terça-feira, 6 de maio de 2014

Brasil nada faz por haitiano de 15 anos abandonado no Acre, diz ‘mãe’

Mirtes Lima, August e Alessandra Raymundo no abrigo de Epitaciolândia

Durante um ano e oito meses de trabalho como coordenadora da Divisão de Apoio e Atendimento aos Imigrantes e Refugiados da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre (Sejudh),  Mirtes Lima ajudou a solucionar casos dramáticos de haitianos, dominicanos e senegaleses que chegaram ao Brasil irregularmente em busca de trabalho.

Nenhuma história a sensibilizou tanto quanto a do adolescente haitiano Jalens Volf August, de 15 anos, que se encontra abandonado há mais de um ano em um abrigo no município de Epitaciolândia (AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia. August foi apreendido pela Polícia Federal no aeroporto de Rio Branco ao tentar embarcar para Macapá (AP) sem documentos.

A situação do adolescente, que é do conhecimento das autoridades brasileiras desde abril do passado, segue sem solução. Ela só se tornou do conhecimento da opinião pública nesta segunda-feira (5), a partir do Blog da Amazônia, porque Mirtes Lima foi exonerada do cargo na Sejudh no começo de abril e 20 dias depois recebeu do adolescente uma mensagem em tom de desabafo.

 - Eu estou com muita raiva. Todo mundo me abandonou. Eu quero estudar e ninguém quer ajudar-me. Eu estou desesperado – escreveu August.

Leia mais:

Jovem haitiano está abandonado no Acre há mais de um ano


Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça preferiu silenciar sobre a situação de August. O secretário Nilson Mourão, titular da Sejudh, não atendeu os chamados ao telefone.  O secretário de Desenvolvimento Social do Acre, Antônio Torres, disse que o governo estadual continua empenhado em resolver a situação do adolescente.

- O que sei é que August foi contatado recentemente pela equipe da Sejudh, sendo indagado se preferia permanecer no abrigo para crianças e adolescentes, em Epitaciolândia, ou no abrigo humanitário em Rio Branco. Ele respondeu que prefere ficar em Epitaciolândia. Mas informações sobre o caso podem ser melhor detalhadas pelo secretário Nilson Mourão – acrescentou Torres.

Em entrevista exclusiva ao Blog da Amazônia, Mirtes Lima conta que August, após ter sido apreendido e enviado para o abrigo em Epitaciolândia, obteve protocolo de visto humanitário expedido erroneamente pela Polícia Federal.

- Após dar entrada no abrigo de Brasiléia, muito espertamente, August fez a solicitação de refúgio. Talvez por causa de sua compleição física, a Polícia Federal não atentou para o fato de que ele era adolescente. Na verdade poderia ter voltado ao aeroporto de Rio Branco e teria conseguido viajar com aquele pedido de refúgio humanitário. A Polícia Federal não teria como barrá-lo. Após ter sido apreendido, ele queria obter todos os documentos que fossem necessários. Conseguiu tirar também o CPF. Só foi pego novamente quando tentou tirar a Carteira do Trabalho. Fez tudo isso inocentemente porque lhe foi dito que estava impedido de viajar porque não estava documentado. Como não sabia que adolescente não pode trabalhar, ele foi tentar tirar a carteira durante a força-tarefa do governo federal na fronteira. Fui alertada por um funcionário do Ministério do Trabalho sobre um adolescente haitiano que tentou tirar carteira de trabalho. Eu já estava em Brasiléia e demorei cinco dias para localizar August em meio a 1,3 mil haitianos no abrigo.

Veja os melhores trechos da entrevista com Mirtes Lima, que já teve August sob sua tutela e desde então passou a ser tratada como mãe pelo adolescente:

Com começa a história de August no Acre?

A história dele começa no dia 3 de abril de 2013, quando o secretário de Justiça e Direitos Humanos, Nilson Mourão, me pediu para saber do caso de um haitiano preso pela Polícia Federal. Cheguei à sede da Superintendência da PF por volta das 16 horas e saí de lá às 2 horas da madrugada do dia seguinte com um adolescente sob a minha tutela. August não falava nenhum palavra em português, apenas francês e crioulo, e precisava ser levado para um abrigo. No dia 4 de abril de 2013 ele foi encaminhado para o abrigo humanitário de Brasiléia.

O que aconteceu para que fosse detido pela Polícia Federal?

August tinha passagem, mas não tinha nenhum documento além do passaporte.

Quem comprou a passagem dele?

Foi comprada pelo haitiano Innocent Olibrice, que era jogador do Rio Branco Footboll Clube. Quem mandou o dinheiro para compra a passagem foi uma irmã do August. Por causa disso, Innocent foi indiciado com base no artigo 125 do Estatuto do Estrangeiro, por introduzir no Brasil o garoto sem a documentação em ordem, e no artigo 171, por estelionato, pois obteve vantagem ilícita, com prejuízo da família do adolescente. Ele comprou uma passagem no valor de R$ 500,00 e a revendeu para o August por R$ 1,3 mil.

Onde morava a irmã de August?

Claire estava morando na Guiana Francesa. Ela fez contato com Innocent Olibrice. Não sei como ela descobriu que havia um haitiano residindo em Rio Branco. Esse haitiano costumava frequentar o abrigo humanitário em Brasiléia e formava grupos de compatriotas que estavam como imigrantes em melhor situação financeira. Ele ajudava a comprar passagens aéreas ou de ônibus e celulares. O atendimento em Brasiléia consistia em tirar o protocolo da Polícia Federal e a emissão do CPF, mas as carteiras de trabalho eram retiradas em Rio Branco, na delegacia do Ministério do Trabalho. Inoccent percebeu o movimento em Rio Branco e passou a ganhar dinheiro dos seus compatriotas a pretexto de ajudá-los a obter a carteira do trabalho, que é fornecida gratuitamente. Ele não ajudava de graça. Cheguei a conversar com ele ao telefone, advertindo-o que estava agindo ilegalmente, pois havia uma equipe do governo do Acre dedicada a ajudar os haitianos gratuitamente.

Qual era o destino de August?

Ele foi enviado para o Brasil pelo avô dele, que mora em Porto Píncipe, capital do Haiti. Ele viajou até o Acre sozinho. O que eu soube por intermédio do Innocente foi que August estava desaparecido havia três meses. Innocente disse que esse teria sido o motivo que o fazia ir com tanta frequência ao abrigo em Brasiléia, para tentar encontrar o adolescente. A família dele ficou desesperada com a demora. O destino do August nunca foi o Brasil. August foi pego no aeroporto de Rio Branco tentando embarcar para Macapá, no Amapá, onde encontraria com Claire, uma irmã dele, que morava na Guiana Francesa. Claire viria receber August em Macapá. De lá, ambos seguiriam para a Guiana Francesa. Fariam tudo isso de forma irregular. Claire ainda tem interesse de ficar com o irmão, mas mudou para a Martinica, que é um território francês.

O que aconteceu?

A Polícia Federal pegou August porque o garoto estava tentando embarcar sem a documentação. O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que criança até os 12 anos só pode viajar sozinha desde que esteja documentada e autorizada pelos pais ou responsáveis. O mesmo ECA estabelece que adolescente pode transitar livremente pelo território brasileiro, sem autorização dos pais ou responsáveis, desde que esteja documentado. O August estava apenas com o passaporte. Não estava documentado e nem podia ser documentado porque com ele não estavam os pais ou responsáveis. Ele precisava apenas passar pelo Brasil para chegar ao seu destino, a Guiana Francesa. O contato da família do August no Brasil era o Innocent, o haitiano jogador de futebol do Rio Branco. Foi ele quem recebeu August, tanto que não existe registro da presença do adolescente no abrigo antes do dia 4 de abril, data que o encaminhei para o abrigo. Innocent recebeu o adolescente, trouxe-o para Rio Branco, comprou a passagem dele e o levou ao aeroporto, tendo ficado observando à distância se daria tudo certo ou não.

Desconhecia as leis brasileiras?

Ao comprar a passagem, foi informado pela atendente que adolescente poderia viajar. A atendente esqueceu de avisá-lo que o adolescente teria que estar documentado. Por não conhecer a nossa legislação, o ECA, Innocent entendeu que August poderia seguir viagem sem nenhum problema. O passaporte dele não tinha visto de entrada no Brasil.

Caso tivesse procurado o abrigo em Brasiléia, o adolescente poderia ter obtido na PF o protocolo de refugiado?

Não, não poderia. O ECA diz que a solicitação de refúgio deve ser solicitada pelos pais ou responsáveis. Ele não tinha ninguém. Nem o Innocent poderia fazer a solicitação do refúgio. O que aconteceu é que saí da sede da PF como responsável de um adolescente haitiano, que não falava nada em português. Consegui com um pastor o pernoite dele em Rio Branco já na madrugada do dia 4 de abril. August indicou Innocent ao delegado como sendo o culpado por tudo. Innocent foi localizado, prestou depoimento, e acabou permanecendo preso alguns dias e indiciado.

E o que aconteceu com August?

Ele foi foi levado para o abrigo direitinho, com registro. No dia 12 de abril, foi realizada uma força-tarefa do governo federal em Brasiléia. Apresentei o August e relatei o caso. Foi então que a Defensoria Pública da União, em excepcionalidade, pegou o caso com o argumento de que já havia ajudado a solucionar o caso de uma criança haitiana abandonada no metrô de São Paulo. Prestei todas as informações necessárias, mas o caso nunca teve solução. A Defensoria Pública da União solicitou que a Embaixada da França concedesse visto para que a irmã de August, que estava irregular na Guiana Francesa, pudesse recebê-lo lá. A embaixada, que não tem interesse nenhum em solucionar problemas envolvendo imigrantes haitianos, se recusou a conceder vistos para Claire e August. A reunião familiar só poderia acontecer se a família estivesse regular. Também recorremos à Embaixada do Haiti no Brasil, que conseguiu localizar a irmã de August na Guiana Francesa. Depois disso, não sabemos por qual motivo, mudou para a Martinica, onde se encontra com a mãe dela. Portanto, o avô dele mora no Haiti, o pai nos Estados Unidos, e a mãe e a irmã na Martinica. O pai nunca foi localizado e o August sempre apontava a irmã como a pessoa com queria ficar. Ele não apontava o pai nem a mãe.

Ele passou a chamar você como mãe? Qual o perfil dele?

Sim, ele me chama de mãe. É um garoto excelente, muito inteligente. Em um ano ele aprendeu a falar português fluentemente. É um garoto diferenciado porque estudou em bons colégios. Na verdade ele é de uma família diferenciada. Um irmão dele, por exemplo, trabalhava no gabinete do presidência do Haiti e morreu quando o palácio foi derrubado pelo terremoto em janeiro de 2010. O August tinha aula de piano no país dele. Faz amizade com todo mundo, aprende tudo muito rápido. Ele está passando por uma fase muito difícil da vida dele. Eu acredito que depois de tudo isso emergirá um grande homem. Ele é muito forte. No começo, quando chegou no abrigo e foi pedido que fosse para uma entidade municipal de acolhimento de crianças e adolescentes, em Epitacionlândia, ele adoeceu. Não reagiu bem, foi levado ao médico, sendo constatado que a febre que sentia era emocional. Estava num abrigo, onde convivia com 1,3 mil compatriotas e falava francês. De repente foi transferido para um abrigo de crianças brasileiras, de dois a sete anos de idade, abandonadas pelos pais, que aguardam por reunião familiar. Foi um período muito duro, sem contato com gente da idade dele, tendo que conviver basicamente com o pessoal do abrigo. Foi aí que ele se viu forçado a aprender português.

É verdade que a Polícia Federal chegou a conceder protocolo de refugiado a August?

Sim, é verdade. Após dar entrada no abrigo de Brasiléia, muito espertamente, August fez a solicitação de refúgio. Talvez por causa de sua compleição física, a Polícia Federal não atentou para o fato de que ele era adolescente. Na verdade poderia ter voltado ao aeroporto de Rio Branco e teria conseguido viajar com aquele pedido de refúgio humanitário. A Polícia Federal não teria como barrá-lo. Após ter sido apreendido, ele queria obter todos os documentos que fossem necessários. Conseguiu tirar também o CPF. Só foi pego novamente quando tentou tirar a Carteira do Trabalho. Fez tudo isso inocentemente porque lhe foi dito que estava impedido de viajar porque não estava documentado. Como não sabia que adolescente não pode trabalhar, ele foi tentar tirar a carteira durante a força-tarefa do governo federal na fronteira. Fui alertada por um funcionário do Ministério do Trabalho sobre um adolescente haitiano que tentou tirar carteira de trabalho. Eu já estava em Brasiléia e demorei cinco dias para localizar August em meio a 1,3 mil haitianos no abrigo.

O que fez a Polícia Federal?

Avisada, constatou o erro e cancelou o protocolo de refúgio que August pediu e que não poderia ter sido concedido. E August, por ordem do justiça em Brasiléia, foi levado pela secretária municipal de Ação Social para o novo abrigo onde permanece até agora, sem solução. O secretário Nilson Mourão e eu fomos chamados pelo juiz e nos manifestamos contra o envio de August para aquele local. Mesmo que de forma temporária, ele estava no abrigo humanitário de Brasiléia com seus compatriotas, adultos e adolescentes. Eu sabia que seria muito difícil ele ficar numa instituição com crianças e regras que ele teria dificuldade em assimilar. Pedimos que fosse devolvido ao abrigo, mas o Ministério Público não permitiu. Quem é responsável por ele, quem tem a tutela dele atualmente, é Ana Paula, a coordenadora do abrigo. A melhor solução seria que a mãe viesse ao Acre receber Auguse, mas acredito que não fazem isso porque não tem dinheiro. Certamente mãe e filha estão irregulares na Martinica e se saírem não entram de novo. Outra alternativa seria a mãe procurar a Embaixada do Brasil  na Martinica e indicar alguém como responsável pelo filho no Brasil. E esse responsável poderia cuidar da documentação e mande ele para a Martinica. Apareceu um primo no abrigo, que queria ajudar, mas não tinha condições e viajou para São Paulo em busca de trabalho.

O abrigo de haitianos no Acre já recebeu o secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão Pires, que é presidente do Comitê Nacional para Refugiados. Também já recebeu o senador Ricardo Ferraço, presidente da Comissão de Relações Exteriores. O que ambos fizeram?

Nada. O caso é do conhecimento de muita gente. O governador do Acre sabe. A deputada Perpétua Almeida também sabe, bem como os senadores Jorge Viana, Sérgio Petecão e Aníbal Diniz, a Pastoral do Migrante e outras organizações. Mas o caso se arrasta há mais de um ano. Paulo Abrão Pires, que veio representando o Ministério da Justiça, já esteve duas vezes no Acre. Nas duas ocasiões relatamos o caso August e nada foi feito. Ele esteve no Acre dia 12 de abril do ano passado. O caso foi relatado e ele sabe do August. Ele voltou em fevereiro ao Acre e o secretário Nilson Mourão fez um apelo. O secretário Paulo Abrão Pires virou para mim e perguntou: ‘Mirtes, o August ainda está aqui?’. Confirmei e ele pediu que enviasse um ralatório. Foi enviado, mas jamais obtive resposta. O mesmo aconteceu com o relatório que fiz a pedido do senador Ricardo Ferraço, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado. Não sei mais o que fazer. Além deles, o caso é do conhecimento da Embaixada do Haiti no Brasil,  Embaixada da França, Defensoria Pública da União, Polícia Federal, Ministério Público Federal e o Ministério Público do Acre. Todo mundo sabe do caso do Augusto. Todos sabem que o adolescente não regressou para o Haiti, que não está estudando e que não foi feita a reunião com os familiares dele. Ele merece uma solução.

Atualização às 21h, de 7 de maio - Nota da assessoria de comunicação da Sejudh:

“O Secretario de Estado de Justiça e Direitos Humanos, Nilson Mourão, esclarece informações sobre as matérias publicadas no site Blog da Amazônia sobre o menor haitiano August. As informações, no geral, estão corretas, mas é preciso esclarecer que August não está abandonado, no sentido de que está sem acompanhamento, pelo contrário, ele está recebendo assistência da Casa de Acolhimento Regional do Alto Acre, além de ter recebido atenção desde o início pela Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) por meio da servidora Mirtes Lima. Atualmente, o imigrante está sob a tutela de Ana Paula, coordenadora do abrigo. É verdade que seu caso ainda está sem solução, por se tratar de um caso extremamente complexo. Ele é menor, seus familiares estão no exterior e mudam de endereço, além disso, a situação envolve também as embaixadas do Haiti e França. “

Meu comentário: abandonado ou esquecido, não importa. O fato é que o caso está sem solução há mais de um ano. E foi o garoto quem se declarou abandonado: “Eu estou com muita raiva. Todo mundo me abandonou. Eu quero estudar e ninguém quer ajudar-me. Eu estou desesperado.”

Nenhum comentário: