terça-feira, 7 de setembro de 2010

A CIGARRA E A FORMIGA

Juarez Nogueira


Acordei às 3h34 de um sonho com Marina Silva, do qual demorei a abrir os olhos. Até aí, nada demais. O surpreendente é que acordei curado de uma infecção que me prostrou na cama nos últimos três dias, com calafrios, dor no corpo todo, peito oprimido e congestionado, picos de febre a 38 graus. Sim. Curado. Resta uma leve secura na garganta e agora respiro desopilado, sem dor.

Nessa noite, antes de dormir, li seu blog, Altino. Cá de longe, me tocou a singeleza do Toinho Alves ao comparar Marina como um chá de macela na política. A mim, que nasci sobre colchão de palha e travesseiro de flor macelinha, bastou. Muito apropriado. Também li Rita Lee se despedindo do Twitter dizendo que “é duro ser cigarra no meio de formigas”. Ainda comentei os fatos com meu irmão e fui dormir. Quero dizer, mal dormir, por causa da minha indisposição a me impedir de respirar. Não sem antes pedir ao Todo-Poderoso para catapultar o mal que me ganhou, porque no dia da independência tenho acúmulo de trabalho escravo pela frente, pelas costas e de resto por todos os lados.

Mas eu dormi e sonhei. No meu sonho, eu preparei um teatro com crianças de uma escola que recebia a visita de Marina. A peça? A cigarra e a formiga. Pois Marina veio, sentou-se entre crianças e convidados, assistiu ao teatro, sorriu. A escola estava cheia de gente. Eu fiquei próximo a ela, e em dado momento minha irmã Solange, junto de mim, me disse para prestar atenção nas unhas de Marina. Olhei e eram tenazes. Delicadas, mas tenazes. Garras. Obviei minha irmã: “deixe disso, Solange, são unhas de quem trabalha.” Nisso o teatro acabou, eu quis dizer algo a Marina mas as pessoas se juntaram, ela se despediu, agradeceu, foi embora. Então caminhei até o mural da escola vazia e vi que lá alguém havia colado uma foto de Marina, sobre fundo branco, em cima do cartaz da peça, de fundo laranja. De tal modo que a imagem de Marina se sobrepunha à da cigarra da peça, e ambas se destacavam, unidas, mas como que mutuamente isoladas.

Acordei e fiquei com as imagens girando em minha mente, vívidas, sequenciais, uma narrativa inteira. Tenho – para mim – que os sonhos são uma experiência mística, religiosa mesmo, fonte reveladora de auto-conhecimento e cura. Somando todos os elementos, é isso que ora tenho: uma cura e um saber.

Não. Marina não é santa. É humana demais até. E é isso que nela me chama a atenção. De perto, conheço raras pessoas com o que nela reconheço como algo tão simples. Por isso mesmo tão poderoso.

Adélia Prado, minha conterrânea, é uma mulher de fé. Quando se lê Deus lá na poesia dela, pode ter certeza: é fruto de experiência verdadeira, profunda com o sagrado. O que me encanta nem é tanto a literatura de Adélia. É antes a fé que ela tem na literatura, na poesia, em Deus, na vida e que, tudo junto, faz o milagre da criação.

Também reconheço em Valdete Cordeiro, minha mãe preta lá do morro Vera Cruz, em Belo Horizonte, fundadora do grupo Meninas de Sinhá. Esta deixou médicos boquiabertos no Hospital das Clínicas, em 1986, quando trouxe do coma um jovem moribundo, simplesmente pedindo: “volta, meu filho, volta”. O moribundo sou eu.

E em minha mãe, que agora mesmo acordou comigo acordado e veio saber se está tudo bem.

“Sim, mãe, está tudo bem.”

“Melhorou, filho?”

“Parece um milagre, mas a febre e a dor sumiram.”

“Deve ser milagre mesmo. Vai descansar.”

“É que tive um sonho, mãe, e, para variar, estou escrevendo sobre ele.”

Juntei tudo: o chá de macela, Marina, a despedida de Rita, o sonho, o fato de que acordei restabelecido.

Só discordo da Rita, quando ela diz que “é duro ser cigarra no meio de formigas”. Mais duro é não ser. Por isso, uma parte do sonho, por tudo que aqui expus, salta óbvia: a imagem de Marina sobreposta à imagem da cigarra, a injustiçada cigarra da fábula de que a história vai se encarregar, conta que ela seguirá sua trajetória sozinha. Com luz própria. Como é próprio e natural de verdadeiros líderes e mestres. Esse é o canto da cigarra.

A outra parte me cabe, mas independe de mim. Um dia talvez, espero, eu possa dizê-la a Marina.

Juarez Nogueira é professor e escritor mineiro em Divinópolis (MG), autor do "Manual de Sobrevivência na Redação" e "O Menino Alquimista".

Um comentário:

Pietra Dolamita disse...

É de uma sensibilidade e verdade lindíssima falar sobre a nossa amada Marina.
Ainda bem que marcela, cigarra e mulher guerreira ou homem somente engrandece a nossa espécie humana.Nos dando esperança de acreditar na vida.