sábado, 12 de abril de 2008

QUANDO OS ANJOS CHORAM

Binho Marques


Jamais vou esquecer aquele dia. Muitas vezes fico pensando e tudo parece um filme. Fecho os olhos e vejo o Nacional de Medellin e o Grêmio de Porto Alegre disputando a final da Libertadores e eu lá no meio daquele estádio lotado. Mas este já é quase o final do filme. Vou voltar a fita, senão perde a graça. <<. PLAY: madrugada. Começo, já nas primeiras horas do dia, um dos mais terríveis combates. Luto contra três: o computador, o sono e um monstro chamado "Estudo de Viabilidade Política do Plano Decenal de Educação de Rio Branco", tema que escolhi para o meu projeto de curso. Pela manhã, com o gosto da vitória na boca, corro para a Universidade e apresento o trabalho como quem está a poucas braçadas da praia. Logo seria a glória, a redenção, o descanso merecido dos justos: um banho e uma cama. Os organizadores do Curso haviam preparado uma missa de ação de graças pela conclusão dos trabalhos, mas eu já tinha decidido agradecer a Deus pessoalmente, em data ainda incerta. Meu desejo era bater em retirada o mais rápido possível. Além do banho e da soneca, eu queria tomar o rumo do estádio para fechar o dia arrebentando. Mal terminara de montar este fabuloso plano quando uma velha e bondosa Madre me pediu que levasse as oferendas; até o altar durante a missa. Mais que depressa abri a boca para dizer Iarnento, não sou católico". Mas fechei a boca dizendo: "con mucho gusto, Madre". Nem sei porque, não fiquei aborrecido por mais esta traição dos meus sentidos.

A missa só começou depois de uma hora e levou outra para terminar. Foi super bonita, as pessoas cantavam agradavelmente bem, mas eu estava já pelas tabelas de cansaço. Meu corpo era um formigamento só, dos pés à cabeça. Há mais de 24 horas no ar, eu começava a viajar nas palavras do Padre, montando um mosaico de realismo tão fantástico que só mesmo estando na terra de Garcia Marquez. Quando terminou, despedi-me rápido dos colegas, cumprimentei a Madre pela bela celebração e catei um táxi que me levou voando para o estádio, sem banho nem soneca. E, finalmente, estava lá. Só faltava entrar. Meia hora depois consegui ultrapassar a barreira militar que educadamente revistava a todos e coloquei os pés na arquibancada. O fato do estádio ser na Colômbia e o jogo no Brasil não me incomodava tanto, só não me sentia à vontade em ser o único brasileiro entre 10 mil colombianos que vaiavam o Grêmio diante de dois enormes telões. Sentei num canto e sofri calado por noventa minutos a possibilidade de ser traído por algum gesto que revelasse simpatia por aqueles brasileiros que surravam o valente Nacional de Medellín, apesar do inesquecível goleiro colombiano. No final, Grêmio 3, Nacional 1. Ufa!

Agora sim. Era só esperar mais um pouco para começar o show, razão de ter enfrentado todo aquele estrupício. Eu estava há um mês na pequena cidade de Manizales. Tinha adorado o povo colombiano que, diferente da imagem que fazemos, é muito mais solidário e educado que nós. Mesmo assim havia sido um mês difícil. Todos os dias tinha que explicar aos colegas de toda a América Latina e Caribe que eu não conhecia os jogadores de futebol de que eles falavam e que também não fazia o menor empenho de passar o resto da vida a escutar um batuque que eles acreditam ser samba. Acho que para qualquer um é difícil entender o que é ser acreano, mas para eles deve ser um pouco mais complicado. Deixa pra lá. Eu estava morto de saudades da minha família e aquele show seria uma boa despedida daquela linda ciudad encravada nos Andes. Hora e meia mais tarde as luzes se apagaram. Era o show. No palco a banda mexicana de rock Maná, uma espécie de Titãs de língua espanhola. Incendiaram o estádio já na primeira música e eu, que de tão cansado já tinha a sensação da inexistência, passei a ser tomado por uma onda de felicidade. Eles já não eram os torcedores do Nacional que imaginei capazes de comer meu fígado. Mais pareciam anjos. Um casal na minha frente percebeu que eu era brasileiro e estava desenturmado, riu e me ofereceu uma dose do Ron Medellin. "Gracias", disse, já virando a pequena garrafa. Naquela altura tudo para mim era festa. Mas, de repente, os instrumentos calaram e o silêncio engoliu o estádio. O vocalista do grupo, com uma voz de navalha, começou a cortar o silêncio em pequenas fatias. Disse que oferecia a próxima música à memória de um brasileiro que havia sido assassinado estupidamente por defender a floresta amazônica. E começou a cantar na penumbra. Lentamente.

"A Chico Mendes lo mataron
Era un defensor y un angel de toda la Amazonia
El murio a sangre fria
La selva se ahora en llanto
Un angel murio Un angel se fue Se fue volando en madrugada Cuando los angeles lloran Cuando los angeles lloran, llovera..."



Foi muito estranho presenciar aquilo. Tudo até então tinha sido estranho pra mim. Em um mês, aquela era a primeira vez que me deparava com uma referência familiar. A música rolou não sei por quanto tempo, mas o suficiente para eu rever o Chico. Construíram tantos Chicos estranhos que há anos eu já não lembrava qual era o verdadeiro. Mas naquele dia, na solidão, tive a oportunidade de reencontrar o amigo, e lembrar de um tempo deliciosamente besta. Enquanto a multidão cantava com o Maná, eu tomei o rumo de Xapuri, viajando no tempo. A Primeira parada foi no final de 85. Tinham aberto as urnas das eleições para a Prefeitura. Mais uma vez tínhamos perdido feio. O mundo daria ao Chico muitas medalhas, mas Xapuri lhe reservaria o rabagésimo lugar de uma eleição tacanha. O PMDB despejou toda sua grana num sujeito medíocre que o tempo já se encarregou de limar. Eu sabia de tudo aquilo, mas não me convencia. Estava arrasado e queria voltar correndo para Rio Branco. Mas o Chico parecia não se importar tanto com a derrota. Muito menos com a minha pressa de militante. Conversava com um, despachava outro e animava um terceiro. Aquela lembrança era tão real que parecia que eu estava ali, vendo o Chico, com aquele jeitão bonachão, e a mim mesmo, dez anos mais novo, Dez anos mais atrevido. Dez anos mais menino.

Naquele dia o Chico me enrolou legal para que eu desse carona pra Deus e o mundo e mais meia dúzia de companheiros da Estrada Velha, num jipe velho do PT. Acho que lembrei daquela época porque foi um outro mês que passei longe de casa e de todas as minhas pendências. Foi também outro mês de curso. E o Chico foi também um outro professor. Eu tinha saído da Universidade há um ano. Acho que queria ser eu o professor. De volta ao estádio, vi que a multidão, de pé, ainda cantava. O estádio vinha abaixo. Eu sentei. Se alguém visse que meus olhos estavam nadando não ia entender nada. Foi quando lembrei da primeira lição: seringueiro que é seringueiro sabe falar sim dizendo não. "Bobo", pensei, "como pude acreditar que eles falavam com a palavra?". Voltei ao primeiro encontro com o Chico. Pesquisa universitária, eu entrando pela primeira vez na mata para falar com seringueiros, acompanhado de gente do curso de História, e o Chico nos contando com ar muito sério a história de uma caçada. Ele armou a rede na espera. Quando apareceu um veado, preparou-se para atirar. Mas o veado foi crescendo, crescendo, até ficar do tamanho da árvore e ele largou a espingarda e saiu correndo apavorado. Disse isso sem nenhuma intenção de nos impressionar. Se quisesse aparecer teria tentado nos enrolar com alguma conversa política. Ele acreditava mesmo naquilo e eu nem acreditava que uma pessoa adulta e normal pudesse acreditar em coisas assim.

Hoje já nem sei se algum dia na vida fui mesmo materialista. O Chico eu sei que não foi. A música ainda rolava. Aproveitei para ficar mais um pouco. Não pisava em Xapuri desde as últimas tentativas de conciliar quem estava afim de brigar. Tomado por uma saudade imensa, parei em frente ao Sindicato. Tinha pouca gente por ali. Acho que estávamos em 83 ou 84. Era noite. O Chico estava trancado numa salinha. Tinha uns três companheiros com ele. Eu também estava lá. Resolvi chegar perto e me escorar num canto, espiando. Brincávamos de clandestinidade. Era muito engraçado, o Chico me chamava de Ricardo e eu a ele de Santos. Às vezes a gente trocava os nomes em público. Lembrei da vez em que o Chico, numa assembléia, não entendeu porque as pessoas ficaram confusas quando ele se dirigiu ao Raimundão chamando-o de Palmeira. Percebi, naquele momento, que tudo não passava de brincadeira. O sindicato de Xapuri funciona movido por uma lógica que não sofre abalo. Nestes anos todos, nenhum partido, ou fração de partido, conseguiu penetrar na verdadeira couraça de barracão que de fato o sustenta, assim como a todo o sindicalismo rural no Acre. Saí dali pulando no tempo e fui passear pelas ruas de Xapuri com o Chico, mas era insuportável andar com ele. O Chico era um verdadeiro pau-de-balseiro, sempre enganchava por onde ia. Todos o paravam para que ele desse solução pra tudo. Orientava os doentes para procurar as Irmãs, resolvia briga de vizinhos, de marido com mulher e dos companheiros do Partido. Muitas vezes eu não sabia qual a diferença exata entre um presidente de sindicato e um patrão. Patrão não vem de pai? Voltei para 85.

Naquele tempo ficamos muito juntos. Trabalhamos muito, rimos muito e conversamos muito. Todos os dias. Ficávamos pra cima e pra baixo num jipe velho, com os pneus carecas e a bateria amarrada com uma corda. Nós gostávamos muito daquele carro velho. Acho que os "Chicos" estereotipados destes típicos -g r i g o s - e c o l o g i s t a s - q u e -andaram-por-aí não seriam capazes de ficar tão felizes pelo fato de receber, de surpresa, um jipe velho para ajudar numa campanha eleitoral. Lembrei bem do jipe naquele momento. Ele era realmente um charme. Tinha um tom verde, tão verde, que nós o chamávamos de Hlulk. Era muito legal ver o Chico dormindo no Hulk enquanto o Valdecir Nicácio pilotava na buraqueira. Morri de saudade daquela cena. No final da campanha, para honrar dívidas do PT, o Hulk foi entregue para o dono de uma gráfica. Ele nunca soube o valor que aquele carro tinha. Acho que um pedaço da minha alma foi junto. O estádio agora canta outra música, os anjos já não choram. Os colombianos já esqueceram totalmente o Grêmio e o placar da derrota. Também eu começo lentamente a voltar. Xapuri está longe, distantes estão aqueles dias. Mas ainda dói, e muito, aquele outro dia, aquele sobre o qual eu não comporei uma canção. O dia-noite, o clarão, o susto do telefone. Quando o Guma me ligou chorando, eu já sabia o que tinha acontecido. Eu só não sabia o que fazer. Acho que até hoje eu ainda não sei.

Binho Marques (PT) é o governador do Acre. O artigo foi publicado na revista "n'ativa" nº4, de dezembro de 1995. Foi escrito quando Marques era Secretário Municipal de Educação de Rio Branco. Elenira Mendes, filha de Chico Mendes, está em Bogotá como convidada da banda Maná, que se apresentará hoje no parque Simon Bolívar. Fotomontagens Diego Gurgel.

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