sábado, 8 de agosto de 2009

COMPLEXO DE LEAR

Quando a senadora Marina Silva escreveu o artigo Complexo de Lear para a Folha de S. Paulo, muita gente achou que estivesse relacionado aos escândalos envolvendo José Sarney.

- No artigo, Lula é o rei Lear, Dilma é Regana e Marina a Cordélia - explica um amigo e conselheiro da senadora.

A seguir, o artigo:


"Durante curso de especialização na Universidade de Brasília, estudei a obra "Rei Lear", de Shakespeare. Talvez a tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.

Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar. Chama as filhas -Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.

Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.

O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder. Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.

Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.

Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.

O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.

Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".

Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade."

2 comentários:

walmir.AC.lopes disse...

Reproduzo aqui meu comentário a respeito deste texto primoroso, também postado no blog do Toinho:

"Mais que uma pintura. Uma foto! Perfeito, Marina!"

Reconhecia então, em Marina, a doce rebeldia de Cordélia.
Em Lula, o rei Lear que, sucumbindo ao desejo mórbido de perpetuar sua majestade -consciente da luz própria de Cordélia-, procura transferir a própria luz para a filha Goneril -ou Regana, desdenhando a sabedoria do bobo da corte e arriscando se tornar o próprio.

Guido Cavalcante disse...

Se uma candidata à Presidência pode discorrer sobre Shakespeare para nos informar da gravidade do momento que estamos vivendo, então estamos diante de um fato inusitado e maravilhoso no cenário político brasileiro tão venalizado como agora.