quarta-feira, 4 de outubro de 2006

A VOZ DO POVO

Roberto DaMatta

Conheço muita gente que fala do “povo” com desdém e, no entanto, posa como seu escudeiro político e social. São seus amigos, defensores, padrinhos, educadores e sacerdotes. Sendo seus ministros e pastores, sendo seus representantes mais puros e honestos, têm mais “moral” para dele falar e, eis o ato final de amor: “cuidar”, “proteger”, “tomar conta”, “prover” esse povo sempre lido como “pobre, desamparado, explorado e carente”. Eram, como revela a nossa linguagem familística a qual não conseguimos até hoje sequer criticar devidamente, seus “pais”. Ter a paternidade do povo era um dos símbolos mais caros de nosso populismo mais cínico, desonesto e descarado. Título até hoje disputado com muita garra e palavrão pelos que pretendem que o país seja — como dizia aquela menininha filha do ditador, “O Brasil é uma fazenda; e papai é o seu dono”. Ou, como estamos ouvindo e lendo a todo momento, um instrumento de libertação do qual o nosso líder, vindo do seu ventre, é o messias.

Neste último domingo, ouvimos a tão propalada mas ainda sussurrada voz do tal “povo”, que, no Brasil, ninguém sabe direito quem é. Mas todos temos uma certeza: nós não nos incluímos em seu meio. Para os governistas, a palavra foi “envenenada” pela “imprensa irresponsável e antiética” que trocou a amizade pelo povo e, sem maiores cuidados, saiu discutindo e mencionando o mensalão. Essas mentiras inventadas para conspurcar o nosso inocente e puro povo não deveriam ser transformadas em fatos, pois, como eu aprendo com os jornalistas políticos: “Com os fatos ninguém briga!” Sobretudo, é claro, quando eles estão (ou estavam) do nosso lado ou do lado do “povo”, pelo qual tudo fizemos e estamos dispostos a fazer.

Não vou ensinar aos jornalistas intrigados com os paradoxos do mundo — por que morremos, de onde vem o sofrimento, por que o Brasil é sempre dilapidado pela boa fé dos seus políticos mais bem-intencionados, qual é o elo entre o “coração” (os “hábitos do coração”, como diziam Rousseau e Tocqueville, no que também foi mencionado por Sérgio Buarque de Hollanda como “cordialidade”) e o nosso paternal, cordial e, hoje, doce autoritarismo, sempre realizado em nome do povo — o fato fatal segundo o qual todo fato é um fato, mas um fato de fato construído. Mas posso afiançar que, quando falamos de “fatos”, o buraco — como diz o povo que todo mundo adora citar — é bem mais embaixo. Tome-se, por exemplo, esse “fato” recente — o ritual eleitoral — e pergunte-se — como a grã-fina de Nelson Rodrigues que, vendo um jogo de futebol, queria ser apresentada à bola — quem são os “fatos”? Seriam eles os números avassaladores das pesquisas de opinião que davam uma vitória garantida e insofismável do presidente Lula no primeiro turno? Seriam as teorias que, para quem tem fome, pouco importa a ética, pois o mundo tem uma escala e, como dizia Napoleão e os nossos realistas fascistas, primeiro vem a barriga e depois o resto? Ou será que o povo, contrariando tudo isso e mais alguma coisa — como o nosso irmãozinho Evo —, viu a uva — e resolveu, afinal, dizer chega a um governo que aceita tudo, menos perder o poder? E descobriu que até mesmo a fome, para ser transformada em direito, tem que passar por uma transformação radical e, igualitariamente, passar de “necessidade básica” a prerrogativa do povo? Ou será que vamos topar instituir a república dos famintos como sendo os superiores?

Quem são os fatos? São os números; ou são as motivações que os algarismos exprimem em sua linguagem agregada? São a confirmação de que, finalmente, uma parcela da população entendeu que o governo está brincando de democracia, e usando a eleição como um meio para um fim, como os próceres do PT quase admitem, quando inventam um dossiê cujo objetivo era vencer a eleição em São Paulo? Forjar resultados, comprar votos, usar ilegalmente dinheiro estrangeiro para propósitos eleitorais é algo “normal”, “sistemático” e “regular” no “jogo democrático”, como admitem governo e grande parte da oposição, que ouve isso sem tugir ou mugir? Seria normal que, numa partida de futebol, os jogadores fossem dopados e o seu técnico comprado antes da disputa final? Ou o fato é apenas o evento construído pelo “povo” que defendemos e cuidamos? O mesmo fato ao contrário seria uma conspiração, porque revelaria o conjunto de eleitores do outro lado: “reacionários canalhas e mentirosos”?

O segundo turno que se inicia é um fato ou uma interpretação? Por outro lado, o “povo” que vai decidir quem será o presidente do Brasil é o mero e fajuto eleitor antipovo, que nada entende de teoria da História, gente “alienada” na sociedade de mercado e consumo; ou é o “povo” faminto e pobre que está, como dizem os entendidos, revelando um “fato” inusitado: a divisão do Brasil entre os corretos, os pobres que, como o presidentecandidato, sofrem no palácio; ou o resto que, sendo “rico”, não deveria nem ter o direito do voto, porque o primeiro direito seria o de comer ou, quem sabe, de vestir, ter saúde, pertencer, acreditar, rezar e — viva a descoberta! — escolher? Afinal, o povo é um fato ou é uma criação nacional brasileira que exclui os que dele tiram proveito, os que dizem que por ele governam, rezam e choram? Quando é que o povo vai ser todo mundo, e os fatos só “vão falar” quando devidamente interpretados, como parece indicar — pelo menos para este cronista amador — essa histórica eleição?

Será que o povo resolveu dizer chega a um governo que aceita tudo, menos perder o poder?

Roberto DaMatta é antropólogo. O artigo dele foi copiado da edição de hoje do jornal O Globo. Antonio Alves reproduz no blog A coisa em si outros dois artigos da página de opinião do Globo - "Um grande teste", de Zuenir Ventura, e "A marcha dos palhaços", de Elio Gaspari.

6 comentários:

Anônimo disse...

Altino, essa é a sua declaração de voto?

Anônimo disse...

Não, Raquel. Ainda vou votar no Lula, o que será pela última vez na vida, com certeza. Mas não tenho mais idade para inventar outra ilusão.

Anônimo disse...

Alguém cujo nome não deu pra identificar, deixou a seguinte mensagem:

Altino,

Sobre o artigo de Roberto DaMatta: pouco objetivo, prolixo, escreveu uma página e não teve a coragem de dizer o que queria: "vou votar no Alckmin".

Assim como ele, existem milhares de pessoas que passaram os últimos 15-20 anos brigando contra FHC, Maluf, Sarney e tantos outros dilapidadores da riqueza nacional, que agora estão em uma encruzilhada: votar em FHC (opss, digo: Alckmin??!!).

Se tiverem coragem de admitir isso publicamente, jogam por terra a reputação tão duramente construída. Incoerência, aproveitadores de ocasião, do que mais serão acusado para sempre? Votar nulo e se acovardar? Qual a opção para eles?

Neste segundo turno não tem "em cima do muro". Ou vota no Lula ou vota no FHC (opss, digo Alckmin). Eu voto no Lula. Deixando de lado os escândalos políticos e financeiros da turma do FHC (que são muitos e não cabem nem mesmo num blog...), cito apenas dois fatos que não me saem da memória: colocar camisa do PT nos sequestradores do Abílio Diniz, manipular vergonhosamente a edição dos debates para colocar Collor no poder. Essa gente está por trás do Alckmin.

Para aqueles que pensam em votar nulo ou em branco: vai ser a mesma coisa que votar no Lula pois Alckmin precisa de todos os votos da Heloisa, do Cristovão e de parte dos brancos, nulos e dos faltosos para ganhar a eleição. Digo isso considerando a hipótese de que quem votou em Lula no 1° turno vai continuar votando nele no 2°. O mesmo para os eleitores de Alckmin no 1° turno".

Anônimo disse...

A coisa tá feia, meu caro. Veja o que disse Paulo Maluf:

- Tenho plena consciência de que o presidente Lula é um homem limpo e correto.

Agora veja o que disse Lula:

- Collor poderá, se quiser, fazer um trabalho excepcional no Senado.

Agora a opinião do jornalista Elio Gaspari:

- Lula e o PT associaram-se a práticas indecentes. Fizeram isso porque quiseram. A mistura custou o resultado de domingo. A soberba poderá custar a seguinte.

Anônimo disse...

O "sem nome" é o meu amigo Evandro Ferreira, pesquisador da Ufac, dono do blog Ambiente Acreano.

Anônimo disse...

Pra mim nada é mais anacrônico do que dizer que o PT é esquerda, como muitos vem dizendo por ai (Emir Sader, por exemplo) em contra pronto a uma "direita maldosa" dominadora da imprensa. Que a imprensa é parcial todo mundo sabe, mas o fato é que
a Globo sempre está do lado do poder e ela nunca foi tão amiga do Lula!

Por favor pessoal, os fatos aconteceram e a realidade já é outra. O PT assumiu o governo e optou por uma politica de continuismo. Se é bom ou ruim, cada um reflita. O tal do projeto
neoliberal (que bicho é esse?) foi continuado pelo PT. Nada mais Neoliberal do que o PROUNI, do que a Concessão de Florestas Públicas.
Banqueiro continuou ganhando como sempre ganhou...
Todos os ganhos econômicos que o pais teve seria o mesmo se o Serra tivesse assumido o poder. As premissas foram as
mesmas: juro alto e superávit primário. Isso é fato! O Lula teve sorte de pegar um cenário econômico mundial de calmaria durante esss 4
anos. Os ganhos e as perdas com essa politica seriam as mesmas.
Todos os programas socias do Lula já
existiam.....teve o mérito de ampliar e não fiscalizar.
Quero deixar claro que não considero o Alckmin a solução. Mas eu como ex-petista, também não acho que as solução seja esse PT daí. No cenário atual, olhando objetivamente, o governo Lula e o governo Alckmin seria muito pouco diferente.
O Lula e o pragmatismo do PT vão abrir as pernas agora para o PMDB e quem quiser ajudar no segundo turno. Ai meu amigo, o tal do segundo mandato do Lula promete ser pior que o primeiro, com diversos problemas de governabilidade.... o Lula já tá até elogiando o Collor! Faça-me o favor.

Enfim, o que eu quero dizer que a esolha do segundo turno vai ser entre o xuxu Alckmin e a xuxa Lula.... mais ou menos entre Pepsi e Coca-Cola. As diferenças serão minimas. É isso que a
gente tem que ter em mente! O resto é "paixão politica".

Querer tirar das cinzas um discruso entre esquerda e direita, neoliberal ou popular, não faz o menor sentido no
atual cenário.

Nada mais igual do que o PSDB e o PT (falo isso com dor no coração)

Se alguém desses grandes partidos tivesse um projeto honesto de país, o PT e o PSDB já estariam juntos a muito
tempo, não tendo que se submeter a PFL, PL ou PMDB da vida!
Que pena que os projetos são apenas de poder!

Abraços a todos
Felipe, muito propenso a votar nulo!