas
Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, o afluente mais
caudaloso do Amazonas. Batalha que se intensificou com a chamada “cheia
histórica” de 2014, ampliada pela retenção de água nos dois
reservatórios, e que prossegue nesse exato momento em que estudos
preliminares indicam que os elevados níveis de assoreamento do rio podem
resultar, em 2015, numa cheia de proporções similares, ainda que com
menor volume de precipitações.
As consequências do duplo barramento (e que pretende ser triplo com o
aproveitamento da Cachoeira de Ribeirão) de um rio com tamanha descarga
sólida, em períodos muito concentrados de tempo, só estão sendo
avaliadas a posteriori e muito limitadamente. Além de expropriarem o rio
e seus usos sociais, procuram expropriar a capacidade de percepção e
inteligibilidade do território recriado.
Leia mais:
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Dilma tergiversa sobre impactos das hidrelétricas no Rio Madeira
A região do Médio e Alto Madeira e seus tributários vai se
convertendo em um corredor de exportação (inter-regional a princípio) de
energia enquanto commodity; a gerar lotes de energia pré-negociados,
cotados no “mercado livre” de energia que norteia, ponta-cabeça, o
“mercado regulado” que deveria servir à nação. Nesse quadro de
privatização crescente de todos os setores de infraestrutura, as
concessões elétricas trazem embutidas cessões territoriais, para as
quais concorrem outros setores com uso intensivo de recursos naturais,
como a mineração e o agronegócio. Nesse reembaralhamento das posses e
das jurisdições, os desastres técnico-ambientais sempre serão
apresentados como “naturais” e “inevitáveis”.
Nosso documentário procura, nos 25 minutos em que foi concebido,
recolocar as polaridades e conflitos invisibilizados pelos Consórcios e
seus sócios nos governos, parlamento, judiciário e grande mídia. De um
lado, a construção da calamidade “sem culpados”; de outro, a
identificação de causas coadjuvantes e das consequências sociais muito
diferenciadas da “supercheia”.
Os vazios deliberados de informação, em que foram escoradas as
licenças e outorgas obtidas pelas concessionárias privadas (Suez e
Odebrecht) propiciaram um regime de operação totalmente imprevidente dos
reservatórios. Como fica comprovado no filme, a UHE Santo Antônio tinha
aumentado, com autorização da ANEEL, a cota de seu reservatório para
71,5 justamente nos primeiros meses de 2014, quando começaram a se
avolumar as precipitações nos formadores do Rio Madeira.
Pode-se notar, nas falas cruzadas dos gerentes das duas usinas, o
desconcerto deles elidindo ou transferindo “erros” de uma para outra. A
acoplagem dos depoimentos desses dirigentes que tiveram a vazão do rio
sob seu controle durante a cheia foi equivalente a uma acareação
recheada de atos falhos. Claro que, perante o MPF e especialistas
independentes, todos procuram atestar plena isenção sobre as ocorrências
e seus agravantes. Ao invés de uma postura de transparência e
socialização dos dados reais do cronograma de enchimento dos
reservatórios, o que deixaram transparecer foi uma postura
premeditadamente defensiva de quem teme investigações e novos estudos
que atestarão inaceitáveis margens de risco para a população e o meio
ambiente.
Vivemos em um ambiente de insegurança ambiental permanente e tudo o
que mais precisamos nesse momento é acesso à informação que vem sendo
omitida e censurada sobre as interrelações entre a cheia e os
reservatórios. O documentário expõe a necessidade de que as empresas e o
Ibama apresentem os estudos já feitos e os por serem feitos, e que
especialistas e cientistas – que não sejam nem consultores das empresas
nem funcionários do Governo – possam apresentar um parecer independente
sobre esses dados.
No mínimo, o que se exige é que os Consórcios comecem imediatamente a
reparar os danos amplificados pelos seus reservatórios, a começar pela
recuperação das casas e das comunidades ribeirinhas que pagaram um preço
muito alto para “fornecer energia para o Brasil”. Ao contrário disso, o
que vem ocorrendo é a destituição das últimas comunidades ribeirinhas e
bairros “beiradeiros” através da atuação “higienista” da Defesa Civil
nas três esferas de Governo.
A meta é unidirecional: evacuar todas as pessoas e comunidades das
agora chamadas “áreas de risco”, sem se preocupar com a criação de novas
áreas de risco, já que as causas não estão sendo consideradas. Enquanto
os fatores geradores de risco não forem levados em conta, Porto Velho e
toda a região do Madeira será uma indeterminada e extensa área de
risco, incluindo o Acre que tem situada nessa zona sua única via de
acesso terrestre ao conjunto do país, agora sujeita a “inundações
crônicas”.
A agonia do Rio Madeira e de todos os modos de vida nele imbricados
tornou-se cenário agora para uma política deliberada de silenciamento
sobre os variados desastres que se consumaram no projeto Complexo
Madeira. O pacto de silêncio se estende da Presidência, passando pelas
agências setoriais, pelo Judiciário, leal engavetador em segunda
instância, e chega até algumas grandes ONGs que assim revelam suas
conexões mais que diretas com o mundo corporativo.
O Secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, que chegou a
ser bombeiro no governo Lula, deu recente declaração incendiária sob
medida para ficar no posto no segundo mandato de Dilma. Disse que do
Complexo Hidrelétrico do Tapajós “não abrirão mão”. Por que precisaria,
ele, o "interlocutor do social" – do malfadado social-liberalismo –
abrir fogo contra o rio Tapajós e suas comunidades? O argumento usado
como justificativa explicita como esse Governo torna-se refém voluntário
dos conglomerados privados. O motivo para seguir com o projeto Tapajós
seria o de tornar o Estado (e a "cidadania", presume-se) mais presente
na região amazônica, falta essa que seria o grande "erro de Belo Monte".
Falemos claro, com os modelos de concessão para aproveitamento de
recursos naturais vigentes no país, e com o estiolamento do sistema de
licenciamento ambiental, todos sabemos que são os monopólios privados os
que se fazem presentes de fato. Talvez por isso não haja menção sobre o
fracasso e as incertezas cada vez mais certas quanto à viabilidade do
Complexo Madeira. Nem se cogita ocorrência de "falhas" ou uma remota
possibilidade do Estado ter "chegado antes das consequências das obras",
como se admite no caso de Belo Monte. E no caso do Madeira, o que fica? A depender dos promotores e legitimadores dessa interminável frente de
despossessão, só apagamento e amnésia. E não adianta supor compensações
do tipo uma monstruosidade ali, uma preservação acolá.
O que vemos, medimos e sentimos aqui é que o pior não tem chão ou
piso. O pior é uma queda livre que leva de roldão todos os limites de
tolerabilidade anteriores. Quanto maior o apagamento dos danos,
devastações e crimes perpetrados na implantação das usinas no Rio
Madeira, maior será a força autolegitimatória para impor licenciamentos
expressos do Complexo Tapajós, das UHEs Tabajara, Marabá, Santo Antônio
do Jari, São Manuel e dezenas de outros projetos hidrelétricos em toda a
Amazônia.
Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia
Ficha técnica e sinopse
Entre a cheia e o vazio: A cheia histórica do Rio Madeira em 2014 e seus nexos
Com as UHEs Santo Antônio e Jirau
Realização: Mapeamento Social como Instrumento de Gestão Territorial contra o Desmatamento e a Devastação – Núcleo Rondônia e
Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Apoio: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia – UEA.
Roteiro: Luis Fernando Novoa Garzon
Direção: Lou-Ann Kleppa
Fotografia: Carlos Fiengo, Rodrigo Rodriguez, João Marcos Dutra,
Eliaquim da Cunha, Paula Stolerman, Daniela Moreira, Inaê Level, Lou-Ann
Kleppa, Mario Venere, Altino Machado, funcionário da Transfish.
Duração: 25’38’’
Ano: 2014
Prêmio Lídio Sohn de Melhor Produção Rondoniense no FestCineAmazônia (2014)
O documentário é resultado de um esforço compartilhado de
pesquisadores para colocar em questão os nexos entre a cheia do rio
Madeira e os vazios relacionados à implementação e atividade das duas
usinas hidrelétricas instaladas no mais caudaloso afluente do rio
Amazonas. O ponto de partida do filme é a afirmação do diretor da UHE
Jirau de que “acreditar na relação entre a cheia e as usinas seria
crendice”. O empenho das usinas em ocultar as causas coadjuvantes dessa
catástrofe expõe as populações que vivem no entorno dos megaprojetos
hidrelétricos em Rondônia, Beni e Pando (Bolívia) a novos e ampliados
danos sociais e ambientais, além de colocar em risco de isolamento a
população do Acre, que tem sua única via de acesso por terra afetada
pelo atual regime de operação dos reservatórios das usinas. O consenso
propalado pelos empreendedores das obras de que “a cheia foi natural” é
desvelado por pesquisadores independentes e comunidades ribeirinhas
afetadas. Philip Fearnside, Edna Castro, Célio Bermann e Jorge Molina,
especialistas reconhecidos nacional e internacionalmente, deram
significativa contribuição nesta reconstrução de sentidos. Grande parte
das filmagens foi realizada no interior das usinas, ouvindo seus
representantes e decodificando seus números e discursos. Estas
informações são apresentadas ao público como uma espécie de plataforma
audiovisual para que se investigue o que significam de fato
hidrelétricas “a fio d`água” e fontes de “energia limpa”, quem se
beneficia da energia gerada e por que novos estudos de impacto são
necessários.
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